segunda-feira, 7 de maio de 2018

SE NÃO PODES VENCÊ-LOS ALIA-TE A ELES ...


Apesar de cedo e do cacimbo caindo, em redor do povoado a vida seguia o seu curso normal, com as populações alheadas e entretidas nas lavras, em especial as mulheres, cujo ritmo e batida das enxadas nas tongas coincidia com o bater do pilão moendo a mandioca, ou o caju, ou martelando a fuba em almofarizes improvisados de igual modo há séculos, tocos de troncos cujo interior era pacientemente escavado.

Aos homens cabia caçar, traziam de vez em quando uma pacaça, e de quando em vez um vinho turvo e grosso que nem sei como e de que seria feito. À noite era certo gingarem em volta da fogueira brandindo lanças e catanas, catanas que por vezes erguiam à altura do pescoço simulando um golpe rápido, um golpe só, único, fatal, e que não podíamos deixar de ver como dirigido a nós brancos, somente não sabendo quando, talvez quando deixasse de ser sentida a nossa necessidade. A este frenesim escapavam as metralhadoras por lhes estarem nessas ocasiões solenemente vedadas.

Eram estes homens que se despiam de preconceitos e segredos quando banhados no vinho, gingando e saltando sobre as labaredas, quem tínhamos de instruir, formar, acompanhar, com quem lutávamos lado a lado, em quem confiávamos, inda que por vezes nos aparecessem nem sabíamos de onde, e depois desaparecessem de igual maneira como se alguém que não nós, alguém desconhecido, tal coisa lhes ordenasse, e ordenava, pois tantas foram as situações que a regra acabaria por confirmar a norma, isto é as nossas impressões.

Não era fácil conviver lado a lado e repartir perigos com aqueles que dia a dia se amparavam, nos acompanhavam, mas de noite vituperavam destilando contra nós o ódio ao branco, além de perigoso era um dilema sobre o qual dificilmente nos equilibrávamos, pelo que vivíamos na corda bamba, quer nós quer eles, pretos, pois se estávamos lado a lado após treze longos anos de guerra aberta, que deixara feridas insanáveis, raivas e ódios a pedir vinganças, não deixava de ser um legado que não nos permitia dormir descansados mesmo sabendo que a necessidade de nós lhes amolecia as vontades. Enquanto nos mantivéssemos uteis e vitoriosos as nossas vidas estariam asseguradas, a menos que valores mais altos se levantassem… 

Por precaução, mais vale prevenir que remediar, elevámos para seis os ninhos de metralhadoras em redor do acampamento, digo do aldeamento, da povoação, uma dúzia e meia de cubatas outras tantas tendas de campanha outros tantos abarracamentos e todos eles equipados com as fiáveis Bredas novas, bem oleadas e melhor municiadas, além disso foram distribuídas caixas com fitas de munições, cunhetes e granadas defensivas. O perímetro dos raids sul-africanos tendia cada vez a aproximar-se mais e prevenir não custa.   

Para o bem ou para o mal os negros tinham sido instigados durante décadas contra o branco, o colono, o usurpador, o ocupante de quem havia que libertar a pátria mãe, esta terra amada, se agora éramos aliados tal não passaria duma situação conjuntural, se não podes vencê-los alia-te a eles, e na verdade o principal inimigo continuava sendo o branco, o branco do sul, o branco austral, mas branco, mais que o negro de outras facções ou etnias. Por enquanto éramos irmãos, não de sangue mas de luta. Todavia nas noites de vinhaça à volta da fogueira ou naquelas em que circulavam de mão em mão cachimbos de bambu atacados com mais liamba que tabaco, as mentes e as línguas soltavam-se, sendo natural ouvi-los destilar a verborreia habitual contra os brancos.   

