sábado, 9 de fevereiro de 2019

577 - AGRADECIDA, MUI, by Maria Luísa Baião *…



Prezo muito a amizade. Se sincera, sólida, desinteressada, é do melhor que podemos dar e fruir. Recebo frequente e felizmente muitas provas e testemunhos nesta órbita. A todas e todos agradeço as palavras, solidariedade e consideração, mas sobretudo o gesto de simpatia e empatia, retribuo-vos declarando-vos, como não poderia deixar de ser, a minha pública amizade.

Toda a minha vida tem beneficiado desse vosso conforto, tudo tenho feito para que não vos fique devedora ou vos desiluda. Sem querer minimamente ferir susceptibilidades, da amizade mais chegada ao simples conhecimento ou simpatia que me dedicam, desejo hoje prestar um vero agradecimento a uma pessoa especial que, embora ultrapasse o que legitimamente devo esperar, abertamente me admira e considera, e o afirma, coisa que várias vezes me fez ruborescer, deixar pouco à vontade e julgar imerecidos, quando não despropositados ou exagerados os seus elogios.

Surpreendentemente trata-se de uma amizade com a qual a propósito dos mais díspares assuntos nem sempre me encontro de acordo. Contudo, valha a verdade que tal só nos tem trazido proveito, pois é da discussão que nasce a luz e tantas vezes o reconhecimento de uma ou outra posição, encerrando e enriquecendo o capítulo, a razão.

Nacionalista e regionalista convicto, tem contribuído para o meu esclarecimento e formação em domínios nem sempre por mim compreendidos na sua particular dimensão. Autodidacta e homem de longa vivência e experiência, é, como eu, socialista empedernido, se não mesmo lícito afirmar-se sermos ambos mais socialistas que o socialismo admitiria nas suas balizas, tantas vezes redutoras quanto o podem ser os limites de qualquer ideologia, já que vertemos opiniões regidas pelo próprio pensamento e fruto da avaliação da evolução do “homem” na nossa sociedade.

“Urbana”, como tantas vezes me apelida, tem sido através das suas teorias e explanações que melhor tenho entendido a estrutura agro-rural do Alentejo e do país, tanto quantas as implicações da estrutura fundiária que mantemos e a imbricada relação com o nosso bem-estar, qualidade de vida e em última análise a estrutura social que desde o 25 de Abril temos produzido.

Tanto devo a esse rural rústico, todavia como vêem, não será impunemente que me apelida de “urbana”. Chegou o momento da vingança. E não espere que lhe peça perdão por isso porque não tenho intenção de o fazer. Fica avisado. Não o quero só para mim, podem lê-lo aqui nas páginas deste diário ou numa simples ida ao Google, digitando “alentejoagrorural” e reconhecerão com quanta dedicação e paixão deixa transparecer aspectos por tantos considerados prosaicos, contudo oferecendo-nos veras lições de história, sociologia, agricultura, e, pasme-se, até de gastronomia da nossa terra, o que, juro, é do melhor que Portugal tem.

Pois esse meu amigo, que se vai mantendo jovem apesar dos muitos anos que tem, com este exercício para o espírito, a escrita, cada vez mais me convence das razões da sua razão, se com esta afirmação consigo ser específica. A sua “doutrina das especificidades” como lhe chamarei, aliada a outras vozes e leituras que capto, levam-me hoje a crer que, a par de algumas vozes que se vão ouvindo já, a nível mundial, não estar provado que a para tanta gente famigerada globalização, fruto de um liberalismo selvagem que virou moda nas últimas décadas um pouco por todo o mundo, seja um elemento positivo para o equilíbrio social e económico dos países do mundo, do globo.

África, América latina, oriente asiático, têm beneficiado com tal moda ? Adquirimos-lhes mais produtos ? Produzem mais ? Ou viram crescer o desemprego e a miséria ? Vendemos-lhes, nós, países ricos, mais produtos e serviços ? Conseguimos ou estamos em vias de conseguir um maior alcance que as intenções, pois disso não passaram, que se anteviam no moribundo ou já enterrado diálogo Note Sul ? Há menos fome e menos pobres, menos excluídos no país e no mundo, agora que antes ? Por que não advogam tanta democracia e liberdade propaladas pelos países ricos, a liberdade de circulação das pessoas ? E a Turquia ? E a queda demográfica europeia ?

