Passei um destes dias frente à Igreja de S. Vicente. Um
panejão adejava levemente, a figura nele desenhada prendeu-me a atenção, uma
perspectiva das arcadas da cidade, alongada propositada e verticalmente
aproveitava o pano, lembrando os arcos da loggia
superior de uma catedral, ou a sua nave, vista de viés. É certo que não passava
de uma imagem trabalhada das arcadas da cidade, todavia, vistas sob um outro
olhar.
Entrei, Évora era a personagem da história contada por
Joaquim Carrapato, uma história contada pelo seu olhar de fotógrafo amador que
aquela exposição credita como profissional. Ele que o não negue, a sua mestria
no aproveitamento e uso da luz e da cor, dão-nos novas perspectivas da
simultaneamente voluptuosa e indiferente passagem do tempo, parecendo
sussurrar-nos os textos maravilhosos de Paulo Barriga, sobre Évora, e que tive
oportunidade de apreciar num evento da Feira de S. João.
Este outro olhar de Joaquim Carrapato, as novas imagens
por si encontradas dos velhos recantos e encantos do nosso burgo, todas elas de
uma riqueza cromática inigualável, ali despidas da desatenção que
quotidianamente atiramos aos pormenores, criam novas perspectivas que nos
repovoam o imaginário, desconstruindo aparências, criando novas probabilidades
como se de novos lugares se tratasse.
Carrapato não procura acasos, elegeu Évora para nela subverter
o observado ali feito incógnita, dando novo corpo à nossa condição de voyeurs,
através de nuances lumínicas novas, exteriorizando uma reflexão visual e
intencional muito próprias e um sentido delirante do percepcionista calmo, malabarista
no manuseio da objectiva, marcando a presença da intenção e da calma inerentes
a quem comanda a mão que manuseia a máquina, oferecendo-nos um trabalho todo
ele fruto de labor e da insistência de um autodidacta gentleman, roubado às
horas livres do bancário cativante e simpático, todo ele e sempre um contínuo
esforço ou jogo de paciências, empatia e delicadeza para connosco.
Fica mais que provado ser a fotografia o repositório da
sua paixão, permitindo-nos descobrir nele uma apurada complexidade dos
sentidos, redundando no encantamento transitivo de si para a imagem e para os supremos
valores clássicos desta arte que por vezes aflora assomos místicos, fundindo
temas, recriando novos e novas imagens pictóricas, testemunho da objectividade
documental arrancada à objectiva.
Joaquim Carrapato é já um mestre nestes jogos com a luz,
na graduação de cores tons e vislumbres que nos desestabilizam o sistema
perceptivo para nos ciciar a intimidade do misticismo messiânico que o anima,
oferecendo-nos novas e subtis metamorfoses dos mesmos lugares de sempre,
através da sua criativa construção das imagens que tornam enigmático o espaço
enquadrado.
Quem olhar aquela exposição não negará haver ali uma
fúria de vencer a estética vigente, num esforço simultaneamente hierático e de
erotismo, ao abominar a rotina, deixando descobrir uma forma muito pessoal de
olhar para a cidade, descobrir-lhe a poesia e as sombras da noite.
Parabéns a Joaquim Carrapato, que, recriando memórias se
vai aos poucos tornando o nosso Koda. Vá vê-lo, esta crónica saiu mais cedo
para que tenha tempo para isso. A exposição está aberta até Domingo, 29 do
corrente. Só ganhará com isso.
* Publicado por Maria Luísa Baião em Diário
do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito num
Domingo,
a 15 de Outubro de 2006 e como homenagem a um amigo.