quinta-feira, 14 de novembro de 2019

621 - SEBASTIÃO & GAUDI,by Maria Luísa Baião *


Sebastião é um homem simples, de parcos conhecimentos e ainda menos recursos económicos, mas com um coração de uma grandeza que só a alma excede. Vive numa das favelas do Rio de Janeiro e encarrega-se da limpeza e manutenção de um grande prédio de uma não menor multinacional.

Circunscreve os seus passeios quase exclusivamente ao caminho casa trabalho, trabalho casa, porque a vida lhe é madrasta e quer neste percurso quer nas horas vagas, deambula por obras e aterros garimpando ferro velho, restos das obras, mosaicos partidos, arames, tudo que a sua imaginação torna passível de transformação.

Na favela, onde as barracas se amontoam disputando espaços exíguos num mar de miséria, onde o crescimento só é possível em altura desde que paus, tábuas e sobras de caixotes aguentem o esforço, Sebastião foi paulatinamente construindo, como quem compõe um puzzle, de que fez o seu hoby, com os restos garimpados àqueles a quem a vida permitiu desperdícios, uma casa sólida, de ferro e argamassa, talvez a única segurança que na vida tem.



Nessa casa, que se foi destacando das demais não pelo tamanho mas pelo apurado sentido estético e originalidade que Sebastião lhe imprimiu, foi expressando a criatividade através de ousadas decorações, prenhes de inovação cromática, veros testemunhos da sua capacidade inventiva.

Nessa obra colocou Sebastião todo o entusiasmo e poesia, dando corpo a uma decoração fantástica, a sublimes formas de expressão plástica e de estilo genial, a que não foi alheio um apurado sentido estético, cuja originalidade, diversidade e riqueza o colocaram no limite do delírio artístico.

Pelas suas características a casa tornou-se forçosamente notada, uma nota dissonante no meio da homogeneidade e singularidade da favela. Não se sabe como mas a notícia da sua existência atraiu curiosos, tendo chegado mesmo aos ouvidos de quem desconhecendo Sebastião, conhecia um mundo que ele jamais vira ou sonhara sequer existir.

Alguém falou de Gaudi a Sebastião, que ele prontamente esclareceu não conhecer, não ser pessoa da sua intimidade e muito menos ter com ele qualquer comprometimento, não não, Sebastião era pessoa séria, pobre mas honesta e nunca vira sequer ao longe esse tal de Gaudi ...

Disseram-lhe então que Gaudi fora um grande mestre modernista  do Séc. XX, talvez mesmo o mais original arquitecto dos últimos séculos, que vivera entre 1852 e 1926, que se distinguira pela integração de elementos de arte islâmica e gótica na arquitectura local Catalã, o que pôs Sebastião de pé atrás, mais confuso ainda do que estava no início.

Lhe contaram que também Gaudi professara uma estética romântica  (não românica), que das suas mãos saíram formas de escultura orgânica e naturalista, que enfim, se distinguira por ser apóstolo da Arte Nova, o que só conseguiu fazer com que Sebastião abrisse mais a boca e acentuasse  o cenho.

Então falaram-lhe na Sagrada Família, a catedral mais famosa do mundo, rica pela volumetria e variedade de formas arquitectónicas, biológicas, vegetais e animais que apresenta, um exemplo de crença na fé, no amor e na esperança, um conjunto vivo, modelado pelo próprio Gaudi, que pretendeu com ela dar corpo às palavras de Cristo; “ Eu sou a luz do mundo”.

Foi então que, a quem praticamente nunca tinha saído da favela alguém pagou uma viagem a Barcelona, com guia e tudo. E ao chegar, Sebastião sentiu-se menos sozinho e mais compreendido. Não passeou como um normal turista, observou com atenção os pormenores desprezados pela maioria e sem que alguma vez tivesse estudado ou conhecido Gaudi, foi directo àquilo que o mestre mais vincara, afagando mosaicos, observando ângulos, analisando cores e perspectivas.

Sebastião compreendeu no momento que não estava só, que não era a ave rara da favela que muitos lhe tinham feito crer, Sebastião chorou de emoção e comoção, demonstrando uma sensibilidade que só aos grandes mestres é permitido aceder. A televisão por vezes surpreende-nos, não consegui suster uma lágrima, só não sei se por Gaudi se por Sebastião.



