terça-feira, 15 de junho de 2021

712 - SEMPRE ACREDITEI EM MILAGRES, E TU ?

 


Descreviam um arco no céu os rastos dos fogachos na noite escura, vindos de leste, do norte e de oeste, numa sinfonia sibilante e rouca, premeditada e imprevista, que atormentava uns e aterrorizava outros.

 De nada serviria abrigares-te atrás dos muros do aquartelamento, da base, ou nas trincheiras pouco fundas do acampamento, se uma caísse lá dentro PUM !

Acabar-se-ia a festa e o tormento …

Ripostar enquanto elas caíam era perigoso e desaconselhável, ali e no momento era aguentar, e rezar claro, rezar acalma, a alma, não a tormenta.

- Era rezar pá !

- Olha, e aguenta !

Da primeira vez ainda me quedei de boca aberta ante o arco parabólico da besta e dos fogachos alindando a noite quando caíam no chão, se desfaziam em pedaços, em cachos luminosos, lindos, coloridos e mortais.

Depois do espanto, da surpresa, da admiração o medo, um medo que me prendia ao chão como nos sonhos de infância, em que um touro bravo investia contra mim e eu, imóvel, estático, siderado, sem conseguir mexer-me, sem conseguir fugir até que, no preciso momento da marrada acordava em sobressalto, suado, assustado, pasmado, aliviado, surpreendido.

 Assim foi ali nos primeiros segundos, depois um salto, mais um voo que um salto para a vala mais próxima, a fundura consolando-me a psico, diluindo em mim o medo dessa noite feita inferno e, nessa escura, trágica, simultânea e surpreendente luminosidade repentinamente uns braços procurando os meus braços, o medo dispersando-se no abandonado enleio desses braços, no conforto de um corpo quente colando-se ao meu, vibrando comigo a cada rebentamento, comprimindo-se contra mim a cada explosão e então, como um relâmpago, uma explosão de euforia, medo, temor e pudor virando amor, alegria e,

na noite escura uns dentes brancos, um sorriso no caos, um salva-vidas na tempestade,

- Fiora ?

- Fernandes ?

 Estreitámos o abraço que nos uniu e colou naquela valeta baixa quando sentimos difundindo-se p’los nossos braços a segurança do Paraíso e, aos poucos tomar-nos a calma de um céu imaginado e nós, debaixo dele, debaixo desse céu abençoado, fazendo juras que sabíamos nunca cumprir mas que nos abriram o caminho, nos encorajaram, a darmos o passo.

 Durante meses e sempre que caía sobre o acampamento uma noite escura ou era esperado um ataque, lá estávamos nós, preparados, mão no salva-vidas, procurando uma porta para o paraíso, abençoados por um céu que nos cobriria de estrelas e encanto, num qualquer canto de uma qualquer vala, orando, exorcizando o medo e alimentando a esperança numa bonança de horas que mais ninguém via.

 Sempre acreditei em milagres.




Fiora, ke nunca largava a AK 47


ÉVORA, OS EUROS REDONDOS E O TURISMO ...



711 - ÉVORA, OS EUROS REDONDOS E O TURISMO


E pronto ! Já me lembro ! Às vezes basta um pequeno empurrão para que a memória retome o seu carreiro, os neurónios e as conexões têm destas coisas, em redor do poço o meu pai descascava uma tangerina, do meu irmão mais novo népia, não me recordo, mas o mais velho segurava um envelope grande e volumoso que a embaixada da Rodésia, actual Zimbaué, lhe enviara com vasta, completa e belíssima informação sobre o Parque Nacional de Matobo*, que ele dissera querer visitar, ludibriando a embaixada, essa e muitas outras, que caindo no logro o enchiam, para deleite do meu pai, de belas fotos de países e lugares onde a imaginação os levava. Não havia net é certo, mas havia muita fantasia e originalidade nos modos de contornar os limites que a pobreza material ditava.

 

Pois foi precisamente uma fotografia inserida numa dessas revistas que me chamou a atenção, um grupo de banhistas, qual delas a mais bronzeada, algumas negras esculturais, não sei se zulus, fulas  ou bantas, e a legenda respectiva, a que na altura nem dei a devida importância mas que mais tarde, fazendo contas de cabeça e somando dois mais dois.

