Não sem alguma razão a minha amiga Floripes deu-me hoje um sermão. Não foi o sermão da montanha não, foi antes um responso perante a minha cruel insensibilidade, e o pior de tudo foi ter vindo acompanhado de uma piada maliciosa, susceptível de ferir terceiros e contra a qual me insurgi de imediato, infelizmente com pior resultado que o pretendido e de que logo me arrependi pois ela atirou-me:
-
Pois pois, mas se fosse para comprares o livro do Banana no Quiosque Primavera até te
babarias como um cão, nem que tivesses que esperar seis meses em pé numa fila…
um mordaz desabafo dito por ela numa injusta e soez alusão
ao facto de eu pagar a simpatia da Micas com mais simpatia ainda, e para além disso por lhe comprar no quiosque, para a minha netinha, os volumes do “Diário de Um Banana”, que já vão na
10ª ou 15ª série… quiosque ao lado do qual ela passava sempre ao largo ou se obrigava a mudar de passeio...
Uma piadola
descabelada daquelas não me atinge só a mim, mas também a Micas do Quiosque Primavera, a
alegria da avenida, uma simpatiquíssima matrona cuja graça há-de superar sempre
a da Floripes, demasiado séria para o meu gosto e que passa a vida colocando na
rádio discos como Um Amor Impossível, O Meu Amor é Um Sonho, Um Dia Quero Ser
Tua, e outros do mesmo jaez, para depois me vir perguntar se ouvi o programa
dela naquela manhã, ao que eu invariavelmente faço orelhas moucas, ou ouvidos
de mercador e respondo ter perdido a manhã na bicha das finanças para pagar o
imposto de selo do carro ou o IMI.
Esclareça-se
que a Floripes é radialista, tem um programa musical matinal, e aposto que
adoraria que eu lhe ligasse um dia para o programa pedindo-lhe um disquinho, do género Acordar Ao Teu Lado É o Meu Sonho… claro que não o farei, sou homem de
princípios, fiel a mim mesmo e à companheira que escolhi e não vai ser uma
Floripes qualquer a dar-me a volta por muito que ela gostasse de o fazer.
Há
uns três quinze dias a Floripes pedira-me que escrevesse algo sobre a rádio
cujo dia mundial se comemoraria a 13 de Fevereiro, mas eu, que tudo que a
Floripes diga arquivo na pasta “Aguas de Bacalhau”, esquecera-me completamente.
Vem daí o seu recente azedume e ressentimento para comigo, porém não o fiz
propositadamente, esqueci-me mesmo, e vou tentar emendar a mão dando-lhe
esse prazer ainda que fora do prazo, até por eu mesmo ter algumas ligações
fortes à rádio, coisa de que nem só a infeliz Marie Curie (1) se pode gabar, ou
antes lamentar, o que terá sido o caso…
São
mui antigas as minhas ligações à rádio, lembro-me da minha avó Bernarda (2) ter o
que na época se chamava “Galena” (3), com a qual me seduzia e entretinha
girando um botão, enquanto me pedia que colasse a ela o ouvido, isto é, que ficasse
atento.
-
Escuta esta, Sidney, deve ser a Rádio Antípodas, falam muito mas passam pouca
música.
e eu ia “vendo” o mundo
rodar à medida que ela girava o botão, como quem rodopia nas mãos um globo
terrestre, pelo que cedo me familiarizei com os tangos argentinos e os
pasodobles espanhóis, as rumbas cubanas e o samba brasileiro, e, numa noite estrelada,
milagre dos milagres, deitados os dois numa esteira estendida no quintal
olhando as estrelas, repentinamente ela:
-
Olha ali Bertito ! Ali vai ele ! Vês aquele pontinho brilhante entre aquelas estrelas e voando de este para
oeste ?
e entre nós um rádio numa
cadência matemática, bip bip bip (4) anunciando novos mundos ao mundo e calando
em Nova Iorque os Blues, o Jazz e o Charleston, que nessa noite a avó Bernarda não conseguia
sintonizar ou ouvir de modo nenhum. Minha avó Bernarda era telegrafista mas
amava a rádio, coisa que por magia dispensava os fios, chegava mais longe, mais
depressa e até os americanos do Check Point Charlie (9) a usaram para namoriscar e seduzir, aliciando através dela os comunas do outro lado da cortina de ferro a que viessem viver
para o paraíso. Hoje, ultrapassada que está a guerra fria, sabemos que o
paraíso, ou o inferno, moram de ambos os lados e vivem em conúbio.
