quarta-feira, 26 de outubro de 2016

391 - CONVERSÃO, CONVERSAÇÃO, CONFUSÃO


A verdade é que nunca gostara de padres, nem de padres nem da sua conversa mole e, desde os seus tempos de catequese lembrara sempre essa conversa monocórdica como um monólogo de uma moleza dura, incompreensível, um discurso arengado e intransponível para a sua mente jovem. Mais tarde, quando capaz de algum discernimento, alguma sageza, de alguma observação, ou análise, esbarrou com o mesmo discurso intangível, hermético cuja música raramente lhe soava agradável aos ouvidos, criando nele interrogações ao invés de certezas, ao apresentar-lhe como certas as piores dúvidas.

Devido a tudo isso se é hoje baptizado tal deve-se somente à tenra idade em que o foi, por nem ter capacidade de recusa nem argumentação para se opor, nem tinha sequer outra opção, como aconteceu ao recusar a primeira comunhão e se afirmar, ou recusar anos mais tarde um casamento religioso e encenado na igreja como a mãezinha tanto queria.

Sendo verdade que as certezas tremiam não era menos verdade que esse mal não era novo, nem novo nem de agora. Há muitos anos, mais precisamente no fatídico semestre em que namorara a Cândida, a fúria do seu amor, a ânsia, a fome de amor que com ela quisera repartir ou nela saciar fora cegamente travada pelos problemas existenciais que a habitavam;

- Será pecado o beijo ?

interrogação e obstáculo que ela demorou demasiado a ultrapassar e o fizeram perder a fé, a devoção, e minou todos os discursos anteriormente ouvidos sobre esse Deus bondoso, misericordioso, amoroso, e todos os discursos sobre o amor, a dádiva, a entrega, o sacrifício, a abnegação, a penitência e o perdão.

Entre os doze treze anos e os quinze dezasseis, ainda oscilou nas opções, agradavam-lhe as parábolas que incluíssem animais, sobretudo as que terminassem num claro exemplo moral, especialmente aquelas que comportassem um divino e exemplar castigo, com o desaparecimento ou a morte dos prevaricadores, dos pecadores. 

Deus é amor.

Agradavam-lhe os castigos pesados, um Deus tirano, que castigasse impiedosamente a maldade, a Lei de Salomão, o olho por olho na própria Bíblia, a estátua de sal da mulher de Ló, o êxodo dos filhos de Israel conduzidos por Moisés, a travessia do Mar Vermelho que se fecha e trucida os exércitos do faraó, os discursos berrados às ovelhas do alto do púlpito pelo padre Bravo, um bravo que o rebanho entendia e que uma vez ou duas explicou à chapada a um crente menos crente a sapiência e a infalibilidade do Senhor. 

Deus nunca se engana.

Porém, não sendo ele o padre bispo na zona, Deus correu com o transparente padre Bravo e, pela mão ou pela boca do padre Macário voltaram os discursos herméticos cuja pedagogia não era percebida, quanto mais assumida por um rebanho hesitante no rumo e que se foi paulatinamente dispersando da igreja, da paróquia e na vida, tanto mais que o padre Macário nunca foi homem para lhes fazer uns desenhos ou os meter no caminho certo, nem à estalada.

Quanto a ele, digo a mim e à Cândida, o apelo da selva era mais forte, a animalidade exigia urgência na satisfação dos ímpetos temendo que, caso contrário, como ao homem tornado fera, ao bater das doze badaladas, possuído e possesso, me transmutasse em lobisomem. Por isso também eu exigia no momento em que a fé me acossava e a devoção me atormentava e tornava um incubo, que ela por mais cândida que fosse, se submetesse à minha vocação, à minha vontade, ao destino, à sina, ao fado.

Volta não volta a cena voltava a repetir-se, Amália intransigente, ele dominador e inconsequente como sempre, o divórcio mais que uma certeza no horizonte, ambos irredutíveis, irreconciliáveis, ela mantendo-se fiel a Santo Antão, ele derivando para a igreja da Sé, onde por certo não esbarraria nela. Contudo e apesar de tolinha Cândida nunca se submetera à sua vontade, sua dele, pelo que cedo acabaram, cada um retornando à sua paróquia, esquecendo os sonhos e os caminhos que haviam jurado palmilhar juntos, juntinhos. A mesma fé que os unira os separara, um padecendo de dúvidas outro com demasiadas certezas.