 

A legenda da foto dizia nem mais nem menos que isto;

 

“Mulher boa e melancia grande ninguém come sozinho” 

 

Mas desvio-me do essencial, a questão do turismo em Évora, as suas vantagens e desvantagens, a ilusão criada, e a necessidade de se pensar em formas de tornar o nosso turismo efectivamente nosso, isto é, dele não retirarmos somente a fama mas também o proveito.

 

Falo de surtos turísticos que paradisíacas praias, lugares, cidades e países experimentam, e de como esse boom em alguns casos ao invés de os enriquecer os arruinou, de tudo me lembro como se fosse hoje, até das bundinhas. Hoje custa-me a crer como foi possível uma dessas revistas apresentar tal artigo e tais fotos, tanta a censura actual, como certamente ninguém desconhecerá.

 

Mas apresentou, e eu jamais o esqueci, nem esqueci o facto de que nem tudo que parece é. Grosso modo o vanguardista artigo mostrava e demonstrava como o dinheiro só aparentemente existe e enriquece os países e cidades onde o turismo agita a economia, tal como acontece com Évora.

 

Quanto à riqueza supostamente criada pelo tal desenvolvimento turístico não só nem aparecia como desaparecia tal como um boomerang volta à mão que o lançou ou uma moeda que caia no chão rola e rebola descrevendo um círculo até tombar no sítio onde começara a rolar. O mecanismo, ou o fenómeno como era descrito na revista funcionava assim;

 

Milhares, ou centenas de milhares de turistas adquiriam ou pagavam na origem os respectivos pacotes de férias ou de fim-de-semana.

 

Nas estâncias, cidades de férias, como Évora, deixam no máximo uns trocos numas bicas, nuns gelados, ou numas coca-colas, na maioria das vezes nem na diversão nocturna apostarão nem nos aperitivos ou cocktails. Gastarão na sua curta estada só e provavelmente algum dinheiro de bolso, em postais ilustrados, numas pilhas ou cartões de memória para máquinas fotográficas, nuns maços de cigarrets, num isqueiro com uma bela imagem do Templo de Diana, numa qualquer recordação não muito cara do handcraft local para levar à mamã à amiga ou ao amigo, umas chinelas maded handcork, uma miniatura da fonte das Portas de Moura, um chapeuzinho preto com uma foice e um ramo de espigas, um grupinho em barro representando os cantadores de cante alentejano, talvez um capote no inverno e pronto, estão o fim-de-semana ou as férias feitas.

 

Claro que os hotéis que os albergam sempre têm despesas, com luz, com água, com o aprovisionamento da cozinha, do bar, mas raras unidades hoteleiras pertencem a gentes da terra, normalmente são pertença de cadeias internacionais cujo dono se desconhece e estará algures na Arábia, nos USA, na Rússia ou na África do Sul ou noutro sítio qualquer. Agora digam-me lá, será que todos os hotéis instalados entre nós têm cá o seu domicilio fiscal ? Ou terão a fiscalidade radicada na GB, França, Luxemburgo, ou Holanda ?

 

 Qual será então o nosso beneficio para além dos parcos e indiferenciados postos de trabalho como barmans, gente para a copa e cozinha, para os quartos, limpeza, recepção, a fim de ocuparem os lugares de que vos falei atrás ?

 

Mas p’lo contrário seremos nós a custear as despesas com arranjos nos gastos das calçadas e outras infra-estruturas cuja manutenção, reparação ou reposição nos caberá a nós pagar, como caberá pagar e abrir estradas e ruas e ruelas e acessos e viadutos e colmatar os estragos que esses turistas façam na cidade. Para já em Lisboa estão a facturar os italianos que se fartaram de para lá vender tuck-tucks …

 

Ora ficando o dinheiro dos pacotes logo na origem, ou se pago por cartão de crédito aterra logo numa conta em Lisboa, Porto, Luxemburgo, Bruxelas ou Amesterdão, só por mero acaso a parte de leão ficará entre nós. Isto quando não sucede o hotel dessa cadeia, se apesar de tudo tiver lucros, ser chamado a contribuir e suportar os custos de investimento da casa mãe dessa cadeia hoteleira no seu país de origem, forma sagaz e encapotada de para lá transferir os lucros, apresentando posteriormente prejuízos e muito licitamente escapando-se a ser taxado local e fiscalmente, e quiçá provavelmente candidatar-se a receber subsídios aqui, nossos. 

