Olhámo-nos
nos olhos, demoradamente, mirámo-nos de alto a baixo, detalhadamente,
expectantes, como dois adversários num duelo, prontos a disparar ao primeiro
movimento ameaçador do outro
Medi-o
à lupa, o olhos fundos de alecrim foram o primeiro indício, apurei os sentidos
e notei-lhe um cheiro inda que leve a flores de giesta, afrouxei os músculos
como quem afasta as palmas dos coldres prometendo calma e, com mais vagar
observei-lhe os ombros largos, que vestiam uma camisa branca sem colarinho, o
peito era franco, como o dos cantadores do cante, os braços compridos, bons pra
sementeira dos alqueives e as mãos brancas, rugosas, de dedos compridos
lembrando-me alguém que vira descascando a riqueza dos sobreiros
Cada
um recuou um passo, hesitante, temente, sem perder o nexo à distância que
garante a confiança, foi aí que ele falou para mim
-
Bem, na verdade não falou, balbuciou qualquer coisa que demorei a entender
devido à pronúncia afrancesada
Mas
pelo ar limpo, o cabelo de melenas desgrenhadas, os botins mal amanhados, a
fralda por fora da camisa, parecia-me ser ele, há quanto tempo nos não víamos,
trinta e tal ? Quarenta ? Ah ! E o nariz aquilino ! E as patilhas? As patilhas
!
Voltei
a mirá-lo. Magro como um cão, maçãs do rosto sumidas, pele branca, todo ele
branco, na boca um sorriso e, desenhando-se-lhe cristalinamente nos olhos, duas
planícies !!
Era
ele ! Era impossível não ser ele !
Foi
então que chegou perto do fim a fita que, no subconsciente se me desenrolava
vertiginosamente, flashes, avanços, recuos, pausas, reset, dizem-me que na hora
da morte vemos o mesmo filme, não sei, neste só ele, ele e eu, o passado
correndo impetuoso na bobine, trazendo ao presente tudo que gravara, ele e os
braços compridos de semeador, as botas caneleiras descuidadas, a calça de ganga
desbotada, o cinto de fivela à cowboy, os cabelos pelos ombros, a pasta do
portfólio, o autocolante nela em laranja fluorescente “MAKE LOVE NOT WAR”, e os
pincéis !
Sim
isso os pincéis !
De
imediato lhe mirei as mãos, os dedos de artista, as unhas, roídas e aparadas
mas cada uma suja de sua cor, de acrílico, aguarela, guache, óleo, em cada uma
um fino traço de sujidade denunciando-o
Era
ele ! O Délio !
Levantei
os braços e avancei sem dúvidas nem restrições, descurei as armas, esqueci os
coldres os revólveres e o cinturão das munições, ergui os braços como quem
larga os cuidados, abri as mãos como quem esquece a enxada, a foice, o martelo,
a bandeira, abracei-o com vontade e senti nas minhas costas as suas manápulas,
ainda o abraço não tinha começado e já as línguas se desatavam na ânsia de pôr
em dia quarenta anos de escrita
-
Sabia que tinhas ido para França
-
Sabia que não morreras na Namíbia
-
Sabia da tua passagem por Argel
-
Sabia que casaras com a Luísa
-
Sabia que estiveras cá em 74
-
Sabia-te à esquerda ainda navegas nessas águas ?
-
Soube que te andavas casando todos os meses eheheheh
-
E não havia net faria se houvesse… Almoçamos no Narda ?
- O
Narda já acabou
-
Vamos a Reguengos !
-
Vamos antes ao Redondo !
-
Lembras-te daquele professor de francês meio marado e barbudo que tinha um dois
cavalos ?
- O
que era coxo ? O Artur, ou Raúl ou Saúl ? Se lembro ! Se aprendi bem francês a
ele o devo ! Agora deve ser um tipo para a nossa idade, teria o quê ? Mais
cinco ou seis anos que nós ? Estivemos vai que não vai para ir com ele num
passeio a Marrocos recordas-te ? E as tuas pinturas ? Ainda continuas na onda
psicadélica ?