Ora é precisamente neste entreacto que aparece o padre Madureira da Silva e o seu discurso da conversão* discurso que eu chamaria antes de tradução pois que o dito padre quase, quase nos faz desenhos para explicar na perfeição como devia ser aberto, claro e sucinto o linguajar da igreja, casa onde mais parece falar-se chinês para um público maltês, cada vez menos disposto a ouvir quem quer que seja, ou a perder tempo com o que não seja imediatismo, futilidade, materialismo e desvario.

Não são a cultura moderna e o neoliberalismo os únicos culpados pela dispersão do rebanho e pelo afastamento da palavra de Deus, é sim o cepticismo que a igreja permitiu, cultivou e até acarinhou no seu mundo, pois neste outro mundo real em que vivemos, na senda do racionalismo e do iluminismo, o grosso do rebanho logrou libertar-se de anátemas ainda que não de dogmas, e fugiu do hermetismo religioso sem que o tenha, (ou a igreja o tenha) substituído por algo mais proveitoso. 

A igreja permitiu gradualmente que a palavra de Deus surgisse ilegível, intraduzível, incompreensível, manipulável, e por fim dispensável por desnecessária. No fundo tratar do homem enquanto ser humano sem perder o pé, como sabemos que se fez desde a antiguidade clássica com Sócrates, Agostinho de Hipona, até aos tempos mais recentes da corrente existencialista e de Simone de Beauvoir, Jean Paul-Sartre, Boris Vian, do nosso Vergílio Ferreira e a nossa Maria Judite de Carvalho, de Kafka, André Malraux, Albert Camus, etc etc etc numa tradição de liberdade e responsabilidade que entre nós nunca foi muito respeitada.

Culpas natural e igualmente também da escola e da igreja, culpas nossas também por não buscarmos um caminho alternativo e avançarmos às cegas. O padre Madureira da Silva vem agora dizer que a igreja há muito devia ter gritado que a conversão é a mudança, é mudança de mentalidade, é escolha, é opção, é um caminho mais claro, mais limpo e com menos escolhos que aquele que o neoliberalismo e outros ismos nos oferecem, convidam e incitam a percorrer. Converter-se não é trocar paganismo por cristianismo ou vice-versa, é trocar o materialismo mercantilista por algo mais concordante com o que quer que seja o humanismo ou a alma, é ser solidário, ser, ser, ser, mais que ter, é ser.

No fundo uma questão de dignidade, para nós e para os demais, uma questão de sanidade, pessoal, mental, moral, e social, uma caminhada para uma concepção social da vida em vez de individual e que substitua a fatalidade que aceitamos sem contestar, uma concepção que nos una, em vez do abandono a que votamos o outro. No fundo a questão da busca de um projecto de sociedade, dum projecto que despreze soluções pessoais ou individuais e procure soluções nacionais, colectivas, no fundo a libertação pela coesão, pela assumpção de responsabilidades universais, acima de egoísmos, acima de privilégios, pelo regresso da palavra de Deus, pelo regresso da igualdade, da paridade, da palavra bem explicada, bem traduzida, se necessário com um desenho, como o padre Madureira da Silva teórica e exemplarmente fez.

Amadeu recortou o texto do jornal, meteu-o num envelope cor-de-rosa com um coração bem vermelho e rebordado a branco, branco de pureza, e deixou-o displicentemente em lugar onde sabia de antemão ser encontrado por Amália. A partir daqui há pormenores da história que posso imaginar mas não conheço, terão jantado juntos como havia muito tempo não faziam, terão procurado o quarto e a cama com alguma apreensão e desconfiança, tê-la-ão abandonado horas depois curados, completos, animados, entusiasmados, decididos, convertidos.