Cobiçamos-lhes as matérias-primas, fixamos os preços dos seus produtos nas nossas bolsas, de Tóquio a Nova Iorque, enchemo-los dos nossos produtos acabados e arrecadamos as respectivas mais-valias. Enriquecemos com a pobreza que espalhamos. Ganhamos tanto menos quanto mais deslocalizamos, e alegremente vamos hipotecando o nosso equilíbrio e harmonia social. Até quando ?

Virá o dia, como diz o Francisco Pândega, em que a miséria será tanta que nada mais nos restará que voltar à ruralidade de subsistência e de impotência que nos mina ? Oxalá esse pesadelo nunca vire realidade, oxalá. O tempo o dirá, acredito que a nossa amizade durará para além da constância com que tal pesadelo sub-repticiamente se instala e contra o qual tanto se bate.


* By Maria Luísa Baião,‎ escrito ‎ quinta-feira, ‎29‎ de ‎março‎ de ‎2007 pelas ‏‎10:24 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes. Homenagem ao meu amigo Francisco Pândega que alimenta com a sua sapiência o bloguealentejoagrorural”, link  http://alentejoagrorural.blogspot.com/

576 - O MISTERIOSO SENHOR X, by Luísa Baião *


Há muito tempo que regularmente, semana após semana, quer esta coluna seja publicada quer não, o empático senhor X me remete um e-mail de regozijo, parabéns, contestação, critica ou incentivo e impreterivelmente na própria segunda-feira da publicação ou não, desta coluna. Em abono da verdade se diga que é muito simpático, educado, cerimonioso e contido q.b., pelo que, embora o não conheça, tenho dele a ideia de um jovem na casa dos cinquenta, que terá frequentado a velha escola e os velhos cursos. O domínio da gramática da sintaxe da ortografia e semântica da língua mãe, a par da educação e do civismo demonstrado assim o atestam, uma vasta cultura e o conhecimento que detém sobre aspectos mais herméticos da minha prosa dão-me essa certeza absoluta.

Não sendo o meu único correspondente será todavia o mais representativo, pela acutilância do pensamento, a constância da sua presença semanal no meu correio electrónico e a parcimónia que o alimenta, já que nunca alvitrou conhecer-me pessoalmente, nem envidou dois dedos de conversa ou um simples café. Mantém uma distância salutar e uma independência que eu respeito e talvez por isso lhe pague na mesma moeda. Apreço e consideração.   

Moderado, nunca deixou quando o entendeu, de fazer uma crítica ou contestar o que digo, sempre de forma correcta e construtiva, parecendo por vezes temer melindrar-me. Apenas o conheço pelo endereço electrónico, não faço a mínima ideia de quem seja, mas agradeço-lhe tanta afabilidade e regularidade vai já para três anos ou mais.

Posto este preâmbulo as palavras que vou dirigir-lhe são para todas as minhas leitoras e leitores, em especial para as (os) que comigo trocam correio ou mensagens e vulgarmente se queixam do facto de eu ser “medrosa”, de “não abrir totalmente o jogo” e por vezes as minhas crónicas serem autênticos exercícios de adivinhação, a tal ponto que sucede o senhor X esporadicamente as apelidar de oráculos !

Aprendi há muito e isto a propósito de haver quem afirme que o Diário do Sul só servirá para saber quem morreu, aprendi há muito com o seu velho Director que, na nossa cidade e no Alentejo somos uma grande família, onde todas temos parentes onde quer que seja, sendo impossível atacar uns sem melindrar outros. Num Alentejo desertificado a consideração e apreço pelos leitores conta. Também o sei, e se sei.

Do hermetismo destas crónicas, cada uma, cada um, que tire a ilação que entender, crónicas haverá que por mor disto poderão ter até mais que uma leitura, desenvolverão a imaginação, aguçarão o engenho e a capacidade de análise e crítica das leitoras, sem nunca serem, disso não há necessidade, ofensivas para quem quer que seja. Por outro lado compreenderão que há, sempre houve e haverá, temas tabu que não me compete a mim lançar como provocação ou a debate. Para isso existem lugares próprios, desde fóruns de cidadãos a associações, meios de comunicação e partidos políticos.