Durante quinhentos anos o branco conquistara tudo e todos a chicote e a tiro, a sede de vingança fervilhando por baixo das aparências tinha mais que razão de ser, um dia explodiria, sabíamo-lo, havia que evitar os salpicos a tempo porque Angola nunca foi nossa apesar da soberba dos colonos, mas Angola também ainda não era deles, dos pretos, dos negros, dos angolanos, Angola seria de quem a apanhasse e bem no meio da jiga joga estávamos nós, agarrados aos tomates, aflitos com a flor do congo, * com a ética, com a moral, todos nós, de conselheiros militares a instrutores e formadores, quantas vezes tão crédulos quão incrédulos quanto ao lado dos bons, quantas vezes prenhes de dúvidas, e a quem as circunstâncias levavam as nossas próprias consciências a apelidar-nos, se não a acusar-nos de mercenários…  

Não fosse a nossa presença em África ter sido sempre negociada ao abrigo de protocolos e acordos multilaterais entre o nosso governo e o governo angolano, e através desses contratos ao nível dos dois países a descansarmos as consciências e cedo teríamos arredado pé. (Desde uma época anterior à independência que existiam convénios do género estabelecidos nas colónias, agora com uma continuidade mais justificada que nunca e abrangendo áreas variadas, do ensino à medicina, indústria, comunicações, transportes, formação, instrução militar etc…) Não era festa onde se desejasse estar e a concentração de forças e de meios em Cuíto Cuanavale, a algumas léguas de nós, embora secretamente não deixava dúvidas quanto ao facto de alguma panela de pressão estar prestes a rebentar. (Rebentaria decorridos oito anos).

Nós, que não temíamos o cheiro a pólvora, nem emboscadas nem operações de campanha alimentávamos contudo um medo de morte contra as mudanças súbitas dos ventos da politica, das mentes obnubiladas, das raivas e dos ódios disfarçados de amor, por temermos sentir um vácuo estranho nas tripas, um vazio que o medo aquecia fazendo borbulhar o mesmo suor quente que nos escorreria gelado pelas fontes abaixo… Tanques soviéticos e aviões cubanos não nos davam mais protecção nem descanso, só nos tiravam o dormir…





sexta-feira, 4 de maio de 2018

APITA O COMBOIO E REGRESSA AO FUTURO*…

Estação de Évora, velha automotora sem serventia


Quando menino, merencório, por vezes ficava ali na brincadeira, depois do jogo, porque de xis em xis horas adorava ver as despedidas, os beijos, abraços e choros de quem partia, ou chegava, mas sobretudo por haver três coisas que sobremaneira me impressionavam, entre elas uma gorda sempre presente, como que ali presa, com as chaves, a corneta, a lanterna e uma bandeira verde enrolada no pau enquanto guardava uma outra, vermelha, debaixo do braço. Outra delas o mistério simples da cancela que ao abrir-se, mal a largassem voltava sozinha ao lugar de repouso como tendo uma mola, um elástico, qualquer coisa que na verdade não tinha e eu me esfalfava por descobrir, sendo a última impressão que retive e me retinha a buzina roufenha da grazine, o seu andar vagaroso, bonacheirão, o desacerto das horas a que calhava passar, contudo sempre esperada pela gorda.                                                                                                                                                                                                                                              
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983


Sempre a mesma mulher gorda que ali presa sem o estar ora os cumprimentava com amigável aceno, ora se desviava para que um deles descesse em andamento reduzido ao mínimo mas não chegando a parar, o homem medindo distâncias e velocidades, pondo um pé no chão e acabando numa curta corrida de meia dúzia de passos porque ao sétimo afocinhava, estendia-se e espalhava pelo chão o conteúdo da caixa marmita em folha de zinco cuidadosamente pintada de amarelo, o mesmo amarelo da grazine, o mesmo amarelo com que o meu vizinho ferroviário e reformado nas horas de ócio pinta e repinta os portões da garagem e do quintal.                                                                  
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983

