terça-feira, 1 de agosto de 2017

449 - TRUMP E O ANO GEOFÍSICO INTERNACIONAL - O HOJE E A MEMÓRIA............


O título original deste texto era nem mais nem menos, digo sem tirar nem pôr, A GEOGRAFIA NOS ÚLTIMOS CINQUENTA ANOS e foi por mim escrito nos idos de 1977, mais concretamente para a saudosa Professora Elsa, no novel Liceu André Gouveia, onde na condição de aluno nocturno frequentei já nem sei o quê equivalente ao ano propedêutico ou ao sétimo ano liceal, nem isso agora interessa, interessa sim o quão ela me seduziu, ela Elsa e a sua Geografia, isso sim deveras importante.

Logo calhou hoje andar à rasca da anca por mor duma queda dada ontem e, ao rebuscar o baú em busca de velhas chapas de RX, não fosse dar-se o caso de as dever mostrar a algum especialista, pois numa outra vida tivera um problema de bacia mesmo ali onde me doía e dói, porém em vez das chapas dei com o tesourinho citado, escrito pela minha mão, e que me valeu um notão. Já então tinha a letra, a caligrafia que mantenho hoje, embora agora mais miudinha, mais inclinada, mais despachada, há que avançar em frente que atrás vem gente, como diria a minha amiga Paula.  

Passo então a apresentar-vos o trabalho mencionado, vem a propósito, não o apresento simplesmente para encher páginas mas a fim de julgarmos quão estúpido e dantesco foi o abandono dos acordos de Paris por Trump, além de eventualmente poder ser que alguém seja cooptado para a geografia como eu fui, embora isso não traga nenhuma vantagem especial neste país, como não traz ser engenheiro ou arquitecto, enfermeiro ou alfaiateiro. Trata-se de um país a brincar e é com esse espirito, e também para me gabar, tão novinho e coisinhas tão jeitosinhas que eu então já dava à luz, o que para vocês pode não importar mas me enche o ego e aviva a auto estima.

“ Ao propor-me fazer (devia ter escrito realizar) um trabalho sobre os progressos deste ramo das ciências nos últimos 50 anos parece-me lógico rever as suas conquistas anteriores, não só para ajudar à compreensão da situação no ponto de partida deste trabalho, como para dar uma ideia da cronologia, necessidades e porquês deste último arranque sobre o estudo do nosso mundo. Como é sabido desde os tempos mais remotos que o homem procura saber situar-se na esfera que o encerra, Ptolomeu, Aristóteles, Copérnico, D. Henrique, Fernão de Magalhães e tantos outros foram dando ao mundo novas visões (e novas versões) cada vez mais exactas do mesmo. Se bem que nesses tempos o progresso fosse andando a passo de ganso, o mesmo não veio a acontecer nos séculos seguintes, mais concretamente nos Séc. XVIII e XIX, onde a Geografia, então de feição clássica, não descansou enquanto não catalogou dentro da sua concepção de ver as coisas (da sua concepção clássica) tudo o que lhe foi possível e poderemos mesmo dizer (afirmar) que os estudos sobre os quais hoje (em 1977) nos debruçamos não teriam razão de ser sem o apoio de todo esse enorme trabalho anterior, nem existiriam mesmo.

Esse mérito coube em grande parte a homens que souberam dar às suas vidas um sentido positivo e real, desde o Cap. Cook, que com as suas viagens deixou inscritas em cartas cartográficas grandes regiões do globo, Charles Darwin homem de rara visão e grande espirito de observação que nos deixou um marco de extrema importância para a comparação dos seres vivos e sua evolução no meio ambiente, e tantos outros que posteriormente desbravaram os continentes recém-descobertos. Os Séculos XVIII e XIX foram pois aqueles em que tudo foi dado a ver, desde os continentes africano, americano e os próprios polos que na época representavam para o homem o espicaçar da sua curiosidade (este sua está a mais), foram vencidos.  Mas o gigante não descansou depois de todas estas lutas, outros sonhos breve começaram a povoar a mente do homem, e é aqui neste passo da história que com 2 homens que (e 2 dispensáveis ques) tivemos oportunidade de conhecer pelos nossos estudos recentes que (outro que) surgiria o despertar mágico da Geografia, Humboldt e Ritter. * 

Como retrospectiva não devemos esquecer o real (a realidade) que rodeava a sociedade do tempo, nada pode ser desligado do seu evoluir, a revolução Industrial do Séc. XVIII veio trazer e resolver problemas do homem, ajudou-o e encheu-o de interrogações, deu-lhes umas vezes os meios e outras os fins, e quando Humboldt e Ritter surgiram os transportes estavam já desenvolvidos, o intercâmbio entre os continentes era já vulgar, corrente, e foi este relativo progresso que deu a Humboldt a oportunidade de conhecer e pensar no que estava por fazer. O que saltava à vista estava catalogado, foi o período da Geografia clássica, com Humboldt outra época viria a nascer, a moderna, e ele como Ritter deram-lhe todo o seu cunho pessoal (o seu era desnecessário), pormenorizaram, interrelacionaram as ciências naturais, históricas e filosóficas com a Geografia e ajudaram à compreensão das relações entre os homens e o ambiente, encheram os espaços de fenómenos (que explicaram), botânicos, climáticos, geológicos, estruturais, e suas influências no homem, e pelo homem, geraram polémica e contestação, e abriram o caminho à curiosidade de outros homens que por sua vez vieram também a fazer “escola” e a criar critérios. (métodos).