 

Os Euros ou poucos euros do pé-de-meia, redondos que são acabam rebolando sempre no sentido da partida, da origem, da casa mãe, poucos ou nenhuns atingem o ponto de chegada, no caso nós, Évora, pois é raro que esses hotéis reinvistam nos locais que exploram até à medula e a que se agarram como lapas.

 

Por cá o dinheirinho da luz vai para os chinocas, o da água para os amigos do Mário Lino que deu a volta ao Zé do Cano, ou deu a volta ou deu comissões, isto sou eu feito má-língua, claro que não passa de uma aleivosia minha, de uma suposição de mau gosto, pois toda a gente sabe não haver o mínimo de provas em que se fundamente esta afirmação. No fundo a questão do boom turístico em Évora e no Alentejo é saber-se quem ganha com ele.

 

Por enquanto sopeiras, recepcionistas, ajudantes de copa e cozinha, empregados de mesa, seguranças e barmans têm o futuro assegurado, pedreiros, serventes, canalizadores e electricistas também têm feito uns biscates, porém são essas as profissões que por agora o radioso futuro do turismo nos oferece, mais que isso o tempo o dirá…

 

Festeje-se então, pelo menos enquanto houver quem saiba como usufruir dos fundos europeus, não podemos criticar quem tem olho, afinal os da terra também podem concorrer a eles e se o não fazem será porque não querem, ainda há pouco uma amiga me perguntava o que seria a democracia num mundo dominado por imbecis… 


Um mero problema de consciências ou de olhos que se não abrem  ?  E surge daí a necessidade de se pensar em formas de tornar o nosso turismo efectivamente nosso, isto é, dele não retirarmos somente a fama mas também o proveito.


E depois interrogam-se por não haver dinheiro suficiente para tapar os muitos buracos que temos um pouco por todo o lado ? 

 Pensem nisso. 


 * http://www.dobrarfronteiras.com/colinas-matobo/

 

Uma curiosidade; http://www.dn.pt/dinheiro/interior/verao-de-recordes-no-turismo-nao-criou-emprego-4953968.html

Também pode ler acerca deste tema: 

https://mentcapto.blogspot.com/2016/03/328-turismo-alentejo-dolares-redondos.html

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quarta-feira, 9 de junho de 2021

710 - SAIR PELA PORTA GRANDE ..........

 



 Minhas caras amigas, meus caros amigos, compatriotas, conterrâneos, eborenses.

 Aproximo-me hoje de vós para vos confessar quanto amo a nossa Pólis, e vos garantir quanto me enobrece servi-la na condição mais nobre, a de apaixonado p’la civitas.

 A condição de candidato envolve e exige nobreza de carácter, foi essa condição que me levou hoje a sentar-me numa profunda reflexão, caneta na mão para, preto no branco, vos garantir que Évora para mim estará sempre primeiro, e a confessar-vos que a nossa Pólis é para mim como para todos vós uma Mui Nobre e Leal Cidade, devendo merecer-nos todo o respeito e amor.

 Nobreza de carácter, civismo, urbanidade, três adjectivos que me habitam e estruturam o carácter, que são forma e conteúdo da complexa personalidade que me anima, elementos da alma inseparáveis da minha práxis e, portanto incontestáveis, insubstituíveis e inegociáveis. Não enfermo de qualquer tipo de apego ao poder.

 Sempre fui mais exigente e intransigente comigo que com os outros e o artificialismo, tanto quanto o amadorismo, não me seduzem. Gosto de manter e apresentar tanta constância quanta possível, tanta verticalidade quanta a elevada formação que me caracteriza e enforma.

 Não me peçam nem exijam flexibilidade nestes items, nem militância solicitando adaptabilidade ou contorcionismo nestes tempos em que tudo é ou parece descartável. Estes tempos não são o meu tempo, esta não é a minha praia, nem sequer a minha onda. Tenho um sonho, mas não matar e esfolar, como digo no meu curriculum, sou um reformista, não um revolucionário.

 Alimentar questiúnculas, animar intrigas ou eleger subjectividades como o deus dos nossos dias nunca fizeram e jamais farão parte de mim, são atributos não valores, eu primo pela coragem, pela verdade, pela justiça, pela compaixão, pela dignidade, pela humildade. Creio firmemente serem estas as qualidades que devem ser ou devem definir carácter e liderança.

