quinta-feira, 1 de maio de 2014

188 - OBRIGADO SELECÇÕES DO READER’S DIGEST…


Não sei dizer-vos já por quê, mas sei que primeiro o aparecimento e depois a permanência daquela revista lá em casa me foi fazendo esquecer o Mosquito e o Cavaleiro Andante. Talvez tenha sido pela mão do mano, seja como for eu esperava ansiosamente por cada fim do mês e rondava a montra da papelaria Angola na esperança de a ver chegar pois não tinha um dia certo.

Inda hoje lembro aquele menino paraplégico do Dakota ou do Nevada, a quem o pai mandara construir uma maravilhosa mesa em forma de U e que na cama o rodeava. Recordo como ele se afadigava para manter a correspondência em dia com todos os amigos que tinha espalhados pelo globo, sem redes sociais, sem net, sem fotocopiadoras, apenas com esforço e perseverança uma criança ligava-se e abria-se ao mundo esquecendo o determinismo que à pequena cama o limitava.

E fechava-me em casa agarrado à revista, abrindo horizontes, de longe mais vastos que os que um pequeno país e o nosso Alentejo alguma vez me poderiam dar. Cresci com o folhear daquela pequena revista, com a sua singularidade, o seu individualismo epidémico.

De amigos chegados ouviria mais tarde

- É propaganda capitalista Humberto, fascismo encadernado…

E assim abri os olhos para os ismos e istmos que nos ligam ao mundo ou que do mundo nos isolam.

Naquele dia o paizinho explicou-me a fuga tão negra pintada e desenhada na impressionante imagem duma revista, o porquê da noite, a magia do voo dos balões, o paradoxo dos contrários, o mistério das cortinas em ferro e a fuga para a liberdade em que essa noite ventosa e de breu acolheu no regaço uma família de argonautas sonhadores e utópicos cavalgando o medo e a quem o lirismo servira de bússola.

- Parece uma imagem da Guerra Ilustrada no Século dos sábados

Deixou o paizinho escapar entre dentes para consigo mesmo sorrindo enigmaticamente ante o colorido das imagens, apelativas, chocantes, retorquindo do mesmo modo.

- E só fogem p’ra este lado ?

Demorei uma eternidade a entendê-lo, quase uma década, e só muitos anos mais tarde soube de fugas para o outro lado, Peniche, submarinos, coragem e uma história tão boa ou melhor que a do balão mas que, já entendia a razão, jamais veria contada naquela revista. O paizinho era, comigo, parco em palavras, e, não fosse o meu ouvido de criança desconfiada e jovem atento como um radar, jamais lhe entenderia os desabafos largados entre dentes, ou ciciados entre amigos numa solenidade de bedel mas que a minha memória guardava e somava até ao infinito.

- “Obviamente demito-o.” Tal e qual amigo Leandro. Sem tirar nem pôr. Por isso lhe chamaram o General sem Medo.

Esses sussurros ciciados e as amizades repartidas com sindicalistas na adolescência, fermentaram em mim durante a maturidade os frutos do lido e ouvido a que somava o estilo aventureiro e agradável das corajosas odisseias plasmadas nessa revista. Os solilóquios atentamente escutados ao paizinho ou as conversas captadas nos murmúrios por ele divididos com o senhor Teófilo e o vizinho Moisés maturaram-me as ideias. Muitos anos mais tarde nem o “fim da história” determinaria a colheita que esses acontecimentos haviam de forjar alimentando-se da minha reserva de percepções, cultivados que já eram, bem fundo no meu ser, os ideais que ainda hoje partilho.

Muito do meu optimismo teve início nesses tempos em que, durante algum tempo, tal como a maravilhosa mesa em forma de U o fora para uma criança aberta ao mundo, essa revista foi para mim o alfa e o ómega das abcissas e ordenadas entre as quais a minha vida girou, uma revista que me alargou os horizontes limitados que da minha singela janela vislumbrava. Ao invés de viagens em balão voguei nos mares da imaginação, alimentado por aquelas páginas extraordinárias, simultaneamente maravilhosas e excessivas que tão sub-reptícia e artificiosamente se inculcaram na minha alma. 