Da discussão nasce a luz, e mais tarde Ratzel,** criador da antropogeografia, vem dar nova achega à questão ao considerar o comportamento humano em função da influência do meio, quando até aí, e talvez devido ao facto de ter caminhado de vitória em vitória o homem era visto (considerado) como o dominador do meio em que vivia. No entanto depois de todas estas descobertas a terra não parou de girar, as cidades cresceram, a densidade demográfica aumentou, os espaços foram sendo preenchidos e a geografia começou novamente a não saber como os explicar na mente dos homens, nessa vitrina tão vasta vimos surgir novo anúncio, “novas concepções precisam-se” e é mais ou menos a partir desta ideia, desta nova necessidade de encarar as coisas que surge a “Nova Geografia”.

As concentrações industriais, as migrações populacionais, os porquês das grandes cidades precisam de novas explicações, a inter-relação entre a sociologia, história, a matemática e a geografia torna-se necessária, e a geografia torna-se tão precisa (necessária) às outras ciências como elas à geografia para a explicação desta nova organização espacial, que não é só obra das influências entre o homem e o meio que o rodeia. O pormenor terá que ser colocado de parte para ser procurada a exactidão (a síntese) de realidades sociais mais vastas. A técnica dá-nos novos meios, o computador, a recolha e tratamento de dados, a estatística, a matemática e a lógica são cada vez mais necessárias e utilizadas, há maior necessidade de compreender o espaço para o dominar. A geografia deixa de ser qualitativa, classificativa, para se tornar quantitativa, há que responder a novas exigências, que adaptar-se a novas situações, montes de perguntas, montes de respostas, montanhas de dados, há que saber trabalhar com eles, traduzir, trabalhar, explicar, prever, tudo a um ritmo a que a geografia não estava habituada (tal como a nossa AR), falhará por vezes ? Talvez, mas os erros vão sendo aperfeiçoados, a matemática surge onde é possível e necessário aplicá-la, densidades demográficas, natalidade, mortalidade, minimização de custos, maximização dos proveitos, matemática e economia, geografia, cada vez mais campos estendem as mãos à geografia numa ânsia desmesurada de compreensão e explicação, os urbanistas, os engenheiros, os economistas, os políticos, os sociólogos, socorrem-se dela para tentar dar-nos a todos um projecto de mundo mais equilibrado, onde viver custe menos e saiba melhor. (parece que não conseguiram).

Surgem nesta sequência teorias para a racionalização dos espaços, os modelos, novos métodos para maior e mais racional explicação e aproveitamento dos espaços sobretudo económicos e sociais. Na origem de todos estes estudos e conhecimentos a “terra em que vivemos” foi e será sempre a nossa fonte de inspiração, quanto mais a descobrimos maior ela se torna para nós, um problema desvendado deixa sempre na sua esteira mais ainda que nem imaginávamos, conscientes deste facto, cientistas de todo o mundo chegaram à conclusão que só de mãos dadas era possível fazer frente a tão grande manancial de incógnitas, e foi estabelecido serem os anos de 1957 e 1958 dedicados ao estudo em uníssono de fenómenos de todo o tipo no nosso globo, foi designado por “Ano Geofísico Internacional”, AGI, e teve resultados tão profícuos que o espírito que presidiu à sua criação se manteve até aos nossos dias, tendo sido do seu trabalho que fenómenos hoje conhecidos foram desvendados. Milhares de “garrafas” especiais foram deitadas ao mar, foram desvendadas as temperaturas, as correntes marítimas e suas influências em climas nos continentes, um conjunto de exploradores cruzou a Antárctida de um ao outro lado investigando a calote polar, as rochas e as águas costeiras da Antárctida, as condições meteorológicas em relação com o clima do resto do mundo, o jet stream, os céus, auroras boreais etc. etc. etc.

Foram (foi) ainda durante este AGI que os EUA e a URSS lançaram os seus primeiros satélites artificiais, dando o estudo e o conhecimento que hoje temos da camada atmosférica superior, da gravitação da terra, do magnetismo, das radiações do sol e raios cósmicos, o Cinturão de Van Allen, as linhas isobáricas, isoiéticas, isóbáricas, isotérmicas, tudo isto são conhecimentos adquiridos através destes estudos recentes que não pararão jamais e fruto desses satélites pioneiros, outros se lhes seguiram e seguirão, e quando tudo na terra for explicado pela geografia, outros mundos estarão já ao nosso alcance e à nossa espera, a ciência não pára, e a geografia também não certamente.

Évora Junho de 1977

Humberto Ventura Palma Baião “




segunda-feira, 31 de julho de 2017

448 - SERVIÇO DE MESA OU A MALEÁVEL E DÚCTIL TEMPERA NACIONAL ................................


