segunda-feira, 25 de novembro de 2024

822 - CAMÕES, O ADAMASTOR, CANTO V *



Promessas, promessas era o que me vinha atirando acima há algum tempo sem que eu acreditasse minimamente no que quer que ela dissesse. Era uma questão de confiança e eu não conseguia crer numa única palavra por ela proferida.

 

Tudo me cheirava a esturro, a falso, a fingido, daí que me controlasse e não proferisse sob nenhum pretexto, rasteira, tentação ou descuido a promessa que ela por certo teimava arrancar-me.

 

E, enquanto ela vomitava promessa atrás de promessa sabendo eu que nunca se preocuparia em cumpri-las, sustinha-me, aguentava quanto possível cedendo parcimoniosamente a tanta tentação que me rodeava porém jamais no essencial. Desistir ou fraquejar não é a minha onda nem tão pouco a minha praia.

 

A questão não era despicienda, e já se colocara a Shakespeare em “Ser Ou Não Ser” ** pois é mesmo duma questão de caracter que se trata, de formação, de educação, de personalidade, de honra.

 

A minha solidão é a minha liberdade. É verdade que a nossa civilização parece ter desbaratado ou perdido, todos os seus valores, mas ainda não comecei a penhorar os meus, nem penso vir a fazê-lo, talvez por isso por vezes pasme com o que vejo.

 

Quando acabou soergueu-se, limpou os cantos da boca com os dedos, esboçou um sorriso e sussurrou-me:

 

- Tão bom !!!!!!!

 

Depois acertou o pijama que lhe caía dos ombros, ajeitou a toalha descambada no suporte, colocou a escova dos dentes no copo e ficou minutos como que hipnotizada olhando a bisnaga ainda apertada na mão, quiçá imaginando a promessa que dela espremera e inscrita a dourado sob a marca, velha de décadas…

 

A realidade é hoje fantasiosa, irreal, virtual, desvirtuada, por isso metade do meu tempo é ocupado a interpretá-la, a descodificá-la, a traduzi-la, a desmontá-la. E é isso que faço, se a monto também, a desmonto, observo-a e reconstruo-a, com base não no que vi mas no que pensei e penso quando vi, ouvi, vejo ou oiço.

 

As coisas não são portanto como são, são como eu as vejo, as ouço ou penso, são como eu sou e, nesse item a tosca subtileza por ela usada comigo não pegou, perdeu, já que a lia, a despia, desvendando-lhe as intenções e segredos, considerando-me cada vez mais intérprete da sua manha, teia, malicia, perfídia, naturalmente defendo-me, fazendo-me de mouquinho umas vezes e de parvinho outras. Ninguém sequer imagina quão poderemos ganhar fingindo-nos de parvos, ou de moucos…  

 

Mas até a parvoíce tem limites, ela fartou-se de me aturar e, num repente, passou das promessas a torto e a direito, minuto a minuto para, numa reviravolta surpreendente dar o dito e feito por não dito, nem feito, e mandar-me à fava, cortar todas as ligações esquecendo ser nas atitudes ou actos, mais que nas palavras que encontramos a virtude e a verdade verdadeira, real.

 

Rejubilei claro, sofrera mas nunca lhe prometera guarida, os meus trabalhos tinham chegado ao fim sem descrédito ou desprestígio p'ra mim e, fosse eu Camões e teria mesmo cantado;

 

          *  Da mágoa e da desonra ali passada,

              A buscar outro mundo, onde não visse

             Quem de meu pranto e de meu mal se risse.

 

 *  "Da mágoa e da desonra ali passada, / A buscar outro mundo, onde não visse/ Quem de meu pranto e de meu mal se risse." (c. V, est.57,vv.6-8)

 

              **  Hamlet, príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, Acto III, Cena I


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

821 - HOMEM PEQUENINO, VELHACO OU DANÇARINO ...

 


                 HOMEM PEQUENINO, VELHACO OU DANÇARINO


Pequenino, velhaco ou dançarino, este é, sem a menor duvida, um adágio acerca do qual se pode afirmar bater a bota com a perdigota.


 Vem isto a propósito de umas larachas atiradas ao ar há uns dias por Marques Mendes, o pequenote, e nas quais visava Évora e o seu provável futuro politico em 2025.

 

Partindo da premissa que o PCP vai finalmente ser apeado, depois de 50 anos fazendo asneira da grossa atrás de asneira até falir a câmara, Marques Mendes interrogou-se sobre quem substituirá o PCP, será o PS? Será o PSD? Limitando manhosamente as opções e soluções como se não houvesse mais Marias na terra.