***** Texto escrito por Maria Luísa Baião por volta do ano de 2005 e nesse mesmo ano publicado no jornal Diário do Sul, coluna Kota de Mulher .





sábado, 2 de novembro de 2019

620 - DE FACA AFIADA OU DE FACA NA LIGA …

          

Entre operações mandriava-se, perdão, corrijo, entre missões folgava-se, o pessoal descomprimia, descansava, cuidava da manutenção das armas, bebia umas Cucas geladinhas se houvesse combustível, gerador, electricidade, frio, e entretinha-se debicando umas pitadas de sal, destressava.

A seu modo cada um buscava um entretém que lhe ocupasse as horas mortas e a mente. Escreviam-se uns aerogramas, lia-se, disputavam-se umas partidas de damas ou xadrez, cuidava-se da fardamenta e ensebavam-se as botas com especial cuidado. Uma borrega atrasaria toda a coluna, exporia a maiores riscos todos nós incluindo o seu “dono” que, para acertar a ritmo dos restantes seria colocado `a cabeça da fila, alvo da chacota e das queixas de quantos eram mor disso condicionados na marcha, na maior exposição ao perigo, enfim, um lugar que ninguém invejava, todos temiam e raramente era ocupado voluntariamente.


Por mim optei por me dedicar a esfolar todo o bicho careta que tivesse pele e estivesse à mão, não somente os que aleatoriamente caçava, ali era mais fácil o acesso a carne fresca e tenra que a quaisquer dietas vegetais, mas aproveitava todos os que me caíssem nas mãos. As peles e os escassos fardamentos militares caídos em desuso e esporadicamente oferecidos como gentileza pelo comando da província para com a sanzala constituíam quase tudo que os indígenas tinham, para vestir, para alimentar o seu artesanato, para viver. As peles bem curtidas eram impermeáveis, delas se fazendo alforges para água, sacos para o que desse e viesse, roupas, tiras para atar o necessário, cobertores, almofadas, bancos, digo pufes originais, assim a preparação e acabamento das peles fossem cuidadas desde o início.

Uma borrega não dava lã mas dava chatices que bastassem, dores e mau estar, vi feridas que viraram chagas dificílimas de curar pelo que ao chegar o sofredor ansiava descalçar as botas, tirar as meias, preparando-se para o suplício habitual em casos tais, álcool, mercurocromo ou sulfamidas, pomadas caseiras, sebo de macaco, uma ligadura de gaze e descanso, dependendo do estado em que o desgraçado chegasse. Alguns não chegavam a passar por todo este calvário, arrastando os pés, cambaleando a marcha, ora pisando à esquerda ora à direita até pisarem uma mina e pum ! Lá se ia a borrega, o pé, a perna, e mor das vezes o desgraçado todo. Não sucedia todas as semanas mas inda assim durante a minha comissão e sob o meu comando aconteceu duas ou três vezes. Só não aconteceram mais acidentes porque o castigo de ocupar o primeiro lugar da coluna os levava a ter mais cuidado com as botas que com as mães. Não tivesse sido essa exigência e muitos mais de entre nós teriam sido enterrados no sul de Angola. A título de esclarecimento adianto-vos que fora essas ocasiões em que o lugar tinha um incauto a ocupá-lo era eu quem o preenchia. Mais de noventa e nove por cento das vezes lá estava eu, dando o exemplo, transmitindo coragem e confiança aos meus homens, mas também de olhos bem abertos e orelhas escancaradas. A cabeça da coluna não era lugar para se brincar, dás umas risada, viras por uns segundos a cara, descuras a terra recém mexida na picada e pum ! Vais para o caralho feito em picado.

Foi assim, brincando e como passatempo das horas vagas que me especializei em esfolar e curtir peles. A brincar também se aprende, retira-se a pele com um mínimo de gorduras agarradas, estica-se bem e limpa-se o interior raspando-o com uma faca bem afiada, salga-se à maneira, arma-se com uns caniços dispostos em cruz patriarcal ou dos arcanjos, isto é com dois braços, e coloca-se a secar em local arejado para a ajudar a conservar e afastar moscas e respectivos parasitas que infectariam e estragariam a pele. Depois é traçar, cortar, coser com recurso a finas tirinhas da dita em vez de linhas de costura, que não há, e teremos à mão uns lindos calções à Tarzan. Tenho algumas fotos envergando um par deles, se as encontrar no baú postá-las-ei aqui para vosso deleite e para que vejam quão belo era este mancebo por volta dos vinte anos.