Sempre haverá quem melhor que eu conheça e domine os temas que gostariam que eu “esfarrapasse”. Neste mesmo jornal há quem a esses temas se dedique com proficiência e regularidade, com seriedade, boa-fé e boas intenções. Será que os lêem ? Ou passam por cima e só vos agrada o que escalda e queima ? A minha coluna neste jornal não é um anódino ou anónimo blog, é a expressão sincera e aberta do meu sentir, é um modo de convosco me dar, convosco conviver e não para vos ofender ou a quem quer que seja e muito menos modo de alimentar fogueiras ou boatos. É um modo de me conhecerem melhor já que pela cara e pelo nome ninguém me alcunhará de anónima ou sequer simpatizante desse lugar cómodo que o anonimato a tantos propicia.   

Esta coluna encerra mensagens que devem descodificar, não flechas que eu deva atirar. É por estas razões minhas amigas e amigos, que não embarco em certas loas ou temas que me sugerem. Por outro lado, leiam bem nas minhas linhas e entrelinhas e digam-me quantas vezes eles são abordados pelo seu lado humano, pelos resultados de uma acção ou pela reacção a um qualquer efeito.

Respeito e consideração devo eu e todas a toda a gente. Quem que não eu se considera no direito de lançar a primeira pedra ?

* By Maria Luísa Baião,‎ escrito ‎ segunda-feira, ‎12‎ de ‎Novembro‎ de ‎2007 pelas ‏‎15:32 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.

575 - GOSTARIA DE TER IDO, by Luísa Baião‎ * ...


Na lufa-lufa dos dias algo por vezes se perde, um comboio, um autocarro, ou outra coisa que enerve. Também eu, como quem ferve em pouca água, que tanto queria ter estado presente, perdi por falta de secretária e de álibi, um evento que na semana passada teve lugar na U.E. e promovido pelo Núcleo do Alentejo da Associação das Mulheres Empresárias, por mor disso ganhei um frenesi, dos tais que tanto incomodam quem por vezes quer estar em dois lados ao mesmo tempo.

Foi realmente uma falha minha, falta de sentido de oportunidade, coisa de que não me desculpo, já que não tenho, avulso, “parenta” internada ou em maternidade.

Promoveu na nossa terra, há dias, a Coordenadora Regional da instituição a que aludi, uma mulher pró-activa, uma guerra no feminino p’lo combate sem tréguas a desigualdades certas que afectam as nossas mestras de ofícios e misteres. (e mestres).

Não foi o amadorismo a causa que ao nosso antigo Liceu levou o dever dessa mulher a valer, que ali reuniu personalidades e vontades como quem força a capicua, forçando mentalidades, desta e de outras cidades, a fazer por vivermos ou melhor por sobrevivermos, como faziam os frades, pegando numa charrua se é que queremos comer.

Não se falou de turismo, nem tão pouco de biscates, antes de muitas e variadas artes para as quais se buscou sim um caminho, um incentivo que, não o duvido, com mulheres deste quilate desate o nó de disparates que há anos se vem atando e sofrendo, qual sorvedouro ou remoinho, nado e criado por gente que sempre disse que nunca haveria défice e outros dislates tais, mas que de modo intemporal e paulatinamente, desde há décadas nos mente.

“Empreendedorismo” disse ela era a palavra de ordem, força que teremos que buscar como quem busca uma janela d’onde, de forma singela nos ergamos do abismo sustentado onde jazem enterrados o saber e o progresso tão aclamado, que muitos dizem ser sucesso mas que nesta terra como tudo, não vemos nem por um canudo.

É a economia, dizem, agora nova panaceia global e que temos que enfrentar com a mesma coragem com que enfrentaríamos decerto um qualquer bravo animal. Jargão que muito orador usa como canto de sereia, pois de diagnósticos, prognósticos e teóricos andam as páginas de jornais cheias. E como nada se perde, tudo se transforma ou se cria, a mulher, no plural, tem que ter verve, energia, para alterar um conceito que fará da noite dia e não se quer mais um pregão mas sim uma tomada de consciência, aquiescência, militância.

Desenvolvimento a preceito era por certo aquilo que mais queríamos todas, não esta feira de vaidades em que há muito se mantém a escassez de actividades no concelho, no distrito, até mesmo no país. Queríamos era ver isto crescer, a andar para a frente a valer e de modo que alimentasse fogos de continuidade, focos de actividade, ou como agora se diz em economês, que quebrasse a passividade, gerasse sinergias e empatias, milagre que permitisse alavancar o arranque do investimento feito mas serenando em águas de bacalhau, que lograsse optimizar a captação de novas unidades industriais ou empresariais, que nos catapultasse para um ranking capaz de nos resgatar à vergonha dos rácios que apresentamos...