 

O truque do velhaco é velho, ao ignorar o MCE e Florbela Fernandes a sua vereadora, está subtilmente a minimizar o seu peso e a desvalorizar e desconsiderar a participação de um legítimo movimento de cidadãos nessa luta, como se por aí não fosse o gato às filhoses nem valesse a pena perder tempo com a coisa.

 

Eu faço desse premeditado episódio uma leitura completamente diferente, a acção de Marques Mendes demonstra o temor que o MCE e Florbela Fernandes lhe infligem, como se ignorar a sua existência fosse coisa de somenos, não é.

 

Quer o ignorado MCE quer Florbela Fernandes têm vindo paulatinamente a conquistar o coração dos eborenses e com isso a ganhar confiança e terreno entre os cidadãos da nossa urbe, fartos dos partidos do sistema que em 50 anos já demonstraram à saciedade e à sociedade eborense não estarem interessados em mais que os seus umbigos.

 

Durante 50 anos o PCP arrastou Évora para o buraco em que está metida, o seu presidente admitiu em sessão pública ter a edilidade entrado em incumprimento, em insolvência, tendo este marco histórico sido o ponto mais marcante de 50 anos de gestão e domínio comunista, a falência do município.

 

E os outros ? PS e PSD ?  Que fizeram ao longo desses compridos 50 anos que não fosse estenderem-se na espreguiçadeira e esperar ? Não diria sentados, mas antes deitados ...

 

Évora conseguiu em 50 anos guindar-se à posição da cidade mais atrasada da província mais atrasada do mais atrasado país da Europa. É obra !

 

Se a equipa municipal tivesse um pingo de vergonha ter-se-ia demitido em peso no dia e momento em que anunciou a falência do município. Mas não, ao invés disso e sem o menor pudor, sem a mínima vergonha na cara deram o dito por não dito passados dias, como se a contabilidade ou a realidade pudessem ser escamoteadas. É preciso ter lata !

 

Florbela Fernandes e o MCE merecem a confiança e o voto dos eborenses, têm o caminho aberto, não será um caminho fácil com o município falido e todos os entraves que esta situação acarreta, são muitos escolhos mas, ou Évora muda agora ou não mudará nunca e todas as esperanças que os eborenses possam acalentar cairão por terra ou serão atiradas para as calendas gregas.

 

É a ultima oportunidade que esta cidade tem, a cidade e os eborenses, ou votamos em quem nada deve a partidos nem a lóbis, ou votamos em cidadãos honestos e não em políticos profissionais engajados pelo sistema que nos sufoca ou estaremos condenados à insignificância e à mais vergonhosa miséria.

 

Votemos na esperança ! 

Votemos na dignidade ! 

Votemos MCE ! 

Votemos Florbela !





sábado, 21 de setembro de 2024

820 - OS SÃOS BENEFÍCIOS DAS CAMINHADAS...


         OS SÃOS BENEFÍCIOS DAS CAMINHADAS

 Sou um acérrimo defensor dos benefícios e praticante de caminhadas. Por razões que se prendem com a idade e com a manutenção física que tal exige encontrei nas caminhadas não só o exercício físico ideal como um óptimo processo de manutenção em boa forma evitando a ferrugem precoce e a prisão das dobradiças.   


Estava eu há minutos cuscando a página do grupo de caminheiros a que me orgulho de pertencer quando deparo com estas pérolas:

“Estes são alguns dos benefícios das caminhadas, chegares aos 77 anos com esta agilidade”.

“Parabéns a todos os caminheiros deste grupo onde alguns já ultrapassaram a fasquia dos 70”.

Não que as afirmações proferidas não sejam verdadeiras atenção, são-no e bem ! Todos os que andam enfronhados nesta prática sabem perfeitamente que a mesma mantém a saúde e nos protege essencialmente de doenças cardiovasculares ao ajudar a controlar a pressão sanguínea. Caminhar é um factor de protecção contra derrames cerebrais e enfarte. Os vasos sanguíneos ficam mais elásticos e mais propícios a dilatar quando ocorra alguma obstrução.


São variadas e manifestas as vantagens para quem faz caminhadas, vou listar algumas delas sem me alongar, depois cada um de vós poderá ir ao Google e inteirar-se melhor acerca de cada, ou de todas.

1.Melhora a circulação e o desempenho sexual.