O divórcio foi esquecido, a decisão pendera para um país europeu onde encontrassem democracia, justiça, solidariedade, igualdade, paz, futuro, trabalho, emprego, onde fosse possível sonhar, ter certezas, família, onde imperasse a verdade e a honestidade, a franqueza. Curiosa e casualmente escolheram o menos religioso de todos, é apenas um pouco frio. **
  
* Padre Madureira da Silva, Coluna de Opinião, Diário do Sul, 25 de Outubro de 2016, página 4. 
** Atenção, a leitura deste texto não dispensa a consulta do artigo original do Padre Madureira. 

domingo, 23 de outubro de 2016

390 - ZÍNGARO SIM ZÍNGARO NÃO ........................


Mal as vi o pensamento fugiu-me para as bandas do Minho, de Viana do Castelo, onde uma vez, em férias, esbarrara com um aparato fantabulástico como diria a minha bizinha do 4º Esquerdo. Rodas, folhos e mais folhos nas saias rodadas, blusas alegres e o peito como prateleira, montra ou altar de filigranas de encantar, consagradas por desmedidos corações pendendo-lhes das orelhas.

Sorrisos e peitos francos, largos, num tagarelar nada próprio das alentejanas, muito mais recatadas e que as farão pela calada. Estas duas não, carregavam desmesurada alegria, uma natural desinibição e desprendimento total, contrastando com o soturno ambiente que as rodeava, pouca gente, sobretudo gente muda e calada, ou seja a pouca gente que ainda frequenta cafés pois a maioria desapareceu, fecha-se em casa ruminando taras, complexos, manias e desgostos diversos nem saindo à rua, ou mal saindo à rua deixando os cafés a um terço ou um quarto da frequência e freguesia que apresentavam há meia dúzia de anos. De entre todos eles, cafés, há agora na minha zona um que decidida e declaradamente não aceita ciganos. Não que eles abundem por estas bandas, para ser sincero há meia dúzia de anos que deixei de os ver por aqui com a regularidade que lhes era habitual, eles, as carroças, os cãezinhos, tão ladinos quão as criancinhas ranhosas que em bando os acompanhavam sempre, saltando por quintais, ora em busca de uma bola, ora de uma torneira onde encherem os sebosos jerricans de plástico, ora um par de calças, um sutiã ou uma blusa esquecida no arame, ora com a desculpa de um raminho de hortelã para a panela ou de uma rosa amarela para oferecerem à matriarca da trupe.

No café que ora os não aceita, antes desta nova gerência era habitual parar por ali, eu e eles, ambos de vez em quando, e de quando em vez lá lhes pagava um bolo ou uma sande, desde que assoassem o ranho do nariz. Elas as criancinhas assim faziam e eu contentinho, contentava-me com a minha boa acção do dia e com o meu moralismo de merda. Isto não o pensei eu, atirou-me certa vez à cara um pai cigano que chegara alguns minutos depois do ranhoso.

- Devolve já o bolo ao senhor e diz-lhe que meta o moralismo no cu Caló ! 

Ao ouvir isto as ciganas na sua esteira, fungando filigranas, não se remeteram a risinhos e sorrisinhos abafados como seria de supor entre nós, não, antes desataram sonoras gargalhadas que só não me deixaram todo vermelhaço por ter já há muito tempo perdido a vergonha. Tentei emendar a situação alegando despreocupada e alegremente sermos velhos amigos, eu e eles, os ranhosos, pois já nos encontráramos ali mais vezes pelo que seríamos “amigos de longa data”.

- Isso é outra conversa, ripostou o pai cigano enquanto recomendava ao Caló e ao Kalé que puxassem as moncadas antes que caíssem no Jesuíta, um bolito tão catita, - Que estão à espera para agradecerem a este senhor meus camafeus ?

Os catraios fungaram, a moncada desapareceu-lhes instantaneamente das fúcias mal eles fungaram e o pai cigano sentou-se despreocupadamente na minha mesa ajeitando o sombreiro, pedindo desculpa, e ordenando à gaiatagem que fosse ver das éguas, virou-se a mim atirando-me um:

- A gente nunca sabe com quem lida e tem que estar sempre com um olho no ciganito e outro no portuguesito sabe o senhor ? Arménio Zíngaro, um amigo ao seu dispor.