Ali ficava sentado, mergulhado em solitude, olhando o sem fim da linha à esquerda e à direita, pegando-se lá longe, fundindo-se, impressionando-me e confundindo-me, como se aguentaria o comboio nos carris assim unidos, ele que passava ante mim resfolgando, assustando, nunca parando, sem vagar nem embalagem para parar. E quem diz o comboio diz a automotora, pesada, grande, sempre cheia de gente mas que embora bufando parava a horas certas no apeadeiro, pingando água, óleo, carregando e pingando gentes, de onde viriam, para onde iriam, que mundos haveria para lá do ponto mágico e misterioso onde as linhas se fundiam ?                                                                                                                                               
O comboio descendente de Zeca Afonso **


No dia dos meus doze anos senti-me confiante o suficiente para enfrentar o desconhecido, desbravar o fim da linha como quem se dispõe a descobrir o pote de oiro no fim do arco-íris ou, como o professor Pulga dizia, descobrir a magia no fim da viagem do Gama. Era manhã e avancei nascente adentro andando ao ritmo das travessas de madeira até que deslumbrado dei com a estação, um viveiro de gentes, mais linhas, mais comboios, um dia a coragem me levaria mais adiante, e levou, anos mais tarde, até o comboio me despejar no Évora, um cacilheiro enfrentando as ondas Tejo adiante em direcção à outra banda.

Ganha coragem com o nascente aventurei-me dias depois com o poente, barrou-me a altura da ponte-de-ferro do Xarrama e de onde se avistavam veados e corças na quinta do Menino de Oiro, os pomares de laranjeiras, a barragem enorme, a larga curva que a linha descrevia ao tombar para os lados de Azaruja. Desbravando caminhos estaria para mim como muitos para Maimônides quando da leitura do Guia dos Perplexos, o caminho faz-se caminhando, a luz encontra-se indo ao seu encontro, inda que eu soçobrasse em confusão e estivesse mui longe de mim o significado de racionalismo...                                                                                                                                 
Uma nova / velha grazine, Évora, 1983


Quando abalei daquele bairro parecia-me ter passado ali a vida inteira, todavia fui-me embora no preciso dia em que caiaram novamente o apeadeiro já de si sempre branco, sempre asseado, sempre concorrido. Lembro bem esse dia por os magalas reclamarem não poderem sentar-se, estirar-se, mas na semana seguinte estourou-lhes nas mãos uma festa de cravos e, aos poucos, de eufóricos e em magotes, passei a ver cada vez menos magalas, tal qual passados anos passeando-me por ali casualmente com a Vitória esbarrei no apeadeiro sem cor, na passagem sem cancelas, na linha sem comboios, no país sem magalas, algumas linhas sem linha e em vez de comboios, automotoras ou grazines, ciclistas, peões, marchantes, atletas, corredores, andarilhos, cavalos, cães, até desportistas.                        
O monstro previsto para a nova linha Sines - Caia com passagem por Évora  


Ouvi que se preparam para reactivar a linha, agora que não há magalas nem gentes nem apeadeiro, esbarrondou, esboroou-se, como o país, dizem que serão comboios sem fim, a perder de vista, só comboios sem automotoras nem grazines, nem homens descendo à velocidade mínima, mas comboios, muitos comboios sem fim, seguindo-se uns aos outros, sem pararem, embalados à velocidade máxima, ligando o principio e o fim do mundo.

Deito a cabeça no regaço da Vitória, adormeço e sonho, sonho-nos aos dois aqui vendo-os passar, pouca terra pouca terra. Nefelibata, estico as pernas, faço rodar as estrelas das esporas na relva, o antigo oeste ainda é como sempre o pintaram, lá longe um comboio espuma fumo e espirra baforadas de vapor, apita, apita três vezes, ouvi-lo-ão e persegui-lo-ão os índios ? Bandidos já temos, estará o meu sonho andando para trás no tempo como no Regresso Ao Futuro ?

Que histórias da carochinha nos contarão agora ? Será que ao menos os ouviremos apitar ? Será que irão apitar ? Três vezes ? Será ? 


Vista da linha na direcção de Estremoz



quinta-feira, 26 de abril de 2018

501 - " PRIMUS INTER PARES " ..............................