 Gosto de manter a elevação de carácter habitual e a que vos  habituei, p’lo que jamais transigirei com os espíritos mesquinhos nem com os pequenos gnomos que habitam a floresta em que se tornou o presente. Foram esses nobres atributos que encontrei naqueles que, embora por pouco tempo constituíram a minha lista, e a quem devo o mais profundo respeito, admiração pela coragem, e uma enorme gratidão.  

 É insuperável e inultrapassável o confronto surgido entre mim e as estruturas locais do partido a que ainda pertenço. Quer a cidade de Évora quer os eborenses merecem todo o meu respeito e, como tal retirei a minha candidatura uma vez que não existem ou deixaram de existir entre nós as condições e confiança mínimas e necessárias para que a mesma tivesse continuidade.

 Lamento por Évora e p'los eborenses. A inexperiência política faz-se pagar bem cara, lamento que a inexperiência de alguns esteja a dar de bandeja e bem antes de tempo a vitória à oposição, quando essa guerra nem tinha ainda sequer começado.

 Os que me temiam ou não me aceitavam podem agora dormir descansados, aos que se encolheram com medo de me apoiar recomendo que comprem um cão, aos que me encorajaram reitero a minha gratidão, os que me encorajaram e apoiaram mas tiveram medo de me dar um apoio aberto poderão agora dormir enrolados nas suas contradições mas não de consciência tranquila, lembremos neste caso Martin Luther King, “O que mais me preocupa não é tanto o grito dos maus, mas o amedrontado e envergonhado silêncio dos bons”… 

Ah ! E os que querem mudar Évora sem que contudo nada mude poderão continuar confortavelmente sentados mas recordem Sá Carneiro; “a política sem risco é uma chatice, mas sem ética é uma vergonha” … Foi isto que com ele aprendi e dele recordo, como atrás vos recordei de Martin Luther King, as sábias palavras do pastor Niemöller.

 Sou de antes quebrar que torcer e sempre acreditei ser Deus e o destino a moldar as nossas vidas. Como sempre continuo de cabeça erguida, e lembremo-nos que a luta continua, que Évora merece o melhor, sendo por isso que devemos lutar, mas lutar todos os dias, a qualquer hora e em qualquer lugar.

 Não tem grandeza quem dobra o joelho ante os pequenos. Nasci destinado a grandes obras, não para os pequenos dichotes, para os boatos, para a vacuidade, para a infantilidade ou impunidade que tanta gente nos nossos dias enverga.

 Considero-me um político, um homem da pólis, e nunca virarei costas a Évora nem aos eborenses. Um percalço não é uma morte, é somente um contratempo. Há que lutar por um mundo melhor e é na nossa terra que o devemos fazer, é por ela que devemos começar.

 Não vos direi até sempre, direi até qualquer dia, contem comigo, como eu conto com aqueles com quem devo contar e já contei, com aqueles que eu sei, aqueles com quem quero contar, e com todos aqueles que estiverem disponíveis para lutar.


 Com consideração,

Humberto Ventura Palma Baião



segunda-feira, 7 de junho de 2021

709 - UTOPIA MALSÃ, ROTINA, ROTINAS FATAIS



Repartimos entre nós as mais pequenas tarefas na vã tentativa de quebrar a monotonia, o agastamento e a saturação mútua que insidiosamente se instalara e recordámos novos ou velhos episódios que tenham tido para nós algum significado por mais pequenos que tenham sido. Foi quando lhe contei que tempos recuados ela se cruzara comigo e não me vira. Passara rápida, como sempre fora, rápida, impetuosa, dinâmica, sem tempo sequer para si mesma, sem tempo para os outros... Não a teria visto não tivesse sido o brilho radiante dos seus olhos, grandes, pestanudos, belos.

 

Lembras-te ? A séculos de distância dificilmente te lembrarás tanto mais que nem me viste. Mas dos olhos, lembras-te, quando brincava com a beleza deles, a que eu meigamente chamava as minhas contas de vidro não lembras ? Se calhar mais ninguém alguma vez te lembrou esses olhos como lindas contas de vidro, com as quais eu brincava enquanto tu nada, tu alheia, como se essa beleza te fosse um direito adquirido, tornado hábito, vulgaridade. Recordo-te indiferente quando chamada à baila, eles brilhando, e tu nada, numa exuberância desinteressada que me exasperava, a mim, então um homem imaturo, inseguro, tímido, diria que ingénuo ainda, inocente mesmo.