E lá continuou debitando a sua lengalenga, sendo aqui que a coisa muda completamente de figura e se torna interessante, dado tudo ter começado com uma ranheta, ou uma ranhada e um ou dois ranhosos terem dado azo a uma conversa entre nós bem bem avançada e, atendendo a que eu bebera um Brandymel a seguir à bica por o tempo estar incerto e haver que prevenir, logo ele aproveitou para me recomendar o licor Beirão, de longe o seu preferido, enquanto dissertava sobre aceitação, tolerância e independência, socorrendo-se no entre meio da conversa, de uma garrafa de Beirão que nem sei como viera parara à mesa, e de Miguel Torga, segundo ele o único de entre nós que compreenderia o seu viver, o viver do seu povo, pondo-me com isto de pé atrás e orelhas em riste.

Um cigano discutindo comigo o existir, o estar e o ser, citava-me Miguel Torga puxando da autoridade de ciganos dos quais eu jamais ouvira falar, mas que no seu mundo (no seu universo corrigir-me-ia ele), seriam estrelas no firmamento do tríptico em que nós profanos e pagão cristãos alicerçávamos o nosso viver, terra, mar e ar, não estando eu de todo certo quanto à correcta interpretação e explanação, aqui, ante vós, do completo e complexo discurso que o cigano aventou.

Ainda hoje não sei quem era ou seria tal personagem, chapéu preto, fato preto, coçado, coçadíssimo, sapatos cambados, barba de duas ou três semanas, mais parecia o meu mano Zé, um cheiro penetrante a fumo, a lume de chão, e sobretudo um saber que me surpreendeu pelo inusitado da coisa e pelo popular mas visível enciclopedismo que o enformava de modo admiravelmente incomum.

E enquanto eu cada vez mais surpreendido abria a boca de espanto, ignorando o mundo que ele me apresentava, ou desvendava, de boca espantada ia conhecendo, entre brandis Mel e licores Beirão a galáxia de divindades, pensadores e poetas que o habitavam e impressionavam. Em simultâneo justificava-se alegando ser a tradição oral a mais forte entre o seu povo, o qual se socorria da poesia e da música, como mnemónicas infalíveis numa filosofia de vida que centrava, confiava e assentava na oralidade da narrativa a sua sobrevivência.

Piscando-me o olho enquanto me dava uma joelhada que mais que incomodar-me me permitiu adivinhar um joelho magro, atirou-me esta pérola, como se rematando a surpresa impossível de escamotear em mim:

- Ora o meu amigo veja a quem e porquê deram há poucos dias o prémio Nobel, é que antes de verbo já cá estavam os Zíngaros, os Sinti, os Rom, os seus rapsodos, os seus aedos e a sua vida simples e boémia ou seja, muito antes da prosa já havia ranhosos !

Isto dito como se para encerrar a crítica ao meu inicial moralismo, tendo-se deixado tomar pelo riso que só parou quando me agradeceu o convite e os bolos dos catraios. Antes de desaparecer entre as mesas do Café Giraldo terá dito para a Sara, que as servia nessa manhã:

- Bem haja esse senhor, estimem-no, há poucos como ele !

Fiquei impávido, e eu que nem o convidara para a minha mesa pois fora ele quem abusiva e ostensivamente nela se sentara, tinha agora uma conta calada para quitar, só em brandys seria uma dúzia deles…


 LIBERDADE ** (by Spatzo) *

Nós ciganos temos uma só religião: a liberdade.
Por ela renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória.
Vivemos cada dia como se fosse o último.
Quando se morre, deixa-se tudo: a mísera carroça ou um grande império.
E, julgamos, naquele momento, que foi melhor ter sido um cigano do que um grande rei.
Não pensamos na morte, não a tememos, eis tudo.
Nosso segredo é este: gozar cada dia as pequenas coisas que a Vida nos oferece
e os outros não sabem apreciar: o amanhecer do dia, um banho na fonte, o olhar de alguém
que nos ama.
É difícil compreender essas coisas, eu sei.
Cigano se nasce.
Agrada-nos caminhar sob a luz das estrelas...
Contam-se estranhas histórias sobre os ciganos.
Diz-se que lêem o futuro nas estrelas
e que possuem o segredo do Amor...
As pessoas não crêem no que não saibam explicar.
Mas, nós não procuramos explicar as coisas em que acreditamos.
Nossa vida é simples, primitiva.
Basta-nos ter por tecto o céu, uma fogueira para nos aquecer,
e, nossas canções quando estamos tristes.

