Apesar de cedo e do cacimbo caindo,
em redor do povoado a vida seguia o seu curso normal, com as populações alheadas e entretidas
nas lavras, em especial as mulheres, cujo ritmo e batida das enxadas nas tongas coincidia com o bater do pilão moendo a mandioca, ou o caju, ou
martelando a fuba em almofarizes improvisados de igual modo há séculos, tocos
de troncos cujo interior era pacientemente escavado.
Aos homens cabia caçar, traziam de
vez em quando uma pacaça, e de quando em vez um vinho turvo e grosso que nem
sei como e de que seria feito. À noite era certo gingarem em volta da fogueira
brandindo lanças e catanas,
catanas que por vezes erguiam à altura do pescoço simulando um golpe rápido, um
golpe só, único, fatal, e que não podíamos deixar de ver como dirigido a nós
brancos, somente não sabendo quando, talvez quando deixasse de ser sentida a
nossa necessidade. A este frenesim escapavam as metralhadoras por lhes estarem
nessas ocasiões solenemente vedadas.
Eram estes homens que se despiam de preconceitos e segredos
quando banhados no vinho, gingando e saltando sobre as labaredas, quem tínhamos
de instruir, formar, acompanhar, com quem lutávamos lado a lado, em quem confiávamos,
inda que por vezes nos aparecessem nem sabíamos de onde, e depois desaparecessem
de igual maneira como se alguém que não nós, alguém desconhecido, tal coisa
lhes ordenasse, e ordenava, pois tantas foram as situações que a regra acabaria
por confirmar a norma, isto é as nossas impressões.
Não era fácil conviver lado a lado e
repartir perigos com aqueles que dia a dia se amparavam, nos acompanhavam, mas
de noite vituperavam destilando contra nós o ódio ao branco, além de perigoso
era um dilema sobre o qual dificilmente nos equilibrávamos, pelo que vivíamos
na corda bamba, quer nós quer eles, pretos, pois se estávamos lado a lado após
treze longos anos de guerra aberta, que deixara feridas insanáveis, raivas e ódios
a pedir vinganças, não deixava de ser um legado que não nos permitia dormir descansados mesmo
sabendo que a necessidade de nós lhes amolecia as vontades. Enquanto nos
mantivéssemos uteis e vitoriosos as nossas vidas estariam asseguradas, a menos
que valores mais altos se levantassem…
Por precaução, mais vale prevenir que
remediar, elevámos para seis os ninhos de metralhadoras em redor do
acampamento, digo do aldeamento, da povoação, uma dúzia e meia de cubatas
outras tantas tendas de campanha outros tantos abarracamentos e todos eles equipados com as fiáveis Bredas novas, bem
oleadas e melhor municiadas, além disso foram distribuídas caixas com fitas de munições,
cunhetes e granadas defensivas. O perímetro dos raids sul-africanos tendia cada
vez a aproximar-se mais e prevenir não custa.
Para o bem ou para o mal os negros tinham
sido instigados durante décadas contra o branco, o colono, o usurpador, o
ocupante de quem havia que libertar a pátria mãe, esta terra amada, se agora
éramos aliados tal não passaria duma situação conjuntural, se não podes vencê-los alia-te a eles, e na verdade o principal
inimigo continuava sendo o branco, o branco do sul, o branco austral, mas
branco, mais que o negro de outras facções ou etnias. Por enquanto éramos
irmãos, não de sangue mas de luta. Todavia nas noites de vinhaça à volta da
fogueira ou naquelas em que circulavam de mão em mão cachimbos de bambu atacados
com mais liamba que tabaco, as mentes e as línguas soltavam-se, sendo natural
ouvi-los destilar a verborreia habitual contra os brancos.
Durante quinhentos anos o branco
conquistara tudo e todos a chicote e a tiro, a sede de vingança fervilhando por
baixo das aparências tinha mais que razão de ser, um dia explodiria, sabíamo-lo,
havia que evitar os salpicos a tempo porque Angola nunca foi nossa apesar da
soberba dos colonos, mas Angola também ainda não era deles, dos pretos, dos negros,
dos angolanos, Angola seria de quem a apanhasse e bem no meio da jiga joga
estávamos nós, agarrados aos tomates, aflitos com a flor do congo, * com a ética,
com a moral, todos nós, de conselheiros militares a instrutores e formadores,
quantas vezes tão crédulos quão incrédulos quanto ao lado dos bons, quantas
vezes prenhes de dúvidas, e a quem as circunstâncias levavam as nossas próprias
consciências a apelidar-nos, se não a acusar-nos de mercenários…
Não fosse a nossa presença em África ter
sido sempre negociada ao abrigo de protocolos e acordos multilaterais entre o
nosso governo e o governo angolano, e através desses contratos ao nível dos
dois países a descansarmos as consciências e cedo teríamos arredado pé. (Desde
uma época anterior à independência que existiam convénios do género
estabelecidos nas colónias, agora com uma continuidade mais justificada que
nunca e abrangendo áreas variadas,
do ensino à medicina, indústria, comunicações, transportes, formação, instrução
militar etc…) Não era
festa onde se desejasse estar e a concentração de forças e de meios em Cuíto Cuanavale,
a algumas léguas de nós, embora secretamente não deixava dúvidas quanto ao
facto de alguma panela de pressão estar prestes a rebentar. (Rebentaria decorridos
oito anos).
Nós, que não temíamos o cheiro a
pólvora, nem emboscadas nem operações de campanha alimentávamos contudo um medo
de morte contra as mudanças súbitas dos ventos da politica, das mentes
obnubiladas, das raivas e dos ódios disfarçados de amor, por temermos sentir um
vácuo estranho nas tripas, um vazio que o medo aquecia fazendo borbulhar o
mesmo suor quente que nos escorreria gelado pelas fontes abaixo… Tanques
soviéticos e aviões cubanos não nos davam mais protecção nem descanso, só nos tiravam
o dormir…