              

" PRIMUS INTER PARES "

Olhai o homem diante de vós,
olhai o ser que adiante se agiganta,
cara miúda, ainda criança,
olhai-lhe os olhos cheios de esperança,
por mim, por ti, por ele, por nós.

Jamais lhe creditareis uma lamúria,
nem sequer um qualquer queixume,
tão pouco lhe vereis olhos em fúria,
convictos se mantêm, lembram lume.

Corre dentro dele um rio,
rio cujo caudal clama justiça,
está hirto, firme, não o tomou o desvario,
nem o medo que tudo enguiça.

Reparai-lhe nas olheiras,
cor de medo e de canseiras,
mas está firme, alma sentida,
sentida por convicção.

E em sentido, presente,
sentido do dever,
do dever, do devir e do presente,
sua, tem calafrios,
latejam-lhe as veias,
reprime a gaguez,
os temores e os tremores,
talvez lembre amores,
enquanto pulsa nele sangue azul.

Nasceu plebeu de sangue nobre,
the blue is beautiful,
criança subindo aos céus,
íntegro, plebeu, pobre,
trepa, sobe, galga o feijoeiro,
é dos nossos, é parceiro,
entre primus está primeiro.

Ergueu-se aos céus, agigantou-se,
dádiva, bênção, gratidão,
tudo lhe devemos,
descanse em paz,
perdoe os ingratos, *
Oremos.


Quando Primeiro-Ministro Aníbal Cavaco Silva, recusou em 1989, conceder ao capitão de Abril, Salgueiro Maia, quando este já se encontrava bastante doente, uma pensão por “Serviços excepcionais e relevantes prestados ao país”, isto depois do conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República ter aprovado o parecer por unanimidade. Mas foi o mesmo primeiro-ministro Cavaco Silva que em 1992, assinou os pedidos de reforma de 2 inspectores da polícia fascista PIDE/DGS , António Augusto Bernardo, último e derradeiro chefe da polícia política em Cabo Verde, e Óscar Cardoso, um dos agentes que se barricaram na sede António Maria Cardoso e dispararam sobre a multidão que festejava a liberdade. Curiosamente, Cavaco Silva, premiou os assassinos fascistas com a mesma reforma que havia negado ao capitão de Abril Salgueiro Maia, ou seja: por “serviços excepcionais ou relevantes prestados ao país".

segunda-feira, 23 de abril de 2018

500 - HAJA COERÊNCIA, ESTE ABRIL NUNCA ...



Já era tempo de se pensar num 26 de Abril não acham ?

“Atrás de mim virá quem bom de mim fará”, desconheço o autor desta tão certeira quão célebre frase, mas a verdade é que os quarenta e quatro anos de democracia ora comemorados lhe fazem um justíssimo jus. Salazar não era, nunca foi flor que se cheirasse, todavia os nossos actuais democratas têm feito dele um menino do coro, esta democracia tem somado tantos atropelos, tanta iniquidade, tanta pobreza, tanta desigualdade e injustiça que para ser franco nem sei em boa verdade o que a maioria festeja.

É hoje mais que sabido não ter sido o 25 de Abril uma revolução, foi antes um arrastão que levou tudo e todos na frente. Em relação a essa época o que mais se apregoa é o facto de termos ganho liberdade, sobretudo liberdade de expressão e não estarmos sujeitos à anterior opressão, são factos objectivos na sua totalidade os quais porém se revestem para cada um de nós de uma subjectividade própria, pessoal, avaliada segundo o nosso prisma, a nossa experiência. Pessoalmente acho que continuamos vivendo numa ditadura encoberta e bem disfarçada sob a capa duma falsa sensação de liberdade. Tão falsa é essa sensação que facilmente a podemos comparar, não existe mais liberdade de expressão agora que havia dantes, hoje podemos gritar à vontade, dizer tudo que nos vier à cabeça, é verdade, mas ninguém nos ouvirá, ou calar-nos-ão não nos dando os meios p’ra nos fazermos ouvir, as leis de imprensa e da rádio não por acaso têm trela curta.