2.Deixa o pulmão mais eficiente, aumenta a caixa torácica

3. Combate a osteoporose e enrija ossos e mentes.

4. Afasta a depressão e o mau-olhado.

5. Aumenta a sensação de bem-estar e o prazer…

6. Deixa o cérebro mais saudável e inteligente

7. Diminui a sonolência e os bocejos

8. Mantém o peso em equilíbrio e emagrece

9. Controla a vontade de comer, o pecado da gula...

10. Protege contra derrames e infartos

11. Ajuda a evitar, a combater e a controlar a diabetes

Estes são os benefícios mais correntes e visíveis, e até os que em pesquisas apuradas mais vezes nos surgem, porque há outros, menos visíveis, menos falados, mas há.  




Falo por mim visto tratar-se de benefícios extra que nem toda a gente colherá ou necessitará, de qualquer modo julgo pertinente deixar-vos aqui a informação, o saber nunca ocupa lugar e quem saberá, quiçá, se alguns de vós não partilharão em segredo a revelação que agora vos vou deixar.


É que cedo comecei a aperceber-me dos benefícios das caminhadas, em especial dos que serão muito pouco falados, compreende-se, são assuntos domésticos, causas e coisas que ninguém gosta de abordar em público, são aspectos que eu colocaria ao nível ou em paralelo com os designados segredos de alcova. 



Mas já chega de paleio, devem estar todas e todos mortinhos por saber quais os benefícios e em que condições eu tiro deles partido, o que não será difícil de adivinhar atendendo a que todos conhecemos o saudável cansaço com que no fim da caminhada recolhemos a casa. 



A minha Carolina sabe de antemão que durante os dois ou três dias seguintes nem precisará de se esconder, sabe de antemão que não estarei em condições de a procurar e a gaiatagem tira folga. Tenho que admitir, chego saudavelmente cansado mas bem-disposto e, confesso, desde que há meia dúzia de anos comecei com as caminhadas nunca mais necessitei tirar o cinto nem de mandar umas lamparinas bem dadas a quem estivesse a precisar delas. 



Portanto acrescentem aí na listagem de benefícios os psicológicos, a caminhada preenche e ocupa o cérebro, dá uma sensação de bem-estar que aumenta os níveis de tolerância e diminui a irritabilidade e tendências para formas de expressão violentas, por outras palavras, traz paz a casa e a mim a confortavel certeza de que chegarei a velho com todos os dentes na boca.



Portanto amigas e amigos, caminhem, caminhem, andando andando, metam-se a andar antes que me passe a paciência que ha mais de três meses que não faço uma marchinha e estou pelos cabelos…. Desviem-se, saiam da minha frente e nem pensem em contrariar-me !!!!!!   




Desviem-se, saiam da frente !! Nem pensem contrariar-me !!   










 

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

819 - A GRUTA OU CAVERNA DE ALI-BABÁ ...

                                                                                     


Toda a gente a conhece, de ouvir falar, das histórias de encantar, das fábulas de Mil e Uma Noites, mas poucos saberão onde se situa, se ainda existe ou se é possível visitá-la.

 

Visitei-a há pouco pela quarta, quinta ou décima vez e, como sempre valeu a pena. Valeu a pena por vários motivos, é uma gruta mágica onde sempre entrei e me senti como num lugar de encantar e, inda que nunca me tenha demorado, o lugar é propenso a impressionar-nos solenemente sob várias ou múltiplas perspectivas, a extasiar-nos e, comigo sucede frequentemente, proporcionar-me um clímax inexplicável e que outras situações, idênticas ou muito parecidas, incompreensivelmente não me fazem sentir, atingir ou viver.

 

Gosto de entrar com calma, nada de impetuosidade, é lugar para se estar, para apreciar, não para viver ou ver de passagem ou de corrida, se bem que, mal me aproxime da entrada fique tenso, hirto.

 

Não só essa gruta me provoca esse efeito, ficar tenso, hirto, como o mesmo se torna quasi condição obrigatória para entrar. Nada de brincadeiras, a coisa é séria e se a queremos relembrar mais tarde será bom que assim seja levada, a sério e com intensidade, com o deslumbramento e o gozo que a situação oferece e permite.

 


Perante tal encanto ou fascinação a minha sedução é sempre total, e fico boquiaberto cada vez que, ao contrário de Ali-Babá e do “Abre-te Sésamo”, me bastar sorrir p'ra que não uma pedra, um rochedo, uma rocha, mas duas, se abram de par em par para que, contemplativo e agradecido aos deuses acorde da mítica visão digna das Mil e Uma Noites para uma realidade cujo sonho não consigo suportar.