Hoje tudo que diga respeito a couros é comigo, sou uma verdadeira autoridade na matéria, afinal brincando se aprende e o custo, bem vistas as coisas nem foi elevado por aí além, trocámos lições de curtimenta por lições de histofisiologia, o ponto comum ? A faca, a mesma faca bem afiada que raspa a pele depois de esfolada serve para muitas mais coisas desde que a saibamos escolher e manter bem afiada claro. A ferramenta tem que ser adequada à função sob pena de não retirarmos dela a devida e esperada rentabilidade, ou rendibilidade ?

Assim sendo, uma faca ideal para raspar deverá ser muito mais pequena que uma catana mas ter a lâmina comprida e direita, apenas ligeiramente curvada na extremidade, o que ajudará na esfola e, volto a frisar, naturalmente bem afiada, afiadíssima. Muita gente não o sabe e pensará haver uma ou duas dúzias de diferentes facas, grande engano, há facas para todos os gostos e todas as funções. Ali junto ao Cunene uma boa faca era não só um objecto de primeira necessidade como de primeira ordem, não olvidemos que algumas vezes, felizmente poucas, a nossa sobrevivência numa inesperada luta corpo a corpo dependeu sobretudo da faca usada. Por mim preferia-as sempre com um pouco mais de dois palmos de uma ponta à outra, bico bicudo, ligeiramente encurvado no gume e, este ondulado dessa curva até meio da lâmina, continuando o resto a direito e toda ela sempre bem afiadíssima como já vos dissera. Acompanhava-me a coxa direita.

Há quem as prefira com um efeito de serrilha no contra gume, ideal para cortar ligamentos, músculos, ramificações nervosas, tendões, óptimas para desmembrar animais, para os desmanchar, porém éramos soldados, não magarefes, matar o inimigo que nos combate sim mas nunca desmembrámos nenhum, não éramos bárbaros, éramos sobreviventes, quem vai à guerra dá e leva lembras-te ? E se não dás levas, um tiro, uma facada, uma catanada, daí a faca sempre afiada e esquece a serrilha, a serrilha sim é dispensável, mas não descures o ondulado do gume na lâmina, é prático, ajuda-te a cortar sem te obrigar ao moroso e cansativo vai vem do serrar, para a frente, para trás. Numa luta quem se pode dar a esse luxo ? Quem está para perder tempo com isso ? Espetas no ventre do magano a faca que terás bem firme e segura na mão, forças a lâmina para cima que ela de per si e ajudada por esse leve ondulado correrá célere acompanhando a mão, o gesto e o porco ficará aberto num segundo, arrumado, não mexe mais, em segundos estará acabado, esvaído, chafurdando numa poça do próprio sangue

Se não quiseres ir tão longe ou ser tão incisivo, tão letal, podes simplesmente correr a curva do gume na barriga do porco. Se fores Dextro bastará um golpe horizontal da esquerda para a direita e tens o tipo aflito, agarrado as tripas, de qualquer modo estará no fim, pensando somente em si mesmo e encostado às boxes, implorando, chorando, por vezes chamando pela mãe e implorando perdão.
Atenção, nunca procures dar azo ao movimento contrário, isto é abrir de cima para baixo, a lâmina ficará encalhada, presa, retida no externo e será travada pelas costelas e tu exposto, desarmado. O Movimento deverá ocorrer sempre de baixo para cima, desde os tecidos moles até atingir as ditas costelas, este gesto será mais que suficiente.


Mas, toma nota, uma última lição, se procuras silenciar uma sentinela, ou acabar de vez com uma justa, e tendo tu a possibilidade de aplicar ao inimigo uma manobra de mata leão que te permita aplicar um golpe de misericórdia que cale de vez o indivíduo sem chinfrim, é enfiar-lhe a faca num rim de modo a atravessar-lhe o corpo e tocar o outro rim, ou passar-lhe pela garganta o fio da lâmina num golpe rápido apontando a carótida ou a jugular e nem piam, é remédio santo, coisa que eu não sou, inda que seja bom rapaz e um rico homem, não digo um homem rico mas um rico homem.