Fechou para férias o meu café, meu é como quem diz, costumo lá ir mas não tenho lá parte, parece a mesma coisa mas não é, é até muito diferente mas bamos ao que interessa. Fechou sem aviso, embora se tivesse avisado todos ficássemos na mesma, isto é, com o aviso nas mãos e forçados a mudar de café, a diferença é ou teria sido unicamente o facto de, ao encontrarmo-nos noutros cafés não termos dito do nosso cobras e lagartos como dissemos, mas bamos ao que interessa, e o que interessa é que depois de uma semana azarada, sobressaltada ou agitada, chegou finalmente domingo, ontem foi domingo, dia de vagar e paciência, pelo que fui ver até onde as coisas davam, até onde esticava a corda.

Já na terça ou quarta-feira virara as costas ao meu amigo Ferreira, amigo é modo de dizer, conheço-o há cerca de quarenta anos, até esta quarta nada tivera de bom a abonar em seu favor, mas a partir desse dia tenho muito em desfavor desse meu amigo, sempre o julgara mais esperto. Ele tomara de trespasse há dias o Café da Lena, relativamente próximo da minha zona habitual pelo que, depois do pão comprado na padaria do Carlos, o proprietário o Mira fora meu aluno e sempre gostara dele e do seu pão alentejano e muito mais agora, a Ana é toda simpática, solícita, e corta-me o pão fatiado como eu gosto por isso Deus lhe dê saúde muitos anos. Depois do pão pensei de mim para mim dar um pulinho ao Café da Lena que como devem lembrar-se agora é do Ferreira, meu amigo, para o ajudar a arrancar, a pagar a renda, a governar-se, a pagar os ordenados a toda aquela gente.


Lá fui, tem uma esplanada sossegada debaixo dos baixos do edifício fazendo uma espécie de arcada, com um dos lados tipo varanda, sossegada demais para uns mas a meu gosto, pelo que me sentei e esperei, eram dez da manhã, uma boa hora de um dia fresco com um sol agradável, puxei do livro e do bloco de apontamentos que trago sempre na paneleirinha, li, escrevi umas notas, mas não tomei o desejado café e já o dia ia na onze horas. Belisquei-me não fosse dar-se o caso de ter ficado invisível, quando vejo o meu amigo Ferreira levantando louça suja duma mesa próxima, chamei-o, olá Ferreira eu só queria, está bem mas ele népia, orelhas de mercador, ouvidos de mouco, tendo sido então que reparei nas calças novas, bem vincadas, polo grená de marca, impecável, bem, já era dono, proprietário não liga a pelintras, vi logo que não me iria servir pois há agora uma nova moda que grassa por aí como fogo em pasto seco, pelo que não disse nada, levantei-me e rumei a um sitio que eu cá sei, ali bem perto, com esplanada, um café velho de anos ou décadas, num gaveto de passeios largos, onde sei ao certo não terem igualmente serviço de mesa na esplanada o que me levou a entrar direitinho ao balcão e, sff uma bica cheia, uma água e uma fatia desse semifrio que está aí a fazer-me crescer água na boca podendo ser, obrigado, estarei naquela mesa ali ao fundo junto à montra.  

Deviam ser dez e tal ou onze e picos e junto à montra fiquei vendo os navios passando, e lendo o jornal até ao meio dia e meia, tal e qual. Nesse dia tomei de novo a bica em casa ao chegar, tenho uma Delta Q que é um mimo e cápsulas até que venha a mulher do Fava-Rica. No sábado comprei o Expresso e fui sentar-me novamente na esplanada do meu amigo Ferreira, passada meia hora aproveitando a passagem de uma lambisgóia levantando a loiça e limpando as mesas pedi uma bica e não pedi mais nada pois nem tive tempo de acabar, que não, que não servem às mesas, se quisesse fosse ao balcão buscá-la, à bica claro. Calei-me, não vale a pena o diálogo com gente inferior, é descer ao seu nível e nada resolver pois nem poder têm para isso, cumprem ordens, com mais ou menos simpatia limitam-se a cumprir ordens, zelam pelo seu bem-estar e que não abusemos dos seus direitos.

Respect. No problema.

Ergui-me e volvi novamente ao tal certo sitio do qual já vos falara, entrei, cumprimentei, dirigi-me à mesma mesa e sentei-me, dez e picos onze e tal, li o jornal, passei incógnito, fui à casa de banho dar uma mijinha e confesso-vos, de irritado que estava tive vontade de lhes mijar aquilo tudo para me vingar mas, era uma pena, tudo tão limpinho, tudo tão asseado, e eu de calças branquinhas, descarreguei-lhes o autoclismo três vezes e fui-me à vida tendo voltado a estalar a língua contra o palato depois de emborcado o cafezinho e passada a mão pela Delta Q, ainda quente, como quem passa a mão pelo pelo de um rafeirinho, do Benji ou da Mimi, da Cuca, da Heidi, do Francisco ou da Mia para não discriminar nenhum. Aproveitei e esvaziei a maquineta das capsulas usadas que chegavam até acima e ameaçavam emperrar o mecanismo, fui fazer xixi de novo, lavar as mãos, pôr a mesa e almoçar uns lombinhos de pescada que a Luisinha marinara primeiro e de seguida maravilhara polvilhando-os com orégãos, mas só depois de retirados do forno naturalmente.


