E foi assim, uma borboleta bateu as asas e, nos antípodas a brisa agitou-se refrescando-me as ideias, que a esturrina empastara. A esturrina ou a cerveja, porque isto de viver no inferno tem o seu preço, um homem acalorado acaba por afogar-se onde pode, mais a mais os torresmos estavam uma delicia e havia que empurrá-los goela abaixo com qualquer ajuda né ?
Pudesse eu e até os pés enfiaria num alguidar com cervejames fresco. Os pés e a cabeça, que me estourava com os arremedos do vocalista, menos sofríveis que os arrotos dos rateres que, de vez em quando uma alma mais inebriada fazia soar no recinto.
Galhofei com os compinchas e, respaldado numa cadeira mais mole que o alcatrão da estrada libertei os olhos para que vogassem desinteressadamente pelas coisas, pelas coisas e pelas pessoas. Pelos sorrisos, pelas gargalhadas, pelas bocas prenhes de ânimo, pelos cabelos e lábios pintados,
- E pelas unhas ! Mete aí as dos pés pois também contam Madaleno !
E depois há aquela ali, trouxe-me à memória as aventuras do Tom Vitoin.
- Topa bem a personagem ó Margarido,
sim, podes deixar ficar essas p’ra mim.
- Topem-me aquele corpete rendado, a cintura apertada…
- Apertada não sff ! Diria antes cintada, torneada pá, aquilo é uma boneca de banda desenhada, já a reconheci, das desventuras do Tom Vitoin, repara na chinela a fugir-lhe do pé, o calção acabando estrategicamente entre a canela e o joelho, em seda... A unha vermelha, não bem vermelha, antes fúxia, como diria a Soromenha.
- À nossa ! À nossa que se há quem mereça somos nós ó Margarido !
- Sim, claro, aquilo é Wonderbra com certeza ó professor !
- No, no, no, no, no, no, mil vezes no pá !!! É natural man !
Mas não teimo que eu já estou a ver mal e o vocalista confunde-me as ideias.
- Claro que é natural pá, não vês que rebenta pelas costuras ? Aquilo nem são formas ó miúdo, aquilo são tentações, claro que acredito em Deus, e olha que Ele é mesmo provocador não achas ?
- Olha, passa-me aí a cabeça de xara que nem sei o que me abriu o apetite.
Sim Heliodoro, eu sei que não estas nos teus dias e que a carne é fraca, mas também tens ali pasteis de bacalhau filho, eheheheheheh !!!!
Naturalmente não é de pau, duvido que haja aqui alguém ou pior já toda a gente teve a sua quedazinha, á excepção do Barnabé, coitado, esse teve uma quedazona… cai sempre… está sempre a cair.
- E já ta c’os copos claro, não demorará a cair da cadeira. Quando está assim fujam dele pois a conversa é sempre a mesma, a Fany, Deus lhe tenha a alma em descanso, e a Dora, que naturalmente não era de pau e ficou toda amolgada. Enfim, tristezas, diz-se que ele nem ia bebido, ao menos isso.
Esta malta gosta é de emoções fortes de quando em vez…
- E de vez em quando uma coisinha assim ! Que até se me acelerou o bater do coração, rematou o Hilário babando-se e que ate ali se tinha mantido um tanto ou quanto alheio à conversa.
E, repentinamente, badammmmmmmmmmm !!!!!!!!!
O Adelino, que ainda não tinha sido noticia, levantou-se, elevando a sua voz de barítono, erguendo na mão uma garrafa de Pêra Manca, balbucia duas ou três palavras ininteligíveis, rodopia tropeça no seu próprio entusiasmo e estende-se ao comprido arrastando mesas e cadeiras.
O primeiro pensamento que me ocorreu foi que, se não se tinham divorciado ontem a megera jamais lhe perdoaria aquela triste figura e divorciar-se-ia amanhã, o segundo pensamento a atravessar-me os neurónios, deveu-se ao facto decerto casual de ter anteontem feito oferta pessoalíssima duma garrafita precisamente igualzita.