Isto é sapiência. Sapiência do meu mister era assim trocada divertidamente pelos segredos das peles. Na verdade de posse desta aprendizagem, em casa, calçado, casacos e sofás de cabedal andam sempre impecáveis, flexíveis e luzidios. Quanto a eles não sei até que ponto o saber de mim herdado terá sido traduzido em talento, tanto mais que regressei à metrópole antes da grande prova, da mãe de todas as batalhas africanas, a de Cuíto Cuanavale* a sul de Angola. Cinco meses de morticínio no qual pereceram segundo se calcula perto de quinhentos mil africanos. Essa grande batalha pelo poder teve lugar já depois do meu regresso, porém e como todos sabemos, “o saber não ocupa lugar” pelo que sinceramente espero que a formação por mim proporcionada lhes tenha sido de algum modo útil. Capice ?




quinta-feira, 31 de outubro de 2019

619 - ASTROS. FADO, FORTUNA, SINA, SORTE ...


  
Disse ela que me expresso bem, inclusive as emoções, tendo adiantado vagamente uma qualquer coisa sobre o PLAN ou PAN, táctica ou estratégia adoptada por alguém de família cuja prática dominará e ensinará pelo que, atordoado pela sigla e com tão franca confissão me tirei de cuidados e obriguei, preto no branco, as cores entre as quais a vida agora me encarreirou, a indagar sobre o significado dessa aberração que afinal o não era, sendo simplesmente a capacidade de melhor ou pior me exprimir, voluntária ou involuntariamente suponho eu, na linguagem das emoções, algo assim a modos de linguagem gestual mais dissimulada, mais natural, mais própria ou não, dependendo a titulo de exemplo da capacidade conteres ou não conteres o pranto, de suster ou não suster uma lágrima, pelo que deduzo com o pensamento induzido por estas premissas ser a minha neta, na inocência dos seus treze aninhos, mestra nestas andanças ou andando perto duma carreira de cartomante, quiçá podendo vir a assegurar-lhe o futuro dando cartas ou formação naquilo que já hoje parece uma ciência empírica, a leitura das emoções, tal qual a leitura dos búzios, das borras de café e por que não das viscerais entranhas das aves, dos seixos nas praias, da disposição das nuvens ou da agitação que rodeie quaisquer formigueiros.

Por muito menos e movidos pelas melhores intenções, drones sobrevoando os gentios têm causado emoção cada vez mais deslavada suprimindo cirúrgica eficaz e friamente quando não erradamente, as gentes escolhidas, criando revolta nuns, sincera emoção noutros e a apoteose de alguns yes we can, portanto em frente que atrás vem gente just do it, ne cést pas mon petit ? E que se lixem os danos colaterais, o preço irrisório das façanhas actuais…


Portanto a questão roda ou balança em torno das emoções, sua expressão, observação e práxis ou ausência, pois estou plenamente convencido haver quem as camufle, finja, imite, daí tirando proveito, livre de impostos suponho, pois a AT não é para aqui chamada nem ao menos desejada e nem quero sequer pensar em levá-la a tributar emoções, praticamente a única coisa de valor sobre a qual a sua desmesurada ganancia não recai.

Boa gente como somos, eu pelo menos assim me considero, mui naturalmente só abarcamos as emoções nobres e veras, pelo que repito o já dito, em frente que atrás vem gente pois esta conversa está a prolongar-se em demasia e já vos deve cheirar a escatologia, não da teológica mas da outra, portanto avancemos, passemos adiante, às emoções propriamente ditas e à sua apresentação ou expressão, quer dizer apalparam-me, eu senti-me, reagi e alguém registou ou observou as emoções que soltei, que larguei, como quem num laboratório analisa ou disseca um gás largado. Será possível dissecar um gás ? Sei lá, o método certamente científico o dirá, a mim somente foi dito ser claro nas emoções que largo, sim porque outra coisa não largo e juro-vos que raramente me descuido, coisa que a escatologia cientificamente explicará senão a fisiologia. Freud e o cozinheiro responsável pela feijoada que comi ontem também terão neste particular a sua parte ou no mínimo uma palavra a dizer.