Naturalmente a opressão actual é diferente, mais subtil, este tipo de opressão, actuante mas subjectiva, socorrendo-se e escondendo-se nos conhecimentos da psicologia, não tem culpados, só sofredores. Atenção, eu não digo que dantes é que era bom, eu sou dos que também viveu nesse antes, para além disso estudei-o e continuo a estudá-lo, não era contudo tão mau como o pintam, o escondem e se escusam a discuti-lo. Se Salazar é acusado de jogar com a nossa ignorância, a democracia actual continua a alimentá-la e a cultivá-la. O que eu digo é que, quando o ensino podia e devia ser bom, não existem razões de força maior para ser mau, é péssimo, não produz saber, o ensino de massas resultou num fiasco onde os contribuintes despejam demasiado dinheiro para os parcos resultados obtidos, dinheiro que nunca terá retorno.

Questões de desorientação ou desorganização que nunca superámos, basta passar os olhos pelos jornais diários, o Expresso deste fim-de-semana por exemplo conclui num artigo bem estruturado (link abaixo) que depois do ano 2000 e após recebidos biliões estamos cada vez mais longe da Europa, divergimos em vez de convergirmos, um paradoxo, entretanto o DN noticia que os técnicos do Infarmed pediram transferência para Bruxelas por não quererem ir para o Porto, outra notícia dava conta de que os jovens não ganham o suficiente para arrendarem uma casa, agora também elas alvo de arrendamentos precários, essa praga, e nem ganham para casar nem para ter filhos, condenando-nos a um inverno demográfico fugindo daqui a sete pés, atitude incompreensível para um primeiro-ministro bem-intencionado e incapaz de compreender e aceitar quem não veja este país como um paraíso...

Verdade que vivi os anos do PREC de armas nas mãos, e embora não as tenha usado ou virado contra ninguém essa experiência revolucionária contou, abriu-me os olhos, tornou-me coerente e sobretudo consequente, há que retirar ilações, lições, e assumir consequências pelas nossas atitudes, ser íntegro, respeitar a ética, ora os políticos desta democracia nunca passaram duns diletantes ingénuos, quando não oportunistas e sobretudo ignorantes. Assinalar os quarenta e quatro anos do arrastão que foi Abril será estragar a coerência que devemos a nós próprios, a menos que queiramos participar nesse festival de lirismo autofágico.

Existe desde 1974 uma “união sagrada” em torno da memória do golpe. A esquerda, nostálgica mas ignorante vive esta data como um momento poético do passado, e a direita, caceteira, seja ela astuta ou manhosa nunca percebeu que Abril poderia ter significado mais do que um novo começo da nossa história. A nossa direita, carregada de reumatismo, vivia acomodada e de braço dado com privilégios e valores anquilosados que uma justa, moderna e actual hierarquia recusaria, hierarquia que ainda não tem. A essa "domesticação democrática" a Europa da EFTA, da OCDE e inclusive da CEE, os espaços politico/económicos em que nos inseríamos nos estavam obrigando à data do arrastão. As mudanças eram uma inevitabilidade e foi um erro não aceitar essas mudanças, que na verdade nos convinham e poderiam ter acautelado o futuro e evitado todos os imbróglios dos últimos 44 anos. O devir foi obrigado a seguir um caminho que como sabemos passou pela revolta, sucede que embora não duvidemos da generosidade dos revoltosos também não acautelámos o seu cinismo nem a sua incompetência e irresponsabilidade para tomarem conta do país.

Até 1974 a palavra de ordem era circunscrita a Deus, pátria e família, trinómio de má memória a que havia que colocar cobro em nome do desenvolvimento que a finança ditava, havia que colocar no altar outros valores. Era preciso acabar com essa doutrina injustificável e, para a burguesia financeira o 25 de Abril, mais dissabor menos dissabor, mais susto menos susto foi uma boa ajuda, na medida em que era uma revolução que dava a entender que mais revoluções eram desnecessárias. Passados todos estes anos teve tempo para reconstituir fortunas, dinamitar a coesão, torpedear a solidariedade, coisas aliás que a esquerda sempre lhe negou e portanto temos que considerar essa atenuante. A nossa esquerda sempre se mostrou tão aberta e inclusiva quanto a direita, e esta por sua vez nunca logrou libertar-se do epíteto de estupida e medrosa, sempre temendo assumir-se, delimitar campos, debater a verdade olhos nos olhos e fruir de bom senso.