Hoje, digo ontem domingo, corri quatro cafés nas redondezas antes de acertar no Café da Tapada, com serviço de mesa e vos recomendo. Devo confessar-vos, a minha segunda opção fora o café do senhor Paulo, uma jóia de pessoa, tanto ele como a D. Antónia, mas para meu azar tinham aproveitado o fecho do meu café habitual para fecharem e entrarem em obras, o que nos atirou para uma outra órbita, nas redondezas mas mais alargada, assim como quem muda do Circulo Polar para o Trópico de Capricórnio, ou de Câncer, numa manobra certamente concertada e que deixou a urbanização sem café, a não ser o da Padaria Maravilhas cujas padeiras são super simpatiquíssimas mas o café duma qualidade inferior, reles, tão reles que me provoca azia sempre que o bebo.

Pois neste burgo onde o turismo parece ser a única coisa que mexe os cafés esperam que os sirvamos, não abrem nem existem para nos servir mas nós a eles, e nisso não diferem do país, todo ele virado ao contrário, todo ele um erro colossal qualquer que seja o prisma pelo qual o observemos. E o tuga entra feliz, faz de criado e sai contente sem se aperceber estar contribuindo para o elevado desemprego que reina entre nós, ou para a subida de impostos que sustentem, contentem e aguentem o exército de inactivos que com carinho inusitado o país cria e mantém há anos comendo à mão. Se não ganham para um empregado que sirva às mesas aumentem os preços ou a boa vontade. Mexam-se, trabalhem.


Há anos que deixámos de ver nas bombas de gasolina aqueles homenzinhos indiferenciados que nos atestavam o carro, viam a pressão dos pneus, a água, o óleo etc., desapareceram, as bombas já nos puseram a trabalhar para elas, para elas e para pagar os subsídios de desemprego e os de RSI a esses homens, a esses e aos das portagens, agora é uma máquina que me exige a portagem, e nos híperes onde somos nós quem agora faz de marçanos, portanto podem imaginar a quantidade de gatos pingados que ficaram sem emprego e andam por aí rebentando caixas multibanco para ver se comem qualquer coisita, havendo jovens desempregados há vinte anos ou mais, e que o vão estar outros vinte, vivendo à custa do RSI ou fazendo pequenos biscates e furtos que não matam mas moem, sonhando talvez ser bombeiros, e heróis, e não o podendo ser deitando-se a deitar fogo às matas que é para que tu e eu saibamos como é e o que dói.

E depois vem o PPC aos jornais dizer que não, que o senhor deputado e os outros dois autarcas não quebraram a ética pois foram em passeio pessoalíssimo e não em serviço, sendo contudo bom que se verifique se terão sido ou não quebradas outras incompatibilidades, desconhecendo na sua larvar e épica ignorância ter sido a ética precisamente a primeira coisa que eles quebraram ao ir à China ou lá ao caralho do lugar onde foram.

 A imprensa demorou mais de um século a ganhar a credibilidade que em tempos lhe foi reconhecida mas agora, com a ajuda de governos e spin doctors todos os dias nos mentem e aldrabam com quantos dentes têm na boca, mais valendo a gente virar-se para o “Diabo” se quer saber alguma verdade verdadeira. Imaginem, o “Diabo” o tal da Vera Lagoa, quem diria ou adivinharia a cambalhota que os outros deram para estarem fazendo dele um jornal de referência.

Somos um povo de uma ignorância tosca e costumes rudes, grosseiro, inculto, rústico, muitos diplomados, outros doutores, muito bonitas estatísticas todavia no geral sabe-se menos hoje que no tempo de Salazar. Não pensamos, não meditamos, não questionamos, não nos interrogamos, não agimos nem reagimos, umas anémonas perfeitas, mas queremos ir longe, talvez até ali à esquina, deve ser isso, ver se há um café onde possamos tomar qualquer coisa, pois que tomemos ao menos uma atitude. 


segunda-feira, 24 de julho de 2017

447 - BEM PREGA FREI TOMAZ * .............................



Bem prega frei Tomaz, faz o que ele diz, não faças como ele faz.

Não tenham a menor duvida, o segredo da coisa está no lançamento, um bom lançamento é o alfa e o ómega, o resto são peanuts, depois de lançada a coisa aguenta-se, a coisa ou o coiso por que o que há a vencer é a inércia inicial, como Newton bem sabia. Há dois mil e duzentos e tal anos já Arquimedes de Siracusa, mais modesto, afirmara que sendo-lhe dada uma alavanca e um ponto de apoio mudaria o mundo, esclareço aqui ser a alavanca uma das seis máquinas simples da mecânica, máquinas a partir das quais derivam todas as outras por mui complexas que sejam. Ressalvo que talvez Arquimedes tenha dito deslocaria, e não mudaria, pretendo evitar confusões e eventualmente más traduções já que alavanca, fulcro e força eram tudo o necessário para deslocar ou mover o mundo, cousa bem diferente da ideia do meu amigo Tomaz que só quer mudar o mundo ou mudar-nos a nós a seu jeito e desejo, mas por nossa conta e ónus.

Há mais de setenta anos Wernher von Braun sabia tudo depender do impulso inicial, desde que houvesse um bom impulso inicial qualquer coisa subiria e se manteria lá em cima, o impulso era tudo, era tanto que ainda hoje o empuxo ou força dos motores dos jactos ou dos foguetões, dos Atlas, dos Titans, dos Saturnos, dos Arianes, dos Soyus e tutti quanti são medidos em impulsos, libras, já os dos automóveis, máquinas mais modestas, são ainda medidos em cavalos por deferência para com os ditos e a engenharia das máquinas a vapor e dos cavalos vapor, os designados Horse Power.