Mas não banalizemos a questão, o mesmo é dizer não banalizemos as emoções por muito emocionante que seja o resultado de uma feijoada, pois não é isso que buscamos e quem busca procura, neste caso a verdade, o reflexo de uma mágoa, o rasto de uma lágrima escorrendo rosto abaixo, um leve ruborizar de pudor, um homem não chora, quando muito desculpa-se perante a esposa de que estará suando, isto supondo que mijou na cama.

O caso é sério, deixemo-nos de brincadeiras porque está em causa a solidão para que fui embora antecipada e avisadamente atirado e por arrastamento a inesperada perda do sentido da vida em que em vi embrulhado, enleado, possuído, e me decepou parte da identidade, parte do ser. Sendo o homem por natureza um animal social, e eu não sou menos animal que quaisquer outros, irreflectida, ingénua e inocentemente acusei esse estado de alma, deixei transparecer essa aura negra que me cobriu como nefasto manto e, inda que não tivesse envergado o luto preto da praxe acusei-me emocionalmente, era quase impossível tal não ter acontecido tão magoado me encontrava, encontro e, sendo extrovertido, franco, transparente, aberto e directo, jamais dissimularia o meu modo de ser ou razão de estar.

Tão visível a coisa se mostrou que um expert das emoções logo a captou no seu radar, tendo ditado do alto da sua sapiência encontrar-se perante uma personalidade, a minha, rica de linguagem emocional e soberbamente capaz de a exprimir. Imagino que deveria ter seguido uma carreira teatral ou política, mas segundo Heidegger, Stranger e Junger eu nem me vi perante qualquer dilema identitário, nunca duvidei da fé em mim mesmo, nunca tive dúvidas de quem era e sou, nunca me traí, nunca manifestei angustiantes problemas existenciais, limitei-me tão só e sempre a ser eu, simplesmente.

Aceitei o meu destino na ordem peculiar deste universo, ocupo o meu lugar no cosmos, aceito esse fado, fortuna, sina, sorte, o meu mantra e nunca me senti apesar de tudo por aquilo que passei habitando uma comunidade vazia, sem nada, desprovida de sentido como diria Esposito. E, como atrás foi dito e para rimar, apesar dessa mágoa jamais sofri de platitude, nem sequer me vi como um solitário partilhando a existência com milhares de outros solitários portadores de um sentido de incompletude ou de ausência que vez alguma senti vívido em mim.


Sempre considerei as emoções o sangue da vida, o espírito do karma, e sempre busquei doseá-las. Ter agora sofrido uma overdose de sentido negativo foi excepção que a minha linguagem emocional logo acusou, foi mágoa que magoou, tristeza avassaladora E não mais debandou, aliás cultivo-a como catarse e simultaneamente como punição pelo mais que poderia ter feito, quando podia, e não fiz por comodismo ou alheamento, pois imaginava a felicidade vivida uma certeza sem fim nunca imaginando neste universo por mim habitado outra sina cruzando-se com as minhas certezas, outra intersecção pudendo cortar na diagonal e profundamente a órbita por mim julgada eternamente traçada e cuja trajectória repentinamente alterada, geradora desta inconcebível instabilidade no meu campo magnético provocasse o caos entre as forças gravíticas sustentando o meu viver, tudo desordenando e descoordenando, descontrolando-o como se eu tivesse sido brutalmente atirado fora do sistema solar e vogasse agora com rumo incerto no mar do Cinturão de Edgeworth-Kuiper, desconhecendo de todo quando elíptica tão larga me trará de novo à Terra, a esta Terra de emoções e sentidos, historicamente patológica, doente, desestruturada, disfuncional, dissoluta e onde não somente eu mas cada um de nós terá cada vez mais dificuldade em encontrar o seu lugar e, sendo essa impossibilidade o actual fenómeno de massas ou caldo de cultura em que nos movemos (movemos? regredimos?), triste será o destino que nos espera, um abismo.