 

Abre-se docemente em duas essa gruta e eu, timidamente mas com galhardia penetro-a, de olhos fechados sendo como melhor nos orientamos na escuridão, sentidos alerta, a sensibilidade afinada tanto quanto a sensualidade e, como num arame, num trapézio ou na crista de uma onda, tentamos aguentar-nos o máximo possível para que o cume da felicidade seja atingido.

 

É uma experiência inolvidável a entrada nesta gruta, sobretudo quando não tivemos que dar um passo para a descobrir, antes nos foi oferecida, portanto descoberta e fruída por convite pessoal.

 


Amigos, não procurem nos folhetos nem em agências de viagens, como eu vos disse, a esta gruta só se acede por convite e a cada um de vós que tal convite for feito, não façais como Ali-Babá, e não conteis a ninguém o segredo dessa gruta sob pena de passardes pelas vicissitudes trabalhos e dores que Ali-Babá passou e, porventura dificilmente conseguir após muitos trabalhos sair deles com a mesma sorte de Ali, esse personagem mítico das Mil e Uma Noites.

 

A caverna de Ali-Babá é assunto para fruir e calar, ou como nós por cá dizemos, para comer e calar. Nunca vos esqueceis que boca calada é o melhor, prove, deguste, aprecie, vá até ao fundo da bilha, digo da garrafa, seja feliz e repita sempre que possa, não há limite nem lugar mais aprazível, mais macio, não há lugar onde o mito, a fruição do tabu derribado e a sensação de posse total, de tudo, da felicidade, o deixe mais agradado e em paz consigo mesmo.

 


                   Creia-me, ganhará anos de vida !!




                      Há sempre gente do contra ... 😧😧😧😧

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

818 - TELHEIRO - "O ROUBO DO SANTO" …

         

 

Ontem, foi mesmo já noitinha que fui atraído ao Telheiro, uma aldeia pitoresca no sopé do monte que Monsaraz ocupa. Uma caminhada nocturna prometida e publicitada pela CMRM inserida nas festas anuais do Telheiro convenceu-me, até por ter afinidades com essa aldeia há mais de sessenta anos.

 

Dez da noite e aqui estou eu, apresentei-me, com o meu habitual e colorido bordão, calção claro, ténis à maneira, o vistoso camisolão azulão dos não menos vistosos, famosos e omnipresentes Caminheiros de Monsaraz, tal qual me podem ver numa das fotos, encostado à direita dela e um pouco desfocado. Essa caminhada nocturna representou para mim mais que o episódio do “roubo do santo”, tradição curiosa cujos link podem consultar no fim deste texto.

 

Tinha-vos prometido ontem ainda dizer-vos alguma coisa mais sobre essa caminhada / procissão, tinha prometido que vos contaria como, mais que a procissão/caminhada, o lugar, a ermida de S. Sebastião me sensibilizou.

 

Sendo eu natural de Monsaraz já conhecia o lugar, junto dessa ermida a minha avó Inácia Ferrador, e meu avô Palma naturalmente, criaram os mais de treze filhos e filhas que deram a este mundo, minha mãe, tias e tios, muitos deles e delas tendo partido dali somente para casar.

 

Não conheci a ermida por esses tempos, viria a conhecê-la muito mais tarde, teria eu quatro e tal ou cinco anos. As mulheres tinham descido a chapada até ao Roxo, umas para caiar a ermida, outras p’ra lavar e estender os lençóis a corar sobre a erva depois de lavados, enquanto a gaiatagem, eu e outros que já nem recordo, deambulávamos por ali e tudo nos servindo de entretém. 

 


Era comum nesses tempos avistarem-se lá em baixo no roxo, lavadeiras e roupa estendida corando sobre as flores que atapetavam os campos em redor, a ermida ficava a poucas dezenas de metros, uma centena talvez. A partir daí, nós putos, como lebres galgávamos a distância até à estrada nova, novinha, que se estava fazendo do Telheiro a Reguengos e quedávamo-nos embasbacados olhando a imagem que o futurismo gravava nas nossas mentes.

 

Cintilando num emblema dourado e estampado na lateral do cilindro verde que espalmava a estrada preta, uma inscrição a vermelho vivo que alguém nos disse ser "Coolfield Road Roller", gravado no flanco desse monstro, um cilindro bufando e gemendo sempre que lograva mexer-se, e que depois, enquanto as obras duraram passámos a contemplar do alto da vila, dia a dia, vendo a estrada crescendo e estendendo-se em linha recta e a perder de vista.