Obrigado Selecções do Reader’s Digest.


terça-feira, 15 de abril de 2014

187 - O MEU VIZINHO DO 56 ..............



O meu vizinho do 56 criou um "Grupo Para a Revolução" ....    

Começou por deixar de parte todos que tivessem gatos,
E de seguida também quantos tinham cão,
Mais tarde até os amantes das rosas,
E os que desfolhavam malmequeres.

Não tardou e colocou de lado quantos tivessem jardim...

Bem...

Primeiro começou a falar consigo mesmo ...

Depois comprou um papagaio .


Acho que vai avançar sózinho com a revolução ...

:/
...

segunda-feira, 14 de abril de 2014

186 - QUEM VÊ CARAS NÃO VÊ CORAÇÕES :) ESTAR EM REDE :) :) :)


                               W.W.W. ESTAR EM REDE / ESTAR NA REDE :)

Estar em rede exige estofo
e alguma bonomia
ainda mais complacência
ah ! e doses fartas de inteligência
e tolerância J J ;) ;) ))))))))))))))))

Requer que se conheça a ironia
se tenha uma prática assertiva do humor
capacidade para disfarçar o sorriso se esforçado
e para o humor negro estar bem blindado
enfim, uma postura educada e aberta

Uma atitude que concite igualdade
porque aqui não há alunos nem mestres
nem os outros são subalternos ou acólitos
rede é mesa de café, mosaico de damas
tabuleiro de xadrez, pano de bilhar
lençol de dossel… crê …..

Bota aqui a tua sensualidade
pois na montra está a tua sexualidade
e não alçardes nem disfarces
isto não é audiência, nem baliza ou barreira
mostra-te, avança devagar e sem tropeções
seguro, segura-te, segura-os…

E não olvides, antes que critiques, assume-te
nem saltes nas costas de ninguém, não derrubes
não trapaces não burles, cultiva a coerência e a verdade
não cobices nem exijas mais que a tua parte

A w.w.w. é dúbia, dupla, poli, multi, super, hiper
tal qual um cubo o pode ser, tridimensional
ou espelho curvo, concavo, convexo, numa feira
entra por aqui e faz amigos não bloqueios
escava aberturas, mas jamais enleios
ah ! e disfarça em ti essa misantropia  fingida !


e agora sim, sê bem vindo J ou Benvinda ;) 

...

quarta-feira, 9 de abril de 2014

185 - VIVA A PRIMAVERA* por Maria Luísa Baião...

                                   

Adoro as roseiras bravas, aquelas centenas de pequenas rosas que lamento não poder trazer para a minha varanda, como se desse modo pudesse carregar todo o Alentejo para casa, cobrir com essas rosas as sacadas da cidade, desenhando com elas céus multicores, dando forma ao mundo, retocando odores, como se estivesse na minha mão escolher matizes, fazer-nos felizes.

Certamente que Vivaldi, quando escreveu “ As Quatro Estações” começou pela “Primavera”, e muito provavelmente essa famosa composição que o imortalizaria, teria sido escrita na Primavera do longínquo ano de 1726.

A verdade é que, quase trezentos anos depois, essa partitura continua a ter em mim, (em nós ?), uma capacidade sedutora para me apaziguar a alma, me conciliar com o mundo, me tornar sensível ao que me rodeia e me dar alento para tentar arrastar tantos de vós numa onda de partilha e comunhão de que os tempos modernos parecem querer afastar-nos, como se um enorme turbilhão nos arrastasse inexorável e teimosamente para um individualismo egoísta.

Foi ao ouvir o “Allegro” desse Concerto Primaveril, enquanto o carro deslizava rumo á cidade sadina no passado fim-de-semana que cogitei esta crónica que hoje vos ofereço.

Realmente, se seguirmos o exemplo de Vivaldi ( 1678-1741), cuja vida, prolífica digamos (criou em 63 anos de vida mais de 470 concertos) não lhe deu com certeza tempo para perder em minudências, concluiremos que o tempo é precioso e não devemos desperdiçá-lo, sob pena de estarmos a cometer um atentado contra nós e contra todo mundo.