Claro que essa mulher de peso deve conhecer a trabalheira que tem às costas, farta deve ela estar de fazer orelhas moucas aos velhos do Restelo, que também os temos como temos infelizmente e às dúzias, gente contaminada com o pior dos tipos que as muitas variedades de cegueira apresentam, que é aquela muito típica dos que não querem ver nem à força.

Incómodos, é o que essa mulher anda a trazer-nos a todas, incómodos que, queira Deus consigam fazer despertar do sono dos justos tantas e tantas instituições que proliferam na nossa terra e parecem acordar de um ano inteirinho dormindo, simplesmente para elaborar o Plano de Actividades e o Orçamento do ano seguinte.

Conseguirá ela ? Deus a ouça.

By Maria Luísa Baião,‎ escrito ‎quinta-feira, ‎4‎ de ‎Dezembro‎ de ‎2003 pelas ‏‎19:56 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes. Homenagem a Anabela Palma coordenadora do Núcleo do Alentejo da Associação das Mulheres Empresárias. 

574 - A VIDA É UM PALCO... ‎By Maria Luísa Baião*


Passadas foram as férias, é com gosto que regresso a velhas amigas e amigos, até porque algumas me fizeram já sentir estar a faltar às minhas obrigações.

Entre eles um que conheço há muito e por quem tenho grande apreço, a quem os deuses por razões que ninguém sabe deram o castigo de Tântalo, vê a vida escapar-se-lhe entre grades que o não cercam, mas que vorazes lhe tolhem os passos do desejo, do sonho, da liberdade que a alma em chama clama, surda, muda e moribunda, cega ao passar das horas, dos dias, da vida.

Outro, que conheço menos bem e nem me lembra desde quando nem porquê, não mais felizardo que o primeiro, padece do tormento de Sísifo, tendo penado toda uma vida, carregando pesado fardo, numa gruta em que passou a vida desfiando uma roca a que os fios do destino nunca permitiram compor mais obra que a um artesão, ainda que suas mãos sejam capazes de milagres sem os quais a técnica que tantas vezes nos deslumbra, pararia.

Boas almas a quem a vida enganou sempre, engana ainda e enganará mais, mesmo que o não creiam, enredados em coisas tais como um dedal de linhas amarelas ou num engenho capaz de tornear as peças mais singelas.

Não sou diferente, quem me dera, também eu carrego a minha cruz. Quantas crónicas não compus eu já, que por pudor não coloquei nesta janela semanal, tão só para que não me julguem mal.

Tântalo reparou na máscara que levava nesse dia, é verdade, não era realmente eu mas era eu só, a quem os deuses forçam a tantos papéis desempenhar, que me vejo grega para os desembrulhar. Sou mulher, sou filha, esposa, mãe, terapeuta, voluntária, autarca, cronista e... É tão vasta a lista... Que de assistente social a psicóloga, não há maleita que me não bata à porta.

Não são máscaras que empunho no meu dia-a-dia, são diferentes papéis a que o teatro da vida me obriga, e vos garanto que entre o riso e o pranto, busco metodicamente que a comédia, o drama e o trágico que em mim vivem, não vos arrastem no momento ou no lamento que calada sofro.

A vida é um palco, procuro dar o meu melhor mas por vezes me interrogo, se vale a pena, se consigo, mas nunca se me esforço. Sempre dei o melhor de mim, será que serei mais feliz assim ? Serei mais feliz no fim ?

A Personalidade é tão de cada um de nós como uma impressão digital, é fruto de contactos e experiências pessoais, é feita também de desilusões e ais, de frustrações, traumatismos e algumas doses de contentamento por vezes tão banais que, melhor seria dar outro rumo à vida, sair do palco, de cena, buscar noutras paragens suspiros e futuros que aqui de reais têm somente difusos estigmas virtuais.

Nem só os amanhãs que cantam se ouvirão jamais, a dignidade, a solidariedade, a igualdade, a competência, o mérito, o esforço, a recompensa, onde param, quem os viu passar ? Onde ? Quando ? Não foi para ver assim este país e dez milhões de almas que chorei de alegria em 74.

Que pensaram nesse dia Tântalo e Sísifo ? Que pensam hoje, agora ? Valeu a pena ? Por que não se encerraram as portas do Teatro ? Por que se arrasta a peça ? Por que há cada vez mais quem peça ? Quem nesta peça corre tão depressa que ultrapassa os demais sem que repare no seu atraso ? Quem cava as distâncias ?