* (Vittorio Mayer Pasquale(Spatzo)-poeta cigano.


“É preciso acreditar. É preciso ter em mente que a água nos benze, a lua nos abençoa, o fogo nos consagra, o ar nos liberta e a terra nos transforma. Só assim teremos os pés no chão, os olhos no horizonte e a mente nas estrelas.”
Descendentes Calon e Kalderash

CIGANOS
Tudo o que voa é ave.
Desta janela aberta
A pena que se eleva é mais suave
E a folha que plana é mais liberta.

Nos seus braços azuis o céu aquece
Todo o alado movimento.
É no chão que arrefece
O que não pode andar no firmamento.

Outro levante, pois, ciganos!
Outra tenda sem pátria mais além!
Desumanos
São os sonhos, também...

MIGUEL TORGA




segunda-feira, 10 de outubro de 2016

389 - TAXISTAS, UBER, GORILAS E POLÍTICOS ...



 Antes de me pronunciar sobre o aceso conflito que vem opondo taxistas e servidores da Uber no nosso modesto país gostaria de, numa breve panorâmica, dar-vos uma ideia da dimensão do problema. Nada melhor que compararmos a grandeza das forças em presença, de um lado os taxistas ou os táxis, que em todo o Portugal, do Minho ao Algarve são todavia em número muito inferior aos que circulam por exemplo na cidade espanhola de Barcelona.

A acrescentar a este pequeno mas não despiciendo esclarecimento deixem-me dizer-vos que na GB um taxista tenderá mais a ser equiparado com um cocheiro da rainha, tais os graus de exigência que em vários planos tem que satisfazer. Um taxista de sua majestade, por exemplo em Londres, submete-se a vários anos de provas e exames que atestem as suas capacidades, não há “Novas Oportunidades” nem facilidades quejandas, não perde mas gasta três ou quatro anos com toda essa preparação e, no fim, terá superado em muito o que entre nós actualmente se exige para a grande maioria de licenciaturas, mestrados e doutoramentos.

Quanto à Uber, sabe-se que nos três primeiros anos de investimento / lançamento do serviço, a nível mundial pois preferencialmente aposta nas grandes cidades do mundo (confesso-me admirado por se terem incomodado connosco) acumulou uns milhares de milhões de dólares de prejuízo espectável, esperado, há que semear para colher, ora só semeia nestes termos ou nesta grandeza quem o tenha, o pilim, o picão, o caroço, a narda, o carcanhol, já viram portanto que isto envolve gente de grana, gente importante, gente da estranja… e quando os lucros do investimento começarem a pingar pingarão aos milhares de milhões e serão mais umas divisas que sairão deste depauperado país onde todos ganham dinheirão menos nós…

Desta vez não se trata de um negócio do Tony da Alameda, que quando as pensões que tinha no Beato deixaram de ser procuradas pelas putas se mudou para a Almirante Reis, tendo mais tarde aproveitado os favores de um tal Robalo ou Vara, inspector de finanças, a quem deixava de vez em quando comer as meninas à bórliu. Diz quem sabe ter sido precisamente quando este Robalo ou Vara foi, em paga de outros favores, elevado a administrador bancário que ele Tony aproveitou a oferta, tendo acontecido que ele, Tony Dos Santos de seu nome e nada tendo de seu nem tão pouco onde cair morto, sacou ao banco uns milhões com que comprou três ou quatro dezenas de táxis que meteu a correr em Lisboa, com tanto êxito que se cagou nas meninas (só lhe traziam xulos, trabalho e conflitos com a autoridade) e, dizem as más-línguas, foi dos poucos que pagou ao banco o que de lá tinha sacado, embora todos saibamos serem os boatos rasteiros e que o melhor será nem lhes darmos ouvidos.