A cantilena de hoje vem a propósito de um choque tido e havido com o meu amigo Tomaz, chamemo-lo assim, tendo eu dito duvidar estar ele em órbita sem o impulso inicial que levou. Ele não é parvo de todo, e é inteligente, o que não lhe tolerei foi vir armado em anjinho pregar resignação aos peixinhos, coisa que nem Stº António se atrevera a fazer. O que sucedeu foi que numa qualquer publicação na Net desenvolveu o amigo Tomaz uma teoria do sociólogo Richard Sennett que a Terramar publicara em 2001 “A Corrosão do Carácter” um influente ensaio sobre as consequências pessoais do trabalho em cada individuo e que segundo parece permanece perfeitamente actual, segundo o qual “já ninguém espera trabalhar na mesma organização a vida inteira, embora a empresa para a qual se trabalha seja um grupo social importante ao qual pertencemos e que define parte da nossa identidade”.

Esta teoria, que nem me dei ao trabalho de ver até que ponto plagiou, o Tomaz escreve bem e nem precisaria disso, nem foi isso que esteve em causa, em causa esteve o facto de vir consolar-nos, de nos induzir à resignação quando o país está como está graças em grande parte ao partido em que debutou, ao partido que o impulsionou, ao partido que não fez pelo país o que devia ter sido feito, e já agora deixem-me perguntar que partido fez alguma coisa de jeito nos últimos quarenta anos ? Se assim tivesse sido certamente não estaríamos como estamos e pior havemos de estar.

Pois este meu amigo, que como disse é inteligente e tem um curriculum extraordinário, só não tem inteligência para saber quando deve ficar calado ou que assuntos escolher, ele que orbita onde orbita e tudo deve ao impulso inicial que, como de inicio vimos mete lá em cima qualquer merda que posteriormente e com facilidade por lá se aguentará. Ora sucede ter o dito cujo Tomaz ter sido nem mais nem menos que bafejado pela oligarquia que aqui na terra põe e dispõe de lançadores, lançamentos, órbitas e tudo quanto lhes convenha, num impulso que me envergonharia mas que ele subtilmente escamoteia no vero e lustroso curriculum que publicamente apresenta, será caso para dizer que com a verdade nos engana.

No fundo o que nos opõe e eu lamento é que iguais oportunidades não sejam dadas a todos, que se vêem obrigados a emigrar à falta de amigos impulsionadores… Fica mal a quem foi colocado lá em cima pela mão dos seus perguntar aos outros por que não sobem, ou pior, consolá-los por ficarem cá em baixo, e que se fodam, que se resignem que isto da democracia não é para todos mas somente para alguns eleitos. Desgraçadamente até no exemplo que foi buscar para ilustrar o seu escrito foi infeliz, sacar da PT como exemplo é coisa que nem lembraria ao diabo, a PT enquanto empresa pública foi um modelo de péssima gestão a tal ponto que meteu 3700 colaboradores, funcionários ou trabalhadores em casa sem fazerem nada e a pagar-lhes, aliás fomos nós quem lhes pagou e paga ao pagar as comunicações mais caras da Europa... esquecendo ter sido José Sócrates enquanto PM e A. Costa enquanto seu Ministro da Justiça ou da Administração Interna quem fez a cama ao engenheiro Belmiro de Azevedo e à sua OPA, dando desonestamente início ao estrondoso rebentamento da PT ...  Agora é aguentar, é pregar resignação, é consolar os trabalhadores de quem fizeram gato-sapato, é obrigar a Altice a adoptar os hábitos estatais de gestão, é espremer todos quantos ainda cá estão e não debandaram deste paraíso, interrogando-me eu se isto é que é um verdadeiro democrata, dividindo a sua vasta sabedoria com o povinho mas esquecendo-se que é por estas e por outras tais que em Portugal as empresas morrem ou nem chegam a nascer e do Alentejo até fogem...

Para se pregar moral tem que se ter autoridade (moral) para o fazer... Se o meu amigo Tomaz não viu essa relação lamento, quanto ao texto, certamente vero e oportuno, nada tenho a opor, aliás o texto encontra-se noutras plataformas, sérias, onde Richard Sennett e “A Corrosão do Carácter” são abordados porventura com menos copy cola que aqui e muito mais meditação e avaliação crítica quanto ao cerne da questão envolvida... Não basta atamancar qualquer opinião para a tornar valiosa, sobretudo mal fundamentada como foi o caso, ao abordar o caso nestas páginas limito-me a expor outra opinião, uma outra perspectiva, e não a apresentar um mero juízo de valor ou preconceito, para que os leitores ajuízem da ética tortuosa e dos passos dados por quem nos prega sermões. Falar é fácil dar conselhos é fácil, o país está pejado de sábios e de conselheiros porém não temos nada, quarenta anos depois de Abril não temos nada, temos mais emigração, porém mais qualificada, e mais desemprego, temos isso sim mais oportunidades para boys e amigalhaços, em contrapartida temos mais saídas fechadas para todos, temos menos oportunidades, menos riqueza. É isto que temos depois de tanto sábio, tanto democrata e tanta democracia.