As páginas da nossa vida teimam não correr, passar. Não no palco mas nos bastidores, melífluos seres nos cortam cerce legitimas ambições, quantas vezes manobrando com arte o silêncio, vendendo cara a esperança...

Cada vez mais a natureza humana me decepciona. Como marionetes nas mãos de redutores maniqueístas nos sentimos, alvo de crueldades, intolerâncias, complexos, provincianismos, à mercê dos quais nos sentimos pequeninos, sentimos não ser nada, não valer nada.

Valerá a pena a vida assim? Acho que não, vão por mim...


‎* By Maria Luísa Baião,‎ escrito Segunda-feira, ‎2‎ de ‎Setembro‎ de ‎2002 pelas ‏‎19:46 horas e provavelmente publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

573 - AMADEU ... - LUÍSA BAIÃO texto inédito *


Foi preciso que aquela abécula me tivesse tirado do sério para perder a fé que tinha nos homens, não em todos os homens confesso, pois havia uma réstia deles, poucos, cada vez menos, a quem por empatia dava toda a minha simpatia e confiança desde o primeiro momento.

Como disse não eram todos. Era até um restrito grupo deles, um grupinho especial, uma categoria à parte. Nem eu soube nunca a que se devia esta minha aceitação ou abertura a quem poderia nunca na vida ter sequer visto antes por um momento que fosse.

Todavia, desde que se chamassem Inocêncio, Adão, Abel, Santos, Moisés, Espírito Santo, Salvador, Epifânio, Amadeu (s) Anjos, Ângelo ou Cândido, era como se estivessem cobertos por uma aura divina que lhes permitisse franquear todas as portas devido a um qualquer misterioso aval celestial.

Nunca me dei mal com esta minha atitude, nunca ou quase nunca (pois não há Bela sem senão) ocasião única em que quer eu quer o meu marido comungávamos procedimentos. Ele dava e dá toda a abertura e confiança a toda a gente desde o primeiro momento, retirando-a se vier a não ser merecida, eu vou-a concedendo à medida que é merecida, partindo de pouca ou nenhuma.

Opções. Modos de ver o outro e de agir, eu jogo pelo seguro, ele avança de olhos vendados pelo arame e já tem caído, já se tem lixado, eu ou porque levo a mão sempre no travão de mão, ou porque não conduzo prego a fundo estampo-me menos vezes, mas com as angelicais figuras de que atrás vos falei nunca tive um berbicacho, a não ser c’um coitadinho cujo apelido já nem lembro. Mas lembro o nome, Amadeu, Amadeu camafeu, que por razões que vos conto não fez jus a quem lho deu, e muito menos o mereceu.

Dizia Einstein que idiotice e estupidez eram a coisa mais bem distribuída ao cimo da Terra, igualitariamente distribuída dizemos nós na brincadeira, como dizemos que o cérebro é uma coisa maravilhosa e toda a gente devia ter um. Quer uma Quer outra premissa se aplicam que nem uma luva a este Amadeu cujo nome não mereceu e que ainda mereceu menos a minha concordância, simpatia ou tolerância. Nunca tive paciência p’ra gente tolinha.

Mas eu conto-vos, não vos quero ver em pulgas como vi o Amadeu que às tantas nem sabia como estar na cadeira onde o zurzi.

Corria 84, talvez 85, e eu já casada, já mulher, 27 ou 28 anos, vi-me aluna deste inefável Amadeu por causa de quem até vim a desgostar de Mozart. Dava-me música mas não me alegrava este marmelo, ou cantava muito bem mas não me convencia, apesar de se dizer mestre em psicologia.

Eu constituíra o meu clã, a minha tribo, o meu grupo, a minha família, e por essa altura o meu filho andaria pelos 9 anos já, indo para dez e eu qual loba solitária e ciosa da alcateia, da cria e da vida, tinha e tive que aturar o Amadeu amador em duas cadeiras vagamente intituladas Psicologia de Grupo, ou de grupos, a fim de mais tarde sobreviver nas escolas às criancinhas e saber lidar com elas. Uma idiotice pegada, e disse-o ao amador do Amadeu; 

- Grupo só faço com o meu marido, tão individualista quanto eu.

 e era verdade, pelo que quer eu quer ele, meu marido, recusámos terminantemente integrar ou integrarmo-nos num grupo. Já tínhamos o nosso grupo, já estávamos habituados a caçar emparelhados, a ninhada criada, há muito éramos um grupo de dois, daqueles grupos que há uns anos atrás a Pide não queria ver estacionados nem a andar parados, como se dizia. Se não era isto era uma coisa parecida, pensem, ou agrupem-se e meditem que eu tenho mais que fazer.