Portanto a luta que se trava é duma dimensão aparentemente inócua mas não tanto, e terá que nos obrigar a fazer escolhas, logo nós que tanto gostamos do recato e que ninguém nos chateie a vidinha, porém desta vez o caso é sério… O progresso tem, paulatinamente, acabado com os homens que aviavam gasolina nas bombas, com os portageiros nas portagens, e ultimamente até os direitos adquiridos dos estivadores têm sido colocados em causa e os respectivos sindicatos incapazes de susterem a sua queda. Muitos destes labregos e grunhos que perderam a vez, ou a oportunidade nas bombas de gasolina, na estiva e nas portagens têm sido cooptados pelo poder local, de longe o maior empregador em Portugal mas, como todos sabemos sem cheta para mandar cantar um cego, sem cheta e sem esperança já que ninguém compra o que têm para vender e qualquer dia levarão o mesmo caminho que algumas juntas de freguesia já levaram, aliás bem poucas, a extinção ou a fusão.

Mas enquanto tal milagre se não dá e já que as câmaras estão agora impedidas por lei de dar trabalho a indigentes, e até a arquitectos e engenheiros, há que dar trabalho a estes gorilas, ora nada melhor que reciclá-los em taxistas, afinal são gente grunha, sem quaisquer pergaminhos ou competências como agora se diz, rudes demais para acções de formação, mas voluntariosos, com bons bíceps, um ou outro piercing e algumas tatuagens que com um pouco de boa vontade poderemos considerar lindas. Não falam línguas mas são rijos para o pé na tábua e são eles quem sabe a sina, o karma, o astral, os caminhos e os destinos de quem os procurar.   

Ora como bons patriotas que somos, e se não os queremos ver aos milhares no desemprego comendo avidamente os impostos que pagamos, o melhor será mantê-los ao volante, já que nada é nosso e em nenhum sítio os poderemos “pendurar”… Quando a PT era nossa, ou a REN, ou a EDP, ou a TAP e a ANA e os aeroportos, ou a Banca, quando ainda eram nossas essas e tantas outras empresas, seria fácil metê-los lá, não fariam nada mas não andariam por aí alardeando preguiça, mostrando os músculos, dando maus exemplos e causando desacatos…

Mas agora que nada é nosso onde os meter ? Quem quer andar com eles ao colo ?  É realmente um problema do arco-da-velha, os portugueses que pensem bem antes de apostarem num qualquer QASHQAI da Nissan, ou num qualquer menino do marketing ou antigo delegado de propaganda médica agora desempregado e que se mete ao serviço da Uber para tentar pagar a letra do carro no fim do mês e, ou, vergonha das vergonhas, evitar que o stand lho venham buscar a casa.

Pensai meus amigos e meus compatriotas pensai…

E agora ide e levai trocos..

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

388 - AMOR, ou N. Senhora de Fátima, é o mesmo…


Pois é, pois foi, foi assim mesmo que a coisa se passou, sucedeu, apesar do escuro que depois se fez média luz e finalmente luz. Inicialmente foi um leve olor, um odor insinuante, o perfume a rosas pela manhã, acabadinhas de regar, orvalhadas.

Só passado algum tempinho, e quando a luz ficou de ficar, média, veio a vista, o deslumbre, a visão, e lá voltou de novo e antes de tudo o insinuante perfume, para imediatamente depois a sensual aparição. Aí já deu para enternecer mais, ainda mais, derreter-me digamos. Nada mais restava ante tal milagre que perseguir aquele odor perfumado até às pétalas orvalhadas e, primeiro farejá-las, aspirar-lhes o perfume, a alma, deixarmo-nos envolver até flutuarmos pairando sobre o fruto da roseira, fruto é como quem diz, flor, flor milagreira e então, após envolvimento que me colocou boiando sobre mim mesmo, aliás mais acertado seria dizer flutuando sobre o roseiral, veio-me arrebatamento tal que senti chegando-me aveludado, porém nada subtil, camuflado sob a forma de um estremecimento ternurento, assim para um sentimento que nos colhe a vontade mas livremente nos leva lá, nos conduz lá.