  


 

A máquina de lavar interrompeu a centrifugação, mas não parou, ficou rodando devagar, silenciosamente. Enquanto eu divago ela prepara dois cafés na Delta Q, olho-a sem a ver mas o seu movimento hipnotiza-me e recomeço divagando. Queria beber com ela cada café da minha vida, e tantos dias p’ra viver ainda, tantos cafés, tanta felicidade, e também esta bica ficou fria, vai sendo costume já, estou habituado, é bom. Nunca olhara uma chávena como agora, ou a lembrara numa bica e agora… Nem esqueço nenhuma, mesmo que fria, justamente por me ver, e a ver no fundo de cada taça de café.

  

Sítio lindo visto desta janela. Igualmente linda e aprazível o desaguar do rio neste mar-lago agora florido e tépido, lindo o seu sorriso, beijos e carícias. Desejos que eram meus, dela, então o corpo jovem de ninfa, o olor a lismos, os cabelos nas minhas mãos, ela nas minhas mãos, e eu, vendo-me nas profundezas do lago onde me levara o céu com que nos cobria o seu universo, embevecido com tanta ternura, com os seios cheios, lindos, excitantes, ela tão doce, tão querida, tão meiga, passei a temer desde há séculos a morte e a velhice. Lendas dizem que a cada um desses pensamentos corresponderá um dia a menos, não aceitarei por nada deste mundo perder aquela que de entre tantas logrou encantar-me. Temo verdadeiramente pensar na morte, sobretudo agora que se está tornando banal e, a ser verdade que com cada pensamento que tiver será um dia a menos até morrer, estará sendo quebrada a magia milenar, não saber quando ela chega é uma dádiva dos céus, chegará por certo, contentemo-nos com isso e não pensemos mais na coisa.

  


 

Por nada deste mundo quero desiludir-me, eu que a todo o momento e por todos os motivos me esforço por me e te encantar, por isso tantas vezes me apanhas hesitante e sempre temendo assanhar-te no receio de um dos teus repentes, no receio que, numa das tuas tão frequentes quanto habituais birras e explosões de humor e orgulho, momentâneas mas consequentes, te vás, airosa, atirando a asa da mala sobre o caindo sobre os ombros, a mão afastando o cabelo da testa, dos olhos, tu lançando-me um olhar vago de indolência fingida mas alheio a tudo, a mim, a ti, ao doloroso desfecho encenado, para meia hora depois estares telefonando;

  

- Não sei o que me passou pela cabeça, passei-me, devia estar doida de todo, perdoa-me querido, quando podemos ver-nos de novo ?

  

Eu aparentando uma calma que não tenho, eu numa atitude meiga, terna, paternal quase, perdoando. Perdoando-a mas na realidade com uma vontade vera de a esganar, frustrado, sabendo quão difícil era estarmos juntos, vermo-nos. Agora inverteram-se os termos, fechados em casa por um inverno infernal que sobretudo e devido à idade nos molesta tudo desejo ver pelas costas. A brusca partida dela quebrara o encanto, e quebrado este que restaria ? Fragmentos. Fragmentos de uma imagem que reconstruía pedaço a pedaço, pacientemente e agora via como reflexos dispersos dum espelho partido cuja soma jamais fará um todo. Afinal não mais que um conjunto de discrepâncias forjadas numa dicotomia unívoca, resultante de uma visão diacrónica artificialmente criada cujo entendimento demorei a traduzir por o amor me ter cegado durante décadas.

  


 

Físicos e químicos desvendaram os segredos do infinitamente pequeno e do desmesuradamente incomensurável. Métodos, processos, análises, deduções, induções, experimentações e o socorro de modernos scanners lograram ver o que era invisível aos seus olhos. Sou mais modesto, vejo o que me é dado ver, por vezes tarde e a más horas mas consigo ver. Outros processos me permitem contemplar o que aparentemente não será visível. Demoro é certo a perceber o que me é exposto, a juntar peça a peça os reflexos desse espelho quebrado. São jogo de imagens múltiplas num caleidoscópio, mas acabo conseguindo também eu e sem outro auxílio que a reflexão, ver o invisível.