 


Deveríamos andar por 1969 ou 1970, lembro-me porque nesse ano de festas deixei de ver a estreia de Easy Rider, um filme famoso, com Peter Fonda e Dennis Hopper contando a história de dois motards (eu já era então um pequeno motard) percorrendo o sul e sudoeste dos EUA em busca da liberdade pessoal, pois nesse sábado toda a família estava já embarcada em Monsaraz e me esperava a todo o momento. 


Era o tempo da semana inglesa e eu trabalhara até à uma da tarde, depois enfiara-me na carreira até terras d’el-rei, dali em diante à boleia com um padre, num velho Ford que não passava dos setenta e me deixou quase a uma légua do Telheiro. O padre, curioso, indagou que fazia eu ali especado à boleia e, quando lhe disse que ia para a tourada em Monsaraz soltou um grotesco;


- Paganismo !


pelo que aprendi nesse dia uma palavra nova. Talvez que, se lhe tivesse dito ir para a procissão do Senhor dos Passos, no Domingo, me tivesse louvado e levado até lá mesmo acima… Devia ter amigos e petisco à espera dele no Bizaca pois cortou por uma estrada de terra em direcção à Barrada. 


Não me atrapalhei, meti a direito, passei ao lado da ermida de S. Sebastião (desde essa recuada data que nem perto dela estivera), subi a chapada, a três quartos dela comecei a ouvir a orquestra da artística animando a festa e, a cada pasodoble eu enchia-me de coragem e acelerava o passo, percebendo já a arena numa maré cheia e a entrada de quaisquer touros na corrida. 


Quando finalmente na vila ouvi a banda apelando à morte do touro na arena, já nem a coisa me impressionou, estava estourado, tinha as pernas cansadas mas um rasgado sorriso na cara. Tal qual ontem à noite quando o assalto à ermida acabou e já estava toda a gente no terreiro detrás da escola primária do Telheiro, o santo roubado metido a recato e o pessoal da trupe desmobilizando, dispersando, como na tropa.

  

A aldeia do Telheiro não me foi nunca desconhecida ou mero local de passagem, ali viveu o meu tio Tonhico Ferrador, inda ontem passei frente à casa que fora dele, com um alto e comprido portado à frente e de onde tantas vezes parti pra o Outeiro, sozinho ou com o Tio Domingos Papa-Agulhas, que se amancebara com a minha querida tia Aia. Era com eles que eu passava sempre uma, duas ou três semanas de férias no pino do verão.

 

Cresci muito nesses anos e nessas férias passadas em família, quer no Outeiro quer em Monsaraz, e em que o fogo-de-artifício estoirava mais forte que em qualquer outra vila ou aldeia em redor (incluindo a do Telheiro), festas em que num baile do varandil conheci a “Gafanhota”, a minha primeira paixão e que havia de suscitar em mim p’la vida fora mais interrogações que paixões.


Igualmente me foi turbulenta a eclosão da barba e a adolescência, prenhe de dúvidas, parca de certezas. Curou-me a légua a que distava dali a ribeira da Guadiana, a rapaziada amiga que em cada verão me acompanhava nas brincadeiras e esqueci (desculpai-me, eu era demasiado novo e o tempo de férias não ultrapassava duas ou três semanas), a caça com fisga ou armadilhas, os ninhos, o cansaço desses percursos tantas vezes palmilhados, mas também esses novos horizontes tão mas tão diferentes da cidade, a liberdade de movimentos e os mimos da tia Aia ou da avó Inácia.

 


Lembro ainda o Telheiro, eu com uns quatro anitos, num dia em que com a tia Fina e a tia Bia fui esperar a camioneta da carreira em que a mãezinha, muito branca, chegou vinda da operação ao coração, em Coimbra, sim mãezinha tive saudades, e medo, sim mãezinha eras linda como até hoje não vi, e de ti recordo-me, não me recordo é de um fim de festa como o de ontem, em que nem uma prece, uma oração, uma historieta, um discurso, uma explicação.

 

O cortejo, a multidão, a procissão/caminhada terminou como começara, como uma lagarta nas couves, sorrateiramente, e assim eu próprio fiz, meti-me no carro e dei-lhe gás e festa, um CD a preceito, o volume em alta, nem dei por ter chegado a Évora.

 


 https://caminharmonsaraz.blogspot.com/p/setembro-e-as-nossas-tradicionais.html


https://www.cm-reguengos-monsaraz.pt/locais/ermida-de-sao-sebastiao/