Digo nós por não por ser caso único, como eu haverá milhares, milhões, a quem ante tal aparição acomete uma metamorfose e, com crente e respeitosa genuflexão, abdicam da vontade própria e deixam-se conduzir pelo arrebatamento do momento, pela emoção e estremecimentos do coração, por tudo que de admirável encerra e existe na paixão.

Não é este o tempo do livre arbítrio, estamos nos campos do desejo, da cegueira, da pulsão, diria que da ressurreição pois fico outro, todos ficamos um outro se a vontade de não sei quê nem sei de quem nos enovela, enleia, atrai e seduz quando pétalas banhadas de orvalho, abertas e perfumadas nos excitam o olfacto, os sentidos e a razão, razão e sentidos que embotam sem remissão conduzindo-nos ou atraindo-nos ao crucial, ou desaire, como um buraco negro suga o universo e toma as rédeas de quem o orbite, captando-o, cooptando-o para si, para seu exclusivo proveito ou antes repartido repasto, gozo, prazer, partilha, comunhão.

Dias inesquecíveis em que a Primavera pode acontecer no Verão, Outono, Inverno, enfim, quando um homem quiser ou se dispuser a debruçar-se com carinho e devoção sobre pétalas de rosa, orvalhadas ou não, perfumadas ou não, ciente ser ele a quem cabe regar em cada dia, cada ocasião o jardim do Éden, as árvores da vida e do conhecimento, o roseiral que lhe devolva em oferenda o madrigal de paixões cuja seiva lhe caberá colher e lhe permitirá dessedentar-se en dépit de la saveur acre e adocicado a maçãs verdes, le merveilleux fruto do paraíso dissimulado em cada roseiral, em cada rosa, em cada pétala, em cada madrigal.

Assim o tomei para mim e me tornei poeta, ou por ser poeta o colhi para mim descobrindo nele um vendaval de paixões irreprimíveis, como se em vez de tocado uma rosa ou beijado as suas pétalas tivesse aberto com ou sem cuidados a caixa de Pandora e agora, liberto de mim me pudesse entregar de corpo e alma tal qual tivesse sido tocado ou bafejado por sagrada epifania.

Sobre os lençóis alvos sorria um mar de pétalas, como se ventania ciclónica os tivesse atravessado um dia e, apesar do arrebatamento inquestionável pairando na luz que dilacerava o quarto numa miríade de questões, apreensões e interrogações, em cada pétala uma gota de orvalho persistia, mantendo o fulgor a frescura e a beleza de cada rosa desse roseiral encantado no seio de um escuro que depois se fez luz, média luz e luz, por fim luz perfumada em que, segundo os anjos, numa manhã, com arrebatamento e paixão num estremecimento desejado e consentido se regou o amor.   

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

387 - XPTO .................................................................


XPTO

Se não é o policia de Olhão,
é outra cena de ocasião,
o bombeiro do Sabugal,
ou o sexagenário de Tentugal.

Tratam-te como a uma criança,
notícias às oito, às treze, às vinte,
as notícias, o biberon, a santa aliança,
estás fadado de eterna criança e de pedinte.

Não darão a Olhão o que é de Olhão,
nem a Sabugal o que pertença ao Sabugal,
das coisas do rebanho não se abre mão,
democracie oblige, uma só mamada p’ra todo o Portugal.

E tu, rindo, cara de parvo, ou de idiota,
marcas o ponto das nove às cinco,
sem um esgar, um vómito, um coice, uma revolta,
tatuas o braço, o peitoral, metes um brinco.

Mas lutas p’la liberdade de género,
comemoras a liberdade, o dia da cidade,
o do primeiro de Maio, o da castidade, o do orgulho gay,
mas nem que vivas cem anos, serás sempre um nulo efémero.

Nem terás tempo para compreender.

Depois o epitáfio,
aqui jaz em paz o Bonifácio,
rico homem, inteligente, um paz de alma,
nem por um momento deu trabalho à gente…


Évora 30 de Setembro de 2016, por Humberto Baião.