 

 A personalidade dela quebrava-me a paciência, mas pelos olhos, aqueles dois lagos onde me perdia e afogava, perdoava-lhe tudo na esperança de jamais se acabar o jogo em que esses olhos, quais contas de vidro fulgurantes, me tornavam irreal o tempo, indiferente a rua, reduzindo o meu mundo à contemplação deles, olhos, vogando no mar dos seus aveludados cabelos e eu marinheiro encantado pelo seu cântico. Mas não agora que por vezes me exaspera e a sua presença, me satura, tanto quanto a minha a aborrece.

 

 Há momentos de luz no meu cérebro e da luz o verbo que, alicerçado em pequenos mas reverberantes clarões, pormenores aparentemente insignificantes que me permitem todavia uma análise sincrónica das imagens reveladas por esses esparsos estilhaços dum espelho quebrado os quais, qual prisma poliédrico, em minha mente tomavam interrogativa forma, agora real, cerzida a partir dessas imagens dispersas e aleatoriamente captadas. Pudera eu então dizer que te vi, que te vi finalmente na tua verdade, na tua unicidade, na tua nudez e, lamento dizê-lo, não gostei do que me foi dado ver.

 


Tu aprimoraste-te, demoraste-te e esforçaste-te arranjando numa jarra os pés de flores que no campo arrebanháramos, fazias por te ocupares, meteste na jarra tiraste-as da jarra, meteste nela pedrinhas, tiraste pedrinhas e eu, que bebo bica atrás de bica e já nem perco tempo a desligar a maquineta da Delta Q, observo-te no teu rame-rame gastador de tempo porque enquanto te ocupas não pensas e o pior é pensar, dizia um poeta qualquer do qual não sou capaz de me lembrar agora.

 

 Tanto esforço despendido compondo um jogo floral evita que nos confrontemos devido a qualquer coisa banal, o tempo e as rotinas põem-nos à prova, confrontam-nos ao instilarem-se no ambiente fechado da casa, agora uma prisão onde vivemos encalhando um no outro, ainda que o espaço seja largo o bastante para durante tanto tempo nunca dele termos reclamado.

  


Esse arranjo de estevas, dessas lindas flores campestres que o tempo cedo se encarregou de mostrar já não viçoso, veio demonstrar que também elas não toleram o passar do tempo por mais fofinho que seja, haverá portanto mais coisas para além do bem-estar o qual, se imposto torna-se insuportável e quer nós quer flores e floristas já não parecemos tão belos, ou tão belas como à primeira vista.

 

Uma observação cuidada e concluiremos que metidos debaixo deste imponderável com que o tempo nos cobre parecemos outros, tornamo-nos outros, somos outros, e a dimensão e visão ou descoberta pelo outro das nossas mais recônditas peculiaridades desarma-nos, rebaixa-nos aos nossos próprios olhares e torna visível a mancha ou uma qualquer nódoa que ao longe mais parecesse um ornato, um ornato ou um sinal que idolatrássemos. Razão tem o povo com a história do sinalzinho que com o tempo virou horrível verruga, é o tempo que nos e se altera, acelerando contra a nossa vontade, fazendo- me recordar Einstein e a sua Teoria da Relatividade Geral em que tudo é, ou se torna relativo, circunstancial.

 

E neste cenário confinado ao Outeiro, ao Telheiro, a Monsaraz, ao grande lago e ao Monte da Pêga levamos já quarenta e nove anos, quarenta e nove anos em que brincámos, rimos, amámos, embirrámos e chorámos até ao insuportável, digo no fio do insuportável, no fio da navalha. E enquanto eu medito ela pavoneia-se num trejeito consciente e irritantemente pujante de mulher feita, no auge da maturidade e beleza e, diria eu, de uma perfeição e paciência sem iguais que simultaneamente adoro e detesto, num conflito interior a que me mostro incapaz de dar solução.

  

Eu, homem feito e de maturidade assumida, primando por toda a inconstância que a incapacidade para lidar com o imprevisto me provoca, e ela isso mesmo, o imprevisto, toda ela mau grado tanta perfeição e beleza, inconstante, um pocinho de inconsequência e ligeireza, e eu nada, incapaz de tudo, sorrindo para fora e rangendo os dentes por dentro. Contendo-me. 