Não houve revolução, houve um arrastão, um movimento “sociológico” de massas, porém político, sem projecto e sem direcção. A nossa Abrilada do dia 25 não foi mais que um movimento de contestação, inventaram-se umas palavras de ordem, palavras enganadoras, sabemo-lo hoje, e não se pensou em mais nada, de concreto havia que repor as regalias que a tropa ia perdendo com o recurso aos oficiais milicianos, sabemos agora como a guerra era um negócio e os instalados nela estavam a ficar mal... As coisas ultrapassaram o esperado, houve barricadas, manifs, e os militares viram-se com uma revolução nas mãos que nem tinham desejado, imaginem que até os pides tiveram que prender, quem teria imaginado tal desiderato ?

Daí para a frente conhecemos a história, ganharam os oportunistas, os videirinhos, os arrivistas, ganhou a ignorância, a irresponsabilidade, a incompetência, isto só pode acabar mal, mas como o meu temor é que fique tudo na mesma, pois que acabe quanto mais depressa melhor. É por demais evidente nos nossos dias que Eça tinha toda razão, a “democracia fica-nos curta nas mangas”. Por isso não me venham com a evocação desta data mítica da nossa História. Cegos, coxos e ineptos histriónicos, todos eles deslumbrados com o seu próprio circo mediático, com os estudantes ajudando ao folclore e os timoratos e heróicos operários desde o cerco à assembleia outra coisa não fizeram que ceder, aceitar o que lhe dão, permitir o crescimento de um capitalismo que os escraviza, exclui e ignora, em vez de tentarem reformá-lo como inteligentemente os chineses fizeram. Nunca alcançámos sequer uma mudança de mentalidades. Mas temos o partidarismo, a corrupção, os direitos adquiridos sem contrapartidas, faltando-nos assistir ao fim, à decadência, sem jamais assistirmos a uma mudança de sensibilidade ou a quaisquer mudanças estruturais.

Sobra-nos sim até demais essa nova sensibilidade, essa nova transversal e consensual tendência, o sectarismo. Passámos do antifascismo para o bairrismo e para o partidarismo de onde nasceu o sectarismo, numa deriva semântica e ideológica doentia de que todos ou quase todos acabamos por sofrer, que nos fecha em nós e na nossa panelinha, que como uma lapa agarra os instalados aos lugares, que trava o crescimento a modernidade e o desenvolvimento. Olhai à vossa volta, que mereceu cada um dos personagens que estais vendo para merecer o ar que respira ? Contribuiu para o engrandecimento da nação ou para o seu ? Criou riqueza para os outros e para si ou só se lembrou de sugar o trabalho alheio ? Bem sei que a Revolução Cultural Chinesa foi uma montra de horrores, mas não a tivesse Mao colocado em movimento e a vitória das forças comunistas / progressista s teria na época regredido ao medievalismo. Os instalados se encarregariam de tudo sufocar para se manterem.

 O problema é que Abril não mudou o Estado, não mudou nada, continuamos com as mesmas estruturas herdadas do Estado Novo, agora mais débeis, mais enfraquecidas, a ausência de reformas mata-nos. Os sindicatos que lograram ganhar força contestatária conseguiram conquistas importantes para os seus filiados, até quando é uma incógnita, tudo neste país está atado com arames. Hoje os estrangeiros e as multinacionais são donas disto tudo, nada temos de nosso além da divida e dum futuro negro, ficámos escravos na nossa própria terra, claro que podemos sempre votar com os pés, abalar, mas terá sido para isso que o 25 de Abril foi festejado ? Salazar teria enfiado sem contemplações toda esta gentinha corrupta em Peniche ou no Tarrafal, e não seriam bem metidos ? Bem engavetados ? Ele não era santo, são os de hoje quem faz dele santo ao serem bem piores, sim os de hoje, os mesmos que nunca foram capazes de o apear, foi uma cadeira velha quem acabou com ele, não foi a contestação burguesa ou operária, uma vergonha que nos acompanhará história fora.