Esta minha página, este blogue está bem reconhecível e acessível. Não costumo atirar as pedras e esconder a mão, nem tentar parecer melhor ou mais limpo do que sou, ao contrário de muito boa gente não tenho necessidade disso. O curriculum apresentado pelo meu amigo Tomaz devia citar as ajudas e empurrões que a oligarquia socialista de Évora lhe concedeu, a ele, mas que não concede a todos, quero dizer o PS não criou um país nem uma democracia onde todos tenham iguais oportunidades, aliás é um partido à deriva e que em quarenta anos não encontrou a sua identidade nem o seu lugar nem os seus eleitores. Prova disso foi ter perdido vergonhosamente as eleições depois de quatro anos de asneirada grossa da direita (a quem continua a dever o sucesso actual) e ter-se agarrado à bóia de salvação que foi para ele o BE e o PCP, partidos que à primeira oportunidade lhe farão o que foi feito ao ingénuo Alexander Kerensky, um menchevique que aliás não merecia outra coisa, como A. Costa um político apagado, untuoso e xico-esperto merece e com quem jamais iremos longe ou acharemos a salvação.

Resumindo, ter padrinhos e um bom emprego, e estribado nisso vir pregar aos peixinhos é para mim coisa que só concebo aos santos ou a gente sem vergonha na cara.


* NOTA: Se não coloco aqui o link referente ao assunto abordado é tão só por não desejar fazer do assunto uma questão pessoal, a luta politica ou a exegética é uma coisa, a polemologia é de âmbito pessoal, completamente diferente e por onde não desejo seguir. Entretei-vos com “A Corrosão do Carácter” - Richard Sennett  - Terramar – 2001. O meu amigo Tomaz fez parte das estruturas locais do PS/Évora. A partir de 2000 desempenhou, por duas vezes, funções públicas. Primeiro, entre 1996 e 2001, nos gabinetes do Secretário de Estado da Juventude, do Primeiro-ministro e, finalmente, do Ministro da Presidência e das Finanças, do qual foi chefe de gabinete. Entre 2006 e 2009, foi coordenador adjunto do Plano Tecnológico. É membro da direcção do Centro Nacional de Cultura e co-autor do livro “Terror ao Pequeno-Almoço – A Gestão Que Preferia Não Conhecer”.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

446 - A INTENÇÃO É QUE CONTA ............................


Aquilo foi tudo um mal-entendido, cá para mim não passou de boas intenções, a gente às vezes quer mas nem sempre consegue é o que é, ou o que foi, é mais um daqueles casos em que acabamos por admitir, e dizer, o que conta é a intenção, já que por motivos que nos escapam ou são alheios à nossa vontade não se conseguiu concretizar o que seria certamente uma mera intenção, se boa se má não vem agora ao caso, ao caso vem não ter passado disso mesmo, duma intenção, não formalizada, a que não se conseguiu dar forma, não efectivada, materializada, que não se realizou, inconseguida como diria a outra….

Naturalmente ficou aborrecido com isto tudo o Zé António, já o conheço bem, bem e há muitos anos, imagino quanto o terá abalado o facto de não ter tido êxito, ele é muito dado às coisas, quero dizer leva tudo a peito, quando se mete nalguma é de corpo e alma, entrega-se ao que estiver a fazer e se o impedem atira-se aos arames, afina, como diz a Vicência do Herlander.

Ela é perspicaz, não lhe fazem o ninho atrás da orelha com facilidade, já dera por haver ali atrito, uma coisa subtil mas que todavia captara. Nem sempre é fácil captar as subtilezas de cada um, sobretudo se bem camufladas ou disfarçadas, porém não lhe escapara o ranger de dentes da Eunice, aquilo era tensão acumulada, aquele ranger escondia muita objecção ou contrariedade, fora essa a primeira vez, a partir daí afinara o olho, abrira o olho e muitas outras situações observara que ninguém diria ou sequer admitiria, mas não ela, a ela não a enganavam às boas que tinha o olho aberto como diriam os ciganos no mercado do rossio;

- Abra o olho ó freguesa abra o olho, dois pelo preço de três é aproveitar ó freguesa abra o olho !

Apanhar o momento de tensão, de atrito, do choque, por vezes coisa de segundos é realmente uma façanha de que a Vicência se gaba, não sabemos até que ponto terá ela razão claro mas admitindo que a tenha menos claro e mui mais difícil será conhecer o motivo, o detonador pior ou melhor dá-se por ele, ouve-se-lhe o estalinho, mas o que deu origem àquela guerra surda travada e escondida aos olhos de todos e que tantas subtilezas esconde ? Esse é o busílis, ou é aí que está o busílis.

O tempo veio a permitir ver ou antever alguns, alguns dos busílis, alguns motivos, como foi o caso dos passarinhos, sim dos passarinhos, não que os comessem que cá por mim tudo que seja mais pequeno que codornizes nem pensar e até essas já são pequenas demais, dando mais trabalho que o que tenham para comer mas aqui trata-se de passarinhos, não passarinhas, passarinhos mesmo, alimentar os passarinhos.