Dores, mágoas, sentimentos, emoções, tudo quanto faz de nós humanos, de mim humano, a minha nova identidade, o meu novo ser, a minha nova existência, a minha vida, agora em busca dum salutar retorno a uma práxis de felicidade que já foi minha, a minha onda, a minha praia, tal qual as gentes serão obrigadas a encontrar ou gizar uma nova eternidade, mais conforme com o passado que alguém porventura nos tenha roubado. Confiemos, esperançados que o universo não se destrambelhe…


segunda-feira, 21 de outubro de 2019

618 - O DÉCIMO PUNHAL, by Maria Luísa Baião *



Fui ao cinema ver fitas. Vi jovens muito (a)normais, algumas meninas bem bonitas e um lançador de punhais. Fanática de cinema, logo ali lembrei com pena tempos não longe demais... Outras eras... Em que pessoas, não feras, nos abriam horizontes. Foi assim que lancei pontes e me levei a lembrar, roubando ao passado distante imagens lindas de encantar e que revivi num instante.
Vi uma fita dezasseis em que gente, que não reis, consigo se confrontou. E c'os medos amealhados  se viram então contristados, enredados em enleios, confundidos, aturdidos cos possíveis caminhos a que levam os anseios. É que entre sonhos e desejos, vai um imaginário de ensejos a que muitas não resistem, outros apesar disso persistem e poucas há que desistem.
E c’a memória girando ao cinema fui voltando até à fita trinta e cinco. Não foram precisos tantos, dez, apenas dez punhais puseram pontos finais num império de desvalidos que, antes de perder os sentidos se afundaram, imortais, no mistério desses punhais de um velho baú saídos.
Uma vez subido à cabeça o sentimento vazio do alcance do poder, não se portaram diferente do que fazem muitos eleitos quando pensam que são gente. Quais D. Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança é vê-los, prometer hoje abastança, no dia seguinte temperança. É ouvi-los gritar bem alto à moirama, sabendo nós de antemão que se esconderão na cama quando tudo der para o torto.
 Entre um destes vivaços e um morto bem parecido, prefiro na certa o falecido, não chateia, não refila, não contesta nem protesta. É de longe mais simpático e capaz até, com ar enfático de me gabar atitudes. É que estar morto e bem morto pode ter muitas virtudes, entre as quais, não sendo demais, friso tempestades tais, potestades celestiais que na certa não provoca nem levanta, mesmo quando se agiganta.
Mas voltando às chinesices daqueles dias felizes que a fita atirou p´ro ar, é de bom tom recordar os desígnios do amar que nos podem mesmo levar ao perder, à perdição. Vi isto com os meus olhos, num cantinho bem espremido ali à Diogo Cão. E entre gemidos e ais, os amores desafiantes da cegueira dos amantes os lançaram por disputa de quem contra si mesmo luta na vertigem do abismo...
O filme acaba como um sismo,  em que o décimo punhal, põe fim ao amor fatal, à traição e à razão de quem ama amando mal. O desafio, o abismo e a vertigem de quem julga ser seu amor caso único, um primor, alvo de dádiva virgem.
É um punhal na garganta (não nas costas) que coloca fim ao caso mas não mata ali a esperança. Não sendo até por acaso haver gente bem feliz por tal não lhe acontecer. Não que o não possam merecer, pois arriscam por um triz, devido à diferença notória entre o dizer e o fazer, que não estejam um dia cobertos do branco pó, cor do giz, com que tapamos a escória.
O filme termina terminado. Arrumado no baú já mencionado, pronto para outra partida, pronto para outra viagem. De viagem andou o autor, premiado nessa Europa, pois por cá como é já hábito, o mais a que pode aspirar é levar c’a bota da tropa.
Vítor Moreira se chama, o autor da fita que inflama sendo eborense de gema. Talvez haja já quem o tema por ser revelação latente. Que ele existe o sabe mais gente em Veneza e de certeza noutras cidades mais belas que, às cautelas o premeiam, não vá o home envaidar-se ou subir-lhe o sangue à cabeça.
Por cá vai fazendo uns biscates, pois as verbas não dão para dislates, como aquela fita com uis e sem imagens reais que custou a quem dá ais, os impostos anuais de quem leva a vida dreta sem ter que fugir aos chuis.
                     
* by Maria Luísa Baião, escrito ‎na sexta-feira gelada e fria de ‎14‎ de ‎Março‎ de ‎2003. Muito provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.






quinta-feira, 3 de outubro de 2019

617- A RONDA ESTÁ PRISIONEIRA by Luísa Baião*



Em boa hora me chegou às mãos um convite, que agradeço, para assistir a um dos dois concertos que a “Ronda dos Quatro Caminhos” deu no Garcia de Resende. Com pergaminhos firmados, e uma história de dezoito anos de carreira, a “Ronda” não deve nada a ninguém. Maturidade é coisa que lhe não falta e a sonoridade ganhou efectivamente a frescura, irreverência e simplicidade que só os mestres sabem harmoniosamente conjugar.