E
rimos os dois a bom rir, rimo-nos muito, pusémos em dia quarenta anos de riso
atrasado, e fomo-nos ao vinho branco de Redondo, gelado, e ao tinto de
Reguengos, corrente, e aos queijos e linguiça assada, à cabeça de xara, aos
secretos grelhados, ao polvo de vinagrete, às sardinhas em escabeche,
empanturrámo-nos de pezinhos de porco de coentrada, alambazámo-nos com a sopa
de cação e a rechina com rodelas de laranja que é o tempo dela, telefonámos á
família e aos amigos e pela hora do lanche já eramos quase uns vinte em roda da
mesa, que nos contei como faria qualquer escrivão da puridade enquanto ele me
contava da França, do Benelux, da tenda ou bancada, da banca é o mais correcto,
da banca que tinha no Marché Aux Puces, o Mercado das Pulgas em Paris
-
Comprei lá há muitos anos o “Quadrophenia” um duplo álbum dos Who que não tinha
saído cá, andava por lá vadiando com a Luisinha, bela música ! Uma bomba !
Abandonara
havia uns vinte anos a pintura, contou-me. Já ninguém comprava arte aos novos
artistas, fora algumas vezes convidado a falsificar pintores famosos mas
recusara, não era a cena dele embora tivesse sido fácil, pintava cenários e
publicidade para teatros e cinemas, aderira forçado à moda do design comercial
como me disse a rir, estava cá há umas quatro semanas e já sondara “o mercado”,
tivera esperanças de ficar mas tudo o aconselhava a voltar, já não havia em
Portugal lugar para a publicidade de exteriores disse-me cabisbaixo
-
Nem isso nem empresas nem teatros nem cinemas respondi-lhe eu, se te safares só
em Lisboa ou no Porto e bái bái…
-
Estive duas semanas em Lisboa em casa da mana Olinda, não dá, rendas caras,
tintas caras, pincéis, telas, tudo, nem uma promessa de trabalho consegui, acho
que isto está pior do que quando daqui me fui há mais de 40 anos
- A
quem o dizes Délio !
-
Não vale a pena, vou voltar, ainda bem que não me desfiz de um estúdio que
tenho lá há bem mais de dez anos
Entretanto
e sem que tivéssemos dado por isso caíra a noite, um grupo de cantadores entrou
em surdina entoando as Janeiras e inadvertidamente dei por mim cantando-as, de
braço dado com a Luisinha que adora o cante alentejano e me desafiara. Metade
de nós acompanhava o grupo quando me apercebi que o serrabulho era demasiado e
a Gabi confundira o rosé de Borba com o Bordeaux, de que era amante, e
exagerava, ou sumíamos depressa dali ou alguém teria que a levar em braços ou
ao colo até casa, nem seria essa a primeira vez, nem a quinta ou sexta,
aguentava pouco e como estava era uma questão de tempo
Quando
acabámos a desarrumação acusava a “luta”, garrafas de Poejo, Fedrisco, Anis,
Medronho e Ginginha enchiam a mesa, os pratos dos doces conventuais e os copos
vazios exalavam um olor adocicado a álcool que os cafés fortes não dissiparam
Desde
os cantadores que o convidado virava a cara revirava os olhos e torcia o nariz
enjoado, estranhei, pensara o Délio um saudoso amigo das tradições e disse-lho
-
Tradição o caralho pá, não os vi mas soube que estiveram cantando em Paris na
semana em que me vim embora pra cá, só palhaçadas, só temos jeito pra
palhaçadas, mais valia que aplicassem o esforço em coisas que desenvolvessem o
país
Embatuquei,
desci duas notas o volume do meu cante, não fosse ofendê-lo porque entendi a
sua negação, na verdade o país que o rejeitava pela segunda vez continuava
alegre e inconscientemente em festa…
https://www.youtube.com/watch?v=CPbylKVCDAk&feature=youtu.be