Ainda recordo o flash radiante dos seus olhos sempre que eu, hesitante, me demoro na busca da resposta mais aconselhada ao momento, todavia confesso nem todos os momentos serão de confronto ou atrapalhação, tanto que, embora não sendo vulgar o plasma vagamente ligado para que o quarto não fique demasiado escuro, de vez em quando é para isso mesmo que serve, para manter uma meia-luz coada iluminando-nos enquanto na AR, um reportagem antiga mostra homens engravatados sucedendo-se discursando entre jarras e jarrões pejados de cravos vermelhos. Festejava-se Abril.

 

 O clube dos ricos, dizia ela, e eu atrapalhado com o colchete do sutiã, ainda hoje me atrapalho com esses colchetes, devia treinar, mas treinando as mãos não me tremem, e neste momento sempre, porque sôfrego do gozo depois do colchete, louco por me dar e ávido da entrega pela qual anseio, envolto em sonhos e odoríferas névoas exaladas daquela pele e olhar, desesperado pelo instante que nos junta, nos une e nos irmana na fruição desses contudo não tão raros momentos partilhados, fruídos, gozados.

 

 E por falar em Abril lembrei a data de 25 e essa noite em que, contra meu hábito, mal dormira. Noite em que pesadelos e sombras pressagiaram então o que eu não entendi nem nos dias, nem nas semanas, meses ou anos seguintes. Porém recordo ter acordado muito cedo nesse dia fantástico, não tanto devido às insónias sonhadas mas antes devido ao alarde que desde madrugada se fizera sentir na quintarola que o meu pai trazia primorosamente tratada. Como por artes mágicas tudo naquela manhã se conjugara para que jamais a esquecesse, se bem que nessa minha modesta idade não me tivesse sido permitido entender os prodígios a que assistira e impossíveis de, em minha mente, terem sido de imediato transformados em augúrios felizes de dias vindouros. Nessa manhã de sol a quinta parecera ter ficado entregue à bicharada e eu, sozinho, reinando ignorado no meio dela.

 

Galos haviam abandonado o galinheiro escavando com unhas poderosas os locais mais inconcebíveis da quinta, modelarmente arrumada e engalanada por canteiros de diversas espécies, onde o sol avivara a clorofila e onde rebentos de variadíssimas flores matizavam de cores diversas o espaço a perder de vista. Poedeiras pedreses viraram sobranceiras as costas ao cativeiro e depuseram os ovos nos lugares mais díspares que vez alguma tinham pisado, mostrando-se arrogantes, tomando então soberbas poses que a vida inteira lhes tinham sido interditas.

 


 Que me lembre nesse dia nem caseiro nem quaisquer outros dos trabalhadores da quinta apareceram e, aflitas, as vacas mugiam impacientes, amojos cheios que nem balões de festa majestosa, sem viv'alma que lhes acudisse. Cães corriam ladrando de lado para lado enlouquecidos pela festa e seria absurdo não entender os seus latidos como advertência e agoiro de milagres futuros que teriam, certamente eles e eu a felicidade de vivermos, mas que não tivemos a sorte de ver cumpridos.

 

 Tal foi a minha alegria e a de todos quantos na quinta nesse dia nela não estavam que nem dei pelo sol ter transposto o zénite e, absorto, aguardando, tendo visto passar filas e filas de gentes entusiasmadas, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem que hoje entendo como traídas no tempo, pois esse dia apenas me assustou e mostrou eventos cujo significado só entendi muitos e muitos anos mais tarde.

 

Então, como hoje, todos falaram, como hoje falam de novo, num tempo em vão, no tempo perdido, numa utopia malsã. Todos falavam mas ninguém ouvia, tal como hoje não ouvem. Cresci portanto no meio de gentes meio surdas que prolongaram no tempo, embalando-me e iludindo-me, histórias de felicidade inventada, prometida e futura, que ainda hoje estou à espera de ver e viver e, desse dia mágico, ficou-me uma esperança teimosa e um optimismo militante que, uma vida inteira vivida, finalmente lograram acomodar no sótão das ilusões em que guardei os pesadelos premonitórios, os sonhos prodigiosos e todas as recordações deslumbrantes dos indecifráveis presságios que nesse dia vivi.