E estava eu cogitando estas manigâncias quando me cai uma mosca no prato, quer-se dizer-se, um moscardo no copo da cerveja, atravessara nem sei como os destroços que o Heliodoro espalhara ao espalhar-se, pardon por cause da redundância, e avançou, caminhando como Cristo sobre as águas, ou sobre as pedras, pé ante pé, abeirando-se de mim, o único que antes durante e depois do reboliço se mantivera impávido, porém, ninguém tal adivinharia, se me levantasse mijar-me-ia…
Havia que conter-me e, saber esperar a ocasião, e depois, num relâmpago, correr para a casa de banho rezando para que estivesse desocupada. Mas quem sabia, a não ser eu, os fluidos onde já vogava ?
Como Mata Hari ela veio, condicionando o bailado, até puxar de uma cadeira e sentar-se á minha beira. Até rima, repararam ? Será sinal de bons auspícios ?
Há muito que eu andava fugindo dela, falava muito, falava muito depressa, fazia perguntas a mais, começava confundindo-me primeiro e irritando-me depois, era demasiado insistente para o meu gosto, demasiado solicita, demasiado independente e demasiado oferecida.
Nunca simpatizara com a personagem, mas hoje era dia festa e eu transbordava de cerveja, de paciência e complacência, e para ser franco, estava quase a mijar-me só para me não levantar, todavia encarei-a com placidez.
- Admiro o esforço estudado e aplicado na irrelevância que atribuís a tudo quanto te orbita. Simulado, disse ela mirando a paz com que eu pairava sobre toda aquela rebaldaria.
- Oh ! Tu outra vez, tu e de novo essa tua dissimulada irrelevante aparência de esforço aplicado a cada coisa que fazes ou dizes, isso é uma fuga estudada pá, já te conheço de ginjeira essa aparente indiferença por tudo quanto pões na mira… vá lá saber-se porquê, vá lá a gente adivinhar, quando muito abordaremos hipóteses, e já será muito, já é dar-te muita atenção e a coisas que nem o merecem dedicar muita minucia, como dizer, colocar em demasiada evidencia coisas a que nem minudencias devíamos dedicar, assim és tu e os assuntos que arrastas sempre atrás de ti, como os pavões o penacho.
- Enfim santa, haja quem te compreenda e te ature, e quem saiba aturar-te, aposto que nem haverá muitos, ou pelo menos nem assim tantos. Desconfiei sempre da tua irrelevância ensaiada, escondendo uma assumpção que evitas a todo o custo mostrar, camuflando os limites da coisa ignorada mas que a tua táctica descortina estrategicamente.
- Desculpa que te diga amiga, mas toda essa tua conversa mais não pretende que confundamos o género humano com o Manel Germano, é essa a tua filosofia.
Ela sorriu, e ao sorrir quis enlear-me na turbulência daqueles olhos e daqueles lábios vermelhos e carnudos (aposto que estivera a morde-los), lábios que um homem, qualquer homem, não desdenharia morder, mordiscar, para não dizer melhor.
Adorava-lhe os lábios, bem demarcados, e os seios pequenos, nem grandes nem pequenos, mais para o pequeno, a meu gosto, cheiinhos e redondinhos, nem duros nem flácidos, mesmo a meu gosto e desejo e senti, juro que senti naquele momento vontade de dizer-lho, sussurrar-lho, ao ouvido, contudo as circunstâncias ditam o destino de um homem, distraído exagerei no tempo de espera e, muito conscientemente senti a bexiga aliviar-se antes que pudesse fazer alguma coisa pelo que, bem bebido como estava, nem pudor tive para corar ao saber-me todo mijado.
- Olha querida, isto tá cheio de malta porreira, escolhe á tua volta e filosofa quanto quiseres que eu já estou como hei-de ir, a casa chegarei decerto, é só atravessar a rua, moro ali em frente. Fica bem.
Ziguezagueando entre as motas saltei o portão e airosamente entrei em casa. Meti-me debaixo do chuveiro e esqueci a água fria correndo enquanto me aliviava outra vez, mas agora por vontade própria.
- Estás a espirrar querido toma cuidado contigo ! Gritou-me a Luisinha do outo lado da porta, e eu desejando que ela não entrasse ou gritaria logo, como só raras vezes fazia; meu grande porcalhão !
- Tá bem amor OK tá bem ! Respondi.
Mas não estava nada bem, apanhara uma valente constipação que me deitou abaixo e ainda ando a tentar curar quase 15 dias depois.
Filosofias ? Só Kant, ou Schopenhauer, e em sítio resguardado.