Ao longo da vida o Zé António alimentara várias pancadas ou várias taras, imagino o que a Eunice lhe terá aturado nestes anos todos, mas enquanto a coisa ficava entre os dois lá iam resolvendo as questões, isto imagino eu que sei perfeitamente só se descontrolarem as coisas quando transbordam, quando nem uma gota mais aguentam, deve ter sido o caso daquele ranger de dentes, por algum motivo uma gota não coube, imagino a explosão se estivessem só os dois, sozinhos, assim ela rangeu os dentes e calou-se, acumulou, como fazem as baterias, imaginem se lhe salta a tampa quando estiver com a carga toda, nem quero estar por perto.

Mas voltando à vaca fria, ou aos passarinhos, o problema radicava no facto de ter dado ao Zé António há algum tempo, a pancada para atirar da janela da cozinha à rua as fatias de pão que sobravam em cada dia. Não que ficassem longas horas desfeando a rua ou os passeios, ou que tivessem oportunidade de criar bolor, nada disso, a humidade da noite amolecia-as e na manhã seguinte bandos de pardais davam conta delas em pouquíssimo tempo. Bicada aqui bicada ali em breve somente sobravam as côdeas e até essas acabavam desaparecendo, era uma alegria para a passarada que excitada com a fartura e chilreando assinalava e alegrava a matina, o problema era o entretanto, ou os entretantos.

É que nesse entretanto, isto é desde c'as fatias caíam no chão, até que passadas umas horas de escuridão a pardalada as debicasse e comesse, alguma da vizinhança justamente revoltada com as toneladas de plásticos e outros resíduos flutuando nos oceanos e ameaçando a natureza e as espécies, quase deu azo a um abaixo-assinado e a uma mobilização de força contra o energúmeno que conspurcava os passeios da avenida, incapaz devido à incultura geral vigente de destrinçar entre resíduos orgânicos e inorgânicos, entre os que rápido se degradam naturalmente na natureza e os não biodegradáveis que nem passados quinhentos ou mil anos se degradam, desfazem, decompõem, a ponto do bom do Zé António ter sentido fundados receios de sair à rua, tendo sido obrigado a mudar de tácticas, passando a esfarelar ou a partir em bocadinhos pequenos e mais facilmente comidos e até levados, carregados pelos passarinhos, táctica que contudo a Eunice não aprovou continuando a sarrazinar-lhe a cabeça por tal motivo.

Com o tempo tudo se sabe, pior ou melhor tudo vem a saber-se e o motivo do atrito entre aqueles dois não era somente esse, acontece que a santa Eunice não suportava muita coisa que ele tinha que lhe aguentar, como o ouvir música alta, qualquer musica, ou que ele perdesse muito tempo no PC, ou tão pouco suportava ela ouvir o matraquear dos dedos dele no teclado sendo batido, digo digitado, a ponto do bom do Zé António ter sido “obrigado” a adquirir um caríssimo teclado, todavia silencioso. Só porque se o desgraçado estava ao PC ou se teclava seria por haver ali gato, ou namorico e a Eunice não estava para isso, fervia de ciúmes, inda por cima fervia em pouca água nem sendo necessária grande chama para atingir o ponto de fervura, diziam as más-línguas.

Fosse como fosse parece que as coisas foram enchendo de parte a parte, terá sido uma gota só a entornar, a extravasar, diz-se que o plácido Zé António um dia não se conteve tendo jogado as mãos ao pescoço da Eunice animado de uma vera vontade de pôr fim a todo aquele tormento e de a esganar. Não quis a providência que tal acontecesse naquele dia e a coisa tá agora mais apaziguada, deixando o Zé António os sapatos por arrumar e onde calha, a roupa suja largada onde calha e por apanhar, espalhada na casa de banho ou chutada para o corredor, os livros, jornais e revistas em cima de qualquer coisa, sem que ouça uma crítica e numa rebaldaria nunca antes vista naquela casa.

Uma conceituada terapeuta aconselhou e deu descanso à família afirmando estar a Eunice completamente recuperada das dores e mazelas do pescoço dentro de meses e pronta para outra, vem aí o verão, irão os dois parta a praia como de costume, ela não lhe poupará um ralhete a cada curva, a cada sinal, a cada ultrapassagem, a cada cem metros ou a cada quilómetro, ele jurou não lhe dar ouvidos nem que ela grite, dá gosto ver uma família ultrapassar os problemas e cooperar, reconciliar-se, a felicidade é que conta, o Zé António não conseguiu mas o que importa é a intenção, o que conta é a intenção e não faltarão certamente outras oportunidades… 


terça-feira, 18 de julho de 2017

445- A PACIENTE FELICIDADE DA VIOLANTE *...


* A minha amiga Violante casou cedo e os anos nem passam por ela. 


Ele fizera todas as campanhas que lhe tinham calhado em sorte e não se podia queixar do azar, não sofrera por aí além nem se considerava um deficiente embora não tivesse recusado a pensão de invalidez nem renegasse as vantagens que a ADFA lhe concedia. É certo que pagara cara aquela missão na Jamba, como alguns se atrevem a dizer, inda que eu não concorde com isso pois ele entende até ter ganho uns bons dinheirinhos, que muito jeito lhes têm feito. O saldo é tudo, e atendendo à conta no banco a sua sorte, ou o seu azar, nunca poderão ser tidos em questão sem uma criteriosa ponderação e coisa que somente eles, o casal, poderá fazer.