Depois
destas experiências, que jamais esquecerei, a minha ligação à rádio estreitou-se
ainda mais quando o meu mano comprou e levou lá para casa um pequeno transístor,
daqueles com que os japoneses inundaram o planeta e que todo o dia cantarolava
não havendo pilhas que chegassem, sobretudo depois dele, mano, me ter ensinado
a captar a “Radio Caroline” (4), uma emissora de radio europeia que iniciou as
transmissões em 28 de Março de 1964, a partir de um barco ancorado em águas
internacionais ao largo da costa de Felixstowe, Suffolk, Inglaterra, e que sem
licença durante a maior parte da sua existência, foi etiquetado como emissora pirata. Contudo transmitia músicas proibidas, actuais, actualíssimas, e de top. Fez história essa rádio porque sobre ela a Grã Bretanha
não conseguia actuar por falta de jurisdição. Foi a partir da Rádio Caroline
que conheci os Beatles (10) antes de todos e antes de eu mesmo saber quão famosos eles seriam, tal como foi a partir dessa rádio que me apaixonei pela música e
intérprete Sandie Shaw, cuja canção me ficou no goto, “Puppet On A String,
traduzido em Portugal como O Amor é Como Um Carrocel” (5), intérprete que partilhava
uma peculiar característica, cantava descalça e tinha uns pés lindos, vi-os eu
na televisão, e quem sabe se talvez daí a minha perdição por pezinhos, (6) a
psicologia dá voltas inimagináveis e Freud já baqueou há bué da time…
Eu
era demasiado novo para me aperceber da força da rádio e de como e a quem ela,
rádio, atirava para o estrelato, a minha sensibilidade para tal começou ao
ouvir falar da Guerra Dos Mundos (7) e de Orson Welles, ou de como nalguns
países tiveram oportunidade de se tornarem fulcrais e terem até feito parte da
resistência aos nazis durante a II Grande Guerra. O fenómeno Tv sim,
acompanhei-o e apercebi-me claramente de que os Beatles (10), por muito bons que
fossem, e eram, jamais teriam alcançado o sucesso que conseguiram sem os
prodígios que a Tv permite e da sua divulgação a nível mundial, outros deverão
os seus sucessos à rádio, mas como disse eu era novo demais e foi coisa que me
escapou, peço-vos perdão.
Embora
com falhas a minha ligação à rádio recrudescia, a partir de certa data passei a
ser vizinho de uma, salvo erro a “Meridional”, onde ainda participei com uns
programas de história a convite do amigo Liberato, rádio que nem sei para que
meridiano emigrou. Todavia passei também a falar com outros amigos que tinha e
tenho na rádio, ainda não fazia rádio, mas falava com eles, que faziam, até que
o Espírito Santo me convidou e o Barrigoto me cedeu um espaço no programa dele,
na “Rádio Jovem” e onde eu durante dois ou três anos todas as segundas feiras
reproduzia oralmente uma crónica que pela minha mão saíra nesse mesmo dia num
jornal da urbe. Mas confesso-vos, não gostava de me ouvir apesar da Floripes e
tantas outras, começando pela Luisinha, ficarem presas pelo beicinho mal eu
começava a falar. Tenho uma pronúncia acentuada e ainda por cima alentejana, e
detesto ouvir-me a mim mesmo. Custa-me acreditar como há quem me ache graça ou
tenha gosto em ouvir-me.
Isto
já depois do 25A de 74, porque antes disso a minha ligação à rádio se
reforçaria às escondidas do poder, que desafiávamos em fins de 73 ouvindo a voz
do poeta oriunda de Argel, pela “Rádio Voz da Liberdade” e encafuados num
automóvel velho abandonado no Largo dos Penedos ao lado do portão da
Carpintaria Braguês. Eu, o meu saudoso amigo Rosa, infelizmente já não entre
nós, eu, ele, dois ou três outros compinchas e a Pimpinela Escarlate, que nunca cheguei a perceber se era ou não
namorada dele e que eu assim baptizara por ela usar uma capa que a fazia
parecer um espadachim. Namorada ou não marmelada haveria, pois sempre que nós
entrávamos no bólide havia nítidos resquícios de cheiros pairando no ar, o mais
forte deles nem era de ganzas, ao que se somariam os nítidos vestígios de
roupas em desalinho e que eles tentavam atrapalhadamente disfarçar. Com o 25 de
Abril a Pimpinela desapareceu, desapareceu o bólide do chaço velho onde nos
acoitávamos, e desapareceu o poeta que contudo voltámos a ouvir já transformado
em burguês e gozando os favores do poder, que eu saiba, esse poeta além
de ter passado a viver a nossas expensas, nada mais vi fazer na vida que se
aproveitasse, deixou até cair o nosso mundo no mesmo ou num pior buraco do
que aquele que, quando de Argel nos ladrava, nos exortava a que não caíssemos.
Um cão esse poeta, um cão como nós (8) que fomos na conversa dele…
Tal
como o poeta, que nos abandonou, o paizinho a partir de certa altura também nos
deixou à nossa sorte, quer dizer à sorte da rádio, e não mais nos levou ao
coreto do jardim ouvir a banda da GNR aos Domingos, passámos a ouvir na rádio a
Valsa do Danúbio Azul e outros concertos directamente, como se estivéssemos nos
camarotes da ópera de Viena. Nem sei porque não gosta a Floripes de música
sinfónica…
(10) http://mentcapto.blogspot.pt/2015/10/281-here-comes-sun.html
https://www.youtube.com/watch?v=4xnzPnyyWbY
https://www.youtube.com/watch?v=4xnzPnyyWbY