Não, não me peçam para festejar Abril, há que ter coragem e hombridade para recusar este Abril, convidem-me para um novo Abril, isso sim, vai ter que acontecer, mais tarde ou mais cedo, com menor ou maior violência. Andam a gozar-nos e a cagar-nos em cima, coisa que nem Salazar se atreveu a fazer.

NOTA: http://expresso.sapo.pt/economia/2018-04-21-Apesar-dos-44-mil-milhoes-de-fundos-europeus-Portugal-esta-cada-vez-mais-longe-da-Uniao-Europeia#gs.dI1vDKc

OUTRA NOTA VINDA A PROPÓSITO:   http://portugalglorioso.blogspot.com/2014/09/classe-politica-com-privilegios-maiores.html

sexta-feira, 20 de abril de 2018

499 - COMPREI UMA LINDISSIMA AGENDA ...


COMPREI UMA LINDISSÍMA AGENDA



Chegou a Primavera,
tempo de luz e de esperança,
de criação e abastança,
de planos, sonhos e quimeras.

Também eu fiz planos,
que organizei, que planifiquei,
comprei uma agenda p’r apontar os sonhos,
sonhos, desejos, tudo planeei.

Ouvira na esplanada a alguém,
penso que a ilustre magistrado,
que, desde que as partes o desejem,
até em cima de uma agenda, ou deitados…

Deitados, em pé, coitado,
coitado do meu sonho,
desejo inventado,
sonho e desejo de gnomo.

Gnomos ou elfos,
qual o interesse agora,
depois de dar ouvidos a Delfos,
e por não crer, a ter deitado fora.

Tende juízo augurara a pitonisa,
liga a bateria, os piscas, as luzes,
dá corda aos patins, piramiza,
dedica-te à poesia, ironiza.

Ironiza e brinca,
esquece, distrai-te,
nunca afies o dente que não trinca,
vai para o café mandar bitaites.

Apaga a luz, esquece a musa,
não mates a cabeça, corta-a,
entala o pescoço numa eclusa,
exorta a vítima em ti, exorta-a.

Castiga-te, bebe um café,
sê masoquista,
narcisista já és,
e convencido, e egotista.

Tens muito por onde te entreter,
a Primavera é grande,
mortifica-te a valer,
e poupa-nos, sai desta land.

Desopila, emigra,
não atormentes,
faz-te à vida,
dá paz às gentes.

Já se não vendem agendas,
só tablets, notebooks,
vives o tempo das gregas calendas,
detestas o McDonald’s, o Starbucks.

És uma aberração,
uma abencerragem,
não és deste tempo, nem geração,
és do tempo do pão de farinha, da moagem.

Do forno de lenha,
da cortesia, do fazer a corte,
da vaca fria, da vaca prenha,
andas aqui sem saber o norte.

Antes a morte que tal sorte,
cantou uma vez o Mário Branco,
e licença da arma, do seu porte ?
será que tens ? E que esperas tanso ?

Dá um tiro nos miolos,
preenche de alegria a Primavera,
pareces a noiva de Arraiolos,
sempre à espera, sempre à espera.

Depois pintarei um quadro teu,
como fez o pintor que pintou Ana,
juro não fazer rebeubéu,
e pintar também a tua mana.

Pois então que morras descansado,
morre, mata-te, suicida-te,
como queiras, mas sê apressado,
já não há pachorra para aturar-te.

Desgraçado ... 


Humberto Ventura Palma Baião, em Évora, a 20-04-2018, pelas 15:25h