Sendo o tempo, a vida, o bem mais precioso que temos, é uma dor de alma como alguns de nós o não aproveitamos em atitudes positivas, nem que seja, como é o caso, ouvindo boa música e pensando no nosso devir colectivo.

Reparo agora como o Alentejo é lindo nesta época do ano, os campos verdes, flores das mais variadas cores compondo um quadro irrepetível, aqui e ali pintado de exuberância, mais acolá semeado de papoilas e malmequeres, além mais ao longe um espelho de água reflectindo o porte altivo de uns sobreiros, nossa imagem de marca, assinatura do Mestre de cuja paleta saíram as maravilhosas cores e aromas que nos envolvem num abraço quente, prenúncio de um Verão que ainda tarda.

Queira esse mesmo Mestre que o desenvolvimento que tantos desejamos para o Alentejo lhe não roube a beleza, que venha a processar-se de forma harmoniosa, tão harmoniosa quanto o equilíbrio que Vivaldi tão bem soube imprimir ás suas composições.

Como essa mão invisível que miraculosamente suspende no nada a esfera celeste, também o desenvolvimento da nossa terra terá que ser, como magia, sustentado, articulado e definido partindo da riqueza que já temos, truísmo messiânico ao qual só em momentos de rara sensibilidade damos o devido valor.

Mas claro que essa ciclópica tarefa é obrigação de todos nós, vou fazendo a parte que me cabe, mas todos não somos demais para avalizar um futuro colectivo, trilhar caminhos que nos levem ao devir, à mudança, à oportunidade de desenhar com mil flores um arco-íris sobre esta nossa terra, fazer uma festa e com o sorriso de todos pintar um painel, um mural, fixar o momento, recomeçar a história, virar a página, assistir ao início de nova dinastia.

Um painel de azulejos e de aguarelas, cores garridas, um mural incandescente, um crescendo de alegria, girassóis rodopiando, festa com fanfarras, grinaldas de fogo de artificio, gentes ébrias de libertação, dançando a valsas, bandeiras flutuando, e bem no alto, uma estrela cadente simbolizando uma época vil e apagada, pantomina deitada por terra, despeitada.

À beira do Sado, degustei um branco de Palmela, deliciei-me com um sargo grelhado, que isto do Alentejo não são só odores, são sabores, e que sabores !


O meu companheiro, intrigada inicialmente com o meu silêncio, e posteriormente com o meu excessivo palavreado, só compreendeu este verdadeiro estado de alma quando lhe segredei ao ouvido que era melhor ser ele a trazer o carro, não fosse o ticket da portagem codilhar-me, com isso ou com qualquer brincalhão que viesse a fazer-me soprar no balão…

Imagem : Monte Alentejano com Papoilas 2006 - Oleo sobre tela de linho - Salvacao Barreto.jpg

* Nota : Texto já publicado no DS nos fim dos anos 90 / principio do novo século J

terça-feira, 8 de abril de 2014

184 - TINHA SIDO HOMEM HONESTO * por Maria Luísa Baião...


Todos estranharam. Tão novo, nem sequer fumava. Porém não amava as coisas como dantes. Em vez disso já só a imagem delas o bastava. Há muito que se quedara. Talvez “quebrara” seja o termo exacto.

Concluíra que não tinha amigos, ou antes, não acreditava ter amigos. Não cria mesmo na amizade.

– “Tudo falsidades” , dizia.

Encarar a mulher e os filhos há muito se lhe igualara a pesado fardo. Estava vencido. Assim se sentia, assim entendia que o viam. Quisera mesmo morrer e não achara como, nem como nem coragem para o fazer.

Mais um sinal que eu notara na lista das suas intuídas imensas fraquezas, debilidades. Incapacidades que agora se perfilavam umas atrás das outras preenchendo-lhe de pesadelos o pensamento e o viver, cada vez mais insuportável para ele.

Fechava-se portas dentro, não tolerava ninguém. Saía à rua numa necessidade interior de estar com os outros, cuja presença não aguentava, volvendo a casa e aos seus pensamentos inconfessáveis de inutilidade, os mesmos que o não deixavam dormir, nem estar acordado.

A dignidade em cacos.

Confessara-me há alguns anos que, quando casara, se desfizera por tuta-e-meia de uma courela deixada em herança pelos pais e rumara à cidade.