 O trabalho exigido por ele Amadeu fez-se. Eu e o meu marido, em dois ou três fins-de-semana, umas tardes e umas noites, garrafas de licor ou de cerveja na mesa, gelo, copos gelados, o que é certo é a coisa se fez mesmo, com intervalos para cambalhotas e tudo, num grupo deve haver e sobrelevar a harmonia, certamente nenhum de vós estará contra, ficámos até muito contentes e orgulhosos do nosso trabalho mas…

 Mas quando as notas saíram o trabalho teve nota negativa, o que a juntar a outras notas nada famosas nos ameaçava a ida a exame naquela cadeira. Fiquei tão fula com o Amadeu que não descansei enquanto não o achei e interpelei. O meu marido só me recomendava calma, ele que calma foi coisa que nunca teve, podem ver como eu estaria…
 Fui dar com ele, ele Amadeu, encafuado num gabinete alcatifado, ar-condicionado, num primeiro andar do Palácio da Inquisição. Bati, e depois de ouvir a autorização abri, para meu espanto dei de caras com o padre José Alves chefe do respectivo departamento. (nessa altura só padre, foi nomeado Arcebispo de Évora em Janeiro de 2008, tendo resignado por limite de idade em 2018),.

 Perguntei pelo Doutor Amadeu, com o queixo o senhor padre indicou-mo, estava atrás da porta, a um canto, encolhido ou escondido por uma secretária e só me lembro de lhe ter perguntado se se julgava Deus.

O belo do Amadeu começou a gaguejar e eu aproveitei para rematar e atirar a matar. O padre José Alves surpreendido sustinha a custo um sorriso irónico ante a barraca que se armava na sua frente. Nunca por palavras ou gestos tentou colocar termo na desavença e tenho para mim que gostaria tanto do Amadeu quanto eu.

O Amadeu não era Deus nem podia negar o individualismo, o carácter e personalidade de cada um, gritei-lho. Nem eu nem o meu marido andávamos ali para aturar melgas ou adesivos colados às nossas costas e aproveitando-se do nosso trabalho mas não tendo habilidade para alinhavar duas linhas. Disse-lhe que tinha já um filho em casa e não estava para aturar os filhos dos outros nem para lhes dar de mamar ou os desmamar.

 E depois apontei-lhe o dedo, num grupo, até num grupo, mesmo num grupo numa alcateia, numa matilha, num bando, num rebanho, há uma matriarca que ordena põe e dispõe, ou um macho Alfa que comanda, um grupo não é nada sem um líder, sem uma vanguarda, e ele Amadeu que não contasse comigo para engrossar o rebanho, dar de mamar aos borreguinhos ou desmamar cabritinhos e que como professor de uma turma de psicologia de grupos que organicamente liderava não liderava coisa nenhuma, deixando até muito a desejar ao não ter considerado no grupo a charneira, a liderança, a vanguarda esclarecida que a dirigisse e mais e mais e tudo e tudo e blá blá blá, o Amadeu encolhido e o padre José Alves rindo da sova dada ao desgraçado.

- E livre-se de não me levar a exame porque até o morderei. Onde nós chegámos, já tudo é professor universitário, onde iremos nos acabar ?

Deixei no ar a interrogação, dita ou gritada directamente ao padre José Alves (eu não cabia nem estava em mim, o meu marido ria e dava-me palmadinhas no ombros, nas costas). Retirei-me com uma vénia, desejos de bom fim-de-semana e não sei que mais.

Saldo final da contenda, no fim do ano não fomos a exame, o que foi para ambos uma completa surpresa.

Pois não fomos mesmo, o bom do Amadeu dera-nos a nota ambicionada, o que nos dispensou da charada.

Nunca mais o vi ou ouvi falar dele. Vejam só a minha sorte...




* NOTA: Hoje mesmo, ao consultar casualmente um atlas geográfico, dei com esta crónica da minha Luisinha, manuscrita, com mais de trinta anos e que na altura eu não quisera bater á máquina porque não quis que ela publicasse aquela crónica, Estive entretido a bate-la durante tarde e agora sim já pode ser publicada. Os pressupostos contra os quais eu me insurgira já não se colocam, pelo que seria injusto mantê-la incógnita. Obrigado.