Desses tempos, intocáveis, puros, impecáveis, resto eu e ela, restamos nós e este amor sem fim que durante décadas nos embalou, nos cegou, nos ludibriou não nos deixando ver o lamaçal em que a quinta e o país todo se transformaram. Mau grado isso sabemos ambos o que é o amor e a felicidade, vivemo-los enquanto à nossa volta tudo se afundava…..



quinta-feira, 3 de junho de 2021

AINDA A CULTURA, NÃO HÁ PAI PARA A RITA …

               

708  -  “AINDA A CULTURA, NÃO HÁ PAI PARA A RITA …“

 

# TEXTOS POLÍTICOS 19 #

  

Há dias numa das apresentações do meu programa trouxe à baila a UE, fiz uma abordagem ligeira, tangencial, a minha amiga Rita não gostou, e criticou-me por não ter sido mais preciso, o que até seria bom para o programa. Tudo por eu ter afirmado que;

 

 “mau grado a presença entre nós de uma universidade, o tema cultura não parece ter tido ao longo do tempo o destaque que merece. A faculdade vive demasiado fechada sobre si mesma e não promove ou não publicita devidamente eventos e temáticas que absorvam o interesse da população, facto que a seu tempo e nível deverá ser abordado entre as duas instituições CME e UE. “


 Mas a Rita tem razão, ou teve, ela é uma das pessoas com que o meu programa de candidatura é discutido, sendo ela uma das mais activas ou participantes. Teve razão, eu devia ter-me alongado sobre o tema, não deveria ter perdido a oportunidade de nele inserir quanto já tinha sido falado e abordado na nossa mesa, pelo que acabei de o fazer agora. Já está mais completa essa parte do programa relacionada com a cultura, a Rita já está mais calma, e eu de parabéns, o programa está melhor que nunca.


  Porém se fiz ainda que brevemente uma referência à fraca colaboração entre a academia e a CME, ela foi menos forjada como crítica e mais como uma oportunidade que se lhes abre com a minha candidatura. Tem esta candidatura a real e democrática vontade de estreitar laços e colaborar de modo mais activo e proveitoso para as partes e para a população eborense.


 Em boa verdade admito que algumas vezes tenho sido crítico da academia, faço-o contudo tendo sempre em mente uma crítica construtiva, no caso presente e dado haver quanto a mim uma insuficiente valorização a par de uma muito deficiente gestão da programação cultural do teatro Garcia de Resende. É que acabei de me debruçar sobre a dita após as obras de renovação e nada de novo traz.


 Como não podia deixar de ser a BIME vem em primeiro lugar visto estar a decorrer. Seria curioso aquilatar das vantagens da BIME, que já vai na 15ª edição, e saber quem, turismo e restauração, ou como terá beneficiado a cidade beneficiado com tanta edição, uma vez que me quer parecer serem os bilhetes todos vendidos à CME que posteriormente os dissipa como entende, ou seja, segundo os meus cálculos pagamos todos espectáculos vistos por meia dúzia…


 Contudo, quando se trata de solicitar e receber subsídios do Ministério da Cultura, atribuídos em função da eficiência da bilheteira, que garantirá terem os espectáculos tido espectadores, tido venda, tido saída, tido sucesso, é um facto que a companhia residente faz prova de tal, o que eu duvido é que confessem ao Ministério que os bilhetes são todos vendidos a um único comprador, e pouco mais…


 Se a CME parar com essas compras, não creio que a população acuda ao teatro para salvar o Cendrev, não creio que a população lhe dê um aval daqueles que por exemplo Filipe La Féria tem recebido por cada peça que leva à cena, consta até nunca La Féria ter solicitado ou recebido um subsídio que seja, por mais pequeno que pudesse ter sido. Flipe La Féria vive do seu trabalho e do seu sucesso. Lá Féria age como uma formiga, mas há também neste mundo, como conta a fábula, quem actue como as cigarras, vivendo de expedientes…


 Mas voltando ao Teatro, agora renovado e de cujas obras poderia beneficiar o polo de artes da Universidade de Évora, que a CM deveria chamar mais a intervir e a participar, tanto para lançar artistas, através de exposições, como para lhes proporcionar um palco condigno e motivador duma verdadeira escola de teatro de qualidade, em detrimento do que tem feito até aqui, permitido senão incentivado a captura do teatro pela companhia residente, o Cendrev.


 Naturalmente o teatro deveria estar aberto e disponível para a academia, se assim tivesse sido, cantores/músicos da craveira de Áurea, uma artista de dimensão nacional e internacional que foi aluna da UE, mas de cujo sucesso esta nunca beneficiou, nem Áurea de condições a par do seu gabarito, teriam tido outras oportunidades, poderia ter havido porