sábado, 9 de julho de 2011

66 - QUANTO MAIS PRIMA ..................




Não consigo ver ou ler obra de Jorge Amado sem que me lembre de “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, tudo por uma analogia muito simples, um facto que traz em bolandas toda a minha família alargada, o regresso a este nosso cantinho à beira-mar da minha estimada prima Michele, agora Michele Legrand.

Regresso devido às frustrações induzidas nos franceses por Sarkozy que, segundo Michele, (ela adorava José Sócrates) nada mais acrescentou à grandeza da França que a beleza de Carla Bruni, beleza em que ninguém vai ferrar o dente, em contraposição com as reformas que ninguém queria nem aceitava mas que revoltaram e enganaram todos os franceses, os quais, como acontece por cá, naturalmente acabaram por as engolir...

Perante este cenário e manifestações quase diárias que a enfastiavam, ela que nunca soubera nem quisera saber o que fora domingo ou feriado, reformou-se assim que pôde e antes que fosse demasiado tarde...

Voltou agora, passados quase quarenta ou mais anos, não recordo bem, e voltou para regressar não às origens, pois não consegue habituar-se nem aos nossos descostumes, nem à nossa desarmonia, ela que, libertária, nunca se quedou ante os usos e fusos de cada terra, antes foi lesta, uma vez mais e como sempre na satisfação dos seus desejos, ela que desta vez nem hesitou fazer a trouxa e se prepara para zarpar rumo a uma miríade de ilhas no Pacifico que dá pelo nome de Polinésia e onde será impossível voltar a encontrá-la.

Michele, reformada de décadas de trabalho no Cirque du Soleil, e de amor livre em França, aguarda apenas um concílio familiar para decidir que fazer da sua vida, agora solta de horários e compromissos.

Eu rio-me da conversa,  Michele, que nunca se deixou prender a nada nem a ninguém só pode estar gozando, mas não goza, ta no sério, esperando os cinco maridos que teve ou tem, de cinco uniões apaixonadamente vividas, para o demonstrar três lindos rapazes (os dois mais velhos já homens) dessas amantíssimas uniões das quais resta uma tremenda e para nós inexplicável coesão familiar, daquelas que nem de encomenda se encontram.

É preciso conhecer Michele para a entender.

Miquelina de seu nome, não sei se por isso se por outras razões, a verdade é que demasiado cedo nos fugiu.

Antes de completar quinze anos teimara entrar num convento, sabia a catequese de cor e salteado sem que alguma vez tivesse lido o catecismo, e apenas minha avó Inácia a lograva ver de quando em vez pairando sorridente sobre nuvenzinha ténue que reflectia cores como as bolas de sabão e em que ela, Miquelina, cavalgando-as e vogando nos ares, afirmava estar ou ser tu cá tu lá com Deus e com Nossa Snhora.

Não lhe tendo sido feita a vontade na terra, cedo se despediu de todos sem que pessoa alguma a haja levado a sério, embora na verdade e chegado o Natal tivesse partido com o maralhal de um circo que descera à cidade, inserida na trupe dos malabaristas, arte em que viemos a saber era mestra, inda que, uma vez mais, ninguém soubesse explicar nem o como nem o porquê.

Jamais alguém a vira equilibrar-se numa corda, andar numa dessas bicicletas de duas rodas, nem sequer nas de uma roda só, jogar com pratos, bolas e garrafas ou até deitar facas, lume pela boca e fumo pelos ouvidos.

Desta fase da sua vida ficou-lhe a sensual tatuagem de uma borboleta dois dedos acima do rabo e por causa da qual houvera já um anterior concílio dos cinco maridos, que decidiram por unanimidade que ela não poderia sob pena de excomunhão apagar aquele símbolo, já tornado onírico para todos eles e que tanto os tinha marcado.

Não apagou e mostrou-me mesmo esse “papillon” colorido que tanta celeuma lhe causara ao longo de meia vida, pois Michele acredita vir a viver ainda outros tantos quantos os que conta.

Michele jamais prendeu um homem que fosse, amou sempre como quem respira e, desconfiando que um marido se afastava para outra paixão, tratava-o com todo o carinho e amor possíveis, fazia-lhe a trouxa e punha-o fora com tristeza e lágrimas verdadeiras, rogando-lhe que voltasse logo que essa paixão lhe passasse.

Desta forma juntou maridos e filhos numa comunidade para nós inconcebível, nem sei por que artes mágicas ou hipnóticas fez deles e à vez verdadeiros devotos, pois ao longo de quarenta anos os amou alternada mas nunca simultaneamente, tanto mais que os espera vindos numa carrinha de nove lugares, que trará ao concílio cinco maridos e três filhos de pais diferentes, os quais participarão e julgarão os passos que a companheira e mãe pretende dar, já que nenhum está disposto a abdicar da sua proximidade, sinónimo de desamparo, e há que unir esforços e teimar demovê-la da ideia de zarpar para a Polinésia na companhia dum antigo fuzileiro que conheceu aqui, em plena visita ao templo de Diana, criatura que, como ela, conta cinquenta ou mais anos e regista aventuras em todas as partes do mundo, somente a superando em tatuagens que vão desde “amor de mãe” até ao amor por tantas mulheres e terras quanto o comprimento dos dois robustos braços consente.

Não acredito que Michele alguma vez se tenha deitado numa cama com os cinco, como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, nem a imagino polígama, mas que soube fazer uma gestão meritória e harmoniosa da sua vida e dos seus amores não lhe podemos negar, a ela devo a fundamental preocupação que inda hoje me anima, o facto de ser tão importante ter de quem gostar como ter quem goste de mim.

Claro que embora com uns aninhos a mais que eu, Michele foi uma das minhas iniciadoras, e com a desculpa estafada do “quanto mais prima mais se lhe arrima”, muito me ensinou enquanto brincámos os dois nos primórdios das nossas adolescências e, enquanto eu a deixava ver a minha se ela me deixasse ver a dela, e ela me deixava brincar com a sua se eu a deixasse brincar com a minha, lá fomos aprendendo, inocentes e traquinas qb, o abc do amor.

Foram tempos inesquecíveis que explicam que seja eu um dos poucos ou dos únicos primos com quem abertamente se dá, tão abertamente que logo à chegada me atirou ;

“Ólá meu artolas ! meu maricas ! Eu é que te trago aqui uma cor que vale a pena ! Nem vais acreditar no que a prima te trouxe desta vez !

E passa-me para as mãos um valioso souvenir, uma embalagem de tinta azul eléctrica para o cabelo, brilhante à noite, da “Garnier, cor 1723RR, Feux Infernal”, ainda não à venda em Portugal e que fará as delicias cá do mano quando das concentrações motard’s, já que quer o azul quer o vermelho vivos que uso, segundo a Michele, não têm nem o brilho nem a originalidade da cor que agora me traz, e nem sequer brilham na escuridão com a intensidade desta.

Desconfio que serei mais um a tentar evitar que a Michele se pire p'rá Polinésia não ? Que acham vocês ?

Uma mente aberta é um tesouro sabem ?

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