A sua companheira a Violante já se habituara, a principio custara-lhe um pouco mas o amor todas as barreiras supera, ou não ? Afinal ninguém lhe tirara o seu homem, o seu amor, talvez tivessem tirado um bocadinho mas fosse como fosse era dela, portanto ficara a ganhar que isto nas guerras do amor e dos ciúmes também existe um saldo e o dela era a crédito, positivo, apuradas as contas a vantagem ficara do seu lado, ela saíra ganhando, o resto seriam conversas de treta não passariam de invejas.

Era o seu homem de sempre, apagadas as luzes o toque dele era o mesmo toque de sempre e inconfundível para ela, o mesmo jeito de lhe correr a mão pela espinha fazendo-a arrepiar-se toda ao passar entre os olhinhos das costas, o mesmo gesto prolongando a caricia por ali abaixo até entalar a mão nas suas coxas roliças, o mesmo arfar. Chegado aí a respiração dele, tensa e acelerada não mudara nada, era a mesma, como o mesmo era o hábito de fazer da mão um cutelo, uma mão em cunha capaz de a trinchar em duas, claro que não trinchava, nem aleijava, não estavam no talho do senhor Felício, simplesmente enquanto isso ela estendia a mão no escuro e agarrava-se com devoção ao terço pendurado na cabeceira da cama, como fazia há mais de trinta anos sem perder a fé, a mesma cama em que tinham casado, ou por outra, que tinham desde o casamento.


Em boa verdade a mão não era a mesma, mas era a outra e também era dele. Violante antes preferia sentir-lhe a pele nua e rude dos dedos que a pelica da luva, conhecia o seu homem até no escuro, seria capaz de o reconhecer de olhos vendados até pelo toque, ou pelo cheiro. Com o tempo haviam refeito a vida com o que sobrara e com o que tinham, sem ovos é que não se podem fazer omeletes, mas desde que haja ovos o resto pouca importância terá, afinal foram perto de quarenta anos de felicidade, três filhas e quatro netos. Como diria o senhor presidente da junta, é obra, uma obra que ambos dois ergueram a duas mãos apesar de tudo.

O estranho ritual inícial aos poucos fora-se banalizando, com a duração e o passar de certo prazo, o tempo esse grande escultor que tudo apaga e tudo aviva, o tempo se encarregara de vulgarizar a rotina. Hoje Violante ri-se desses tempos, deitar com a luz acesa era crime de lesa-majestade, se acendesse a luz do quarto à noite era mais que certo o Edmundo atirar-se ao ar, afinava com isso e duas ou três vezes depois de armado um escarcéu por esse motivo a lembrança fixou-se e o hábito instalou-se. Nunca mais aquela luz se viu acesa depois das oito da noite, ou sete, ou seis sendo invernia e durante uns tempos nem candeeiros de mesinha de cabeceira houve e, se voltou a havê-los tal se deveu a dois incidentes ocorridos quase na mesma altura, o primeiro um bocado caricato pois o Edmundo tacteando à noite e às escuras com o coto o naperon sobre a mesinha, ao invés de o achar acabou por derribar o olho que procurava, tendo  o mesmo caído no chão com estrépito e rebolando ou desaparecendo para onde ninguém imaginaria nem procuraria, rolando fora parar à casa de banho, onde nenhum de nós se lembrara de o procurar e somente no dia seguinte sendo encontrado, lascado, com uma falha, inutilizado. Encomendar um da mesma cor dos olhos do meu Edmundo, que são lindos, durou uma eternidade e custou os olhos da cara salvo seja, o diabo seja cego surdo e mudo, lagarto, lagarto, lagarto, mas foi o caso, talvez achem um pouco estranho mas foi o caso, porém ainda não suficiente para que os candeeiros voltassem às mesinhas de cabeceira mas que muita influência teve ai isso teve.  


Determinante fora o segundo incidente, não sei o que buscaria o Edmundo mas sei que derrubou o copo d’água onde à noite punha a placa, uma placa esquelética, caríssima, que no escuro pisou. Ao levantar-se da cama em busca da perna pisara a placa que se lhe espetara no pé atravessando-o de lado a lado e impedindo-o durante dois meses de ir ao quartel. Uma coisa mais séria do que inicialmente julgáramos, felizmente a placa era boa e nada sofrera, ao menos valha-nos isso naquela maré de azar que acabou por trazer de volta os candeeirinhos com os abat-jours translúcidos tão apreciados e que roubáramos num hotel de Benidorm, lugar onde passáramos a lua de mel.

De qualquer modo as restrições quanto ao acender da luz no quarto mantiveram-se quási as mesmas, o meu Edmundo é um homem de hábitos e a primeira coisa que faz ao entrar no quarto é sentar-se na cama, sacudir os sapatos e desatarraxar a perna. Desatarraxar é como quem diz, mas soltar todas aquelas correias demora o seu tempo e impressionava-me ao principio, agora até gosto de lhe tirar a comichão do coto e sempre que desatarraxa a perna lá estou eu. Mais valia que tivessem inventado um sistema de parafuso, fora isso é tudo normal, e ele todo normal dali para cima, ou quase, tirando a mão, o maxilar, os dentes e o olho de vidro é um homem como outro qualquer, é o meu homem e amo-o, não dizem que o amor é cego, olhem, por falar nisso esqueci-me das lentes de contacto que nem sei onde as meti.

* A minha amiga Violante casou cedo e os anos nem passam por ela.