Como eles comungo da opinião que cultura popular e tradicionalismo são características identitárias do nosso povo, em especial e se, como o fazem, essa cultura é fruto de árduo trabalho de pesquisa e investigação, que muito devemos a Artur Santos, Giacometti e Lopes-Graça, o que aliás modestamente admitem no catálogo dos espectáculos. A modéstia só lhes fica bem, sobretudo se alicerça trabalhos de qualidade que nada perdem, pelo contrário só têm a ganhar com o valor acrescentado de reputações sólida e arduamente firmadas.

Ao contrário de muita música “Pimba”, de que no final deram um exemplo tão irónico quanto mordaz, a cultura popular nada deve ao populismo consumista, tão vazio de tradição quanto de significado e que infelizmente tanta aceitação tem entre grande parte da população portuguesa, de memória por preencher e sentido por perceber.

A inclusão no espectáculo da colaboração dos “Cantares de Évora”, “Coral de Évora” e do coro infantil e juvenil do “ Eborae Música”, convidados, deu não só aos temas como a esses grupos uma riqueza inesperada, como que um colorido inabitual que em actuações isoladas desses mesmos agrupamentos não é normalmente conseguida.

Se apreensões manifestou a “Ronda” antes do espectáculo, e tal é visível no texto do catálogo, sosseguem pois, já que talento lhes sobrou na interpretação das intimidades com que nos brindaram. Por mim só fico à espera do reencontro, ou para mitigar saudades, do CD a editar. Até lá festa, pão e vinho, que se não hão-de acabar, como não se acabarão as noites quentes e namoradeiras deste nosso Alentejo.

Está prisioneira a “Ronda”, prisioneira de um compromisso que assumiu para com o nosso povo e que hoje faz parte da sua ementa musical. A culpa será tanto dela quanto nossa, dela porque prometeu, não desiludiu nem deixou de cumprir, nossa porque consideraríamos uma afronta aos nossos hábitos educados e às nossas expectativas, não gozar do som e da palavra a que nos habituou e cujo futuro deixa antever potencialidades que de modo nenhum desejamos traídas.

Um só caminho portanto lhes fica aberto, o de continuarem a pensar que a cultura popular e a música tradicional são parte de nós e não no-la podem subtrair sem azo a crime de lesa património. A nós cabe cumprir solidariamente no respeito por um trabalho que nos é dedicado e que preserva tradições dessa língua mãe que muitos ingratos filhos por vezes olvidam.

Lamenta-se a “Ronda” que as duas últimas gerações votaram ao ostracismo a nossa cultura popular e as nossas tradições, não lamentem, é passageiro. Preocupadas que estão na voracidade do consumismo e facilitismo a que têm sido acostumadas, não têm tempo para parar e pensar, preferem a música vazia de conteúdos, como preferem hambúrgueres  dispensando mastigação enquanto sonham estar vivendo a “americam life”.

Tanta cultura alheia ingerindo, sem digerir, nem tempo têm para pensar, nem querem perdê-lo fazendo-o. Aguardemos que cresçam, que amadureçam, e quando o emprego faltar, a renda da casa assustar e o carro não puderem comprar, tomarão a pose do “Pensador”, de Rodim, e interrogar-se-ão porque mudou o mundo, antes de reconhecerem serem eles que estão a mudar.

Promova a “Ronda” os seus espectáculos nos grandes espaços que as cervejeiras dominam, e que hordas de não pensantes preenchem, extasiados com o trip fenomenal do extasy, dê-lhes ritmo e toneladas de decibéis, e verá se a juventude aparece ou não. Claro que os espectáculos perderão o carácter intimista e cúmplice com que agora os desfrutamos, e não creio que seja isso que a “Ronda” procura, nem ela nem nós, seus espectadores fiéis e comparsas de uma atitude que durante os seus dezoito anos de vida não apagou a chama de que se alimenta.

Nota alta para um momento do espectáculo em que foi declamado um poema para intelectuais, sátira contundente a alguma da nossa realidade. Parabéns nos Vossos dezoito anos e obrigado.

           


*   by Maria Luísa Baião, escrito no dia 25 / Novembro / 2000 e publicado depois no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.