- A pior estupidez da sua vida, dissera-me.

Por vaidade abandonara o campo e uma tão desvirtuada, creio que empregara a expressão desvalorizada vida rural e a pobreza a ela associada, esperançando a cidade.

- Uma parvoíce, admitia agora.

– “Ao menos não estaríamos neste estado. Umas couves, umas hortaliças, umas galinhas e uns coelhos, ou mesmo uns porquitos e uns borreguitos. Pelo menos não morreríamos à fome”.

Sempre tinha sido homem honesto. Agora achava ter sido essa a causa da sua perdição. Dei-lhe o desconto, o período que atravessava não o deixava ver claro. Até o 25 de Abril abjurava. Não podia estar no seu perfeito juízo. Assim pensei nessa altura.

Era trabalhador. Fora coveiro num cemitério, lavador de carros numa estação de serviço, distribuidor de gás, bombeiro, pintor de casas nas horas livres para compor os fins de meses.

Nos últimos dos seus bons anos servira numa grande serralharia que houve em Évora.

Depois disso chamaram-lhe velho, e à medida que o subsídio de desemprego minguava, até desaparecer, foi-se chamando a si mesmo de inútil, incapaz, traste.

Poucos mais anos teria que cinquenta, mas a barba, sempre por fazer, denunciando os cuidados ou a paciência que já não tinha para consigo, faziam-no mais velho aos olhos de todos. Chamaram-lhe velho, e daí até se assumir como tal foi um passo.

Conheci-o quando das primeiras desavenças que irromperam em sua casa. Casa onde não há pão…

Sei que muitas vezes não comia, e sempre acreditei de mim para mim que fosse por não ter fome. Uma ou outra vez dei-lhe biscates a fazer, a sofreguidão com que os almoços e lanches desapareciam da sua frente denunciavam-no.

Procurei ajudá-lo a solucionar o problema e muitas promessas ouvi. Ainda hoje por cumprir. Agora já não vale a pena.

Incapaz de encarar os filhos, ou estes de o encararem a ele, trocavam-se uns aos outros as horas de encontro, ao almoço, ao jantar.

A mulher sempre em pranto, a vida em desencanto, os filhos exigindo, o pecúlio não bastando, o drama evoluindo.

Maria Genoveva, a mulher, trabalhara de doméstica desde que se lembrava numa casa de família classe média. Classe média que foi encolhendo, encolhendo, e quando ficou abaixo da mediania descobriu que não podia dar-se ao luxo de ter uma Maria.

A pobreza tem sempre as suas fundações, mesmo sem razões. Assim se acabaram as sopas da patroa, como há muito se haviam acabado as sopas nos quartéis. Nunca mais os filhos teriam de engolir o orgulho ao vestir as roupas sobradas aos meninos.

A vida de Manuel recuando. Não era homem de beber ou de outros vícios. Talvez melhor se os tivesse, ao menos poderia descarregar as frustrações. Amuava, interiorizava, teorizava, e não compreendia. Os filhos a ficarem homens. Sem uma profissão, um emprego, uma esperança de trabalho.

Ao menos um futuro, Manuel não pedia mais.

– “Ao menos não estaríamos neste estado. Pelo menos não morreríamos à fome, umas galinhas, uns coelhos. Talvez tivesse dado um bom agricultor ”.

Desenraizado, Manuel sufocava sob o peso das arbitrariedades da vida. Não tinha escolha, aliás nunca tivera.

Por mero acaso escanhoara-se naquele dia. Quem sabe se um pressentimento de que os seus sofrimentos teriam finalmente fim.

Os médicos estranharam. Todos eles estranharam. Tão novo, nem sequer fumava. Manuel morreu no passado dia 21, dia em que começaria a sua quinquagésima quarta primavera.

Foi encontrado fulminado por um enfarte junto às ruínas da antiga serralharia onde tivera sido feliz durante tantos anos.

Ninguém sabe explicar o que por ali andaria fazendo, tão longe de casa, tão longe de todos, tão longe de tudo.

Paz à sua alma.


* Publicado por Maria Luísa Baião in Diário do Sul, Kota De Mulher, Évora, em finais de 2003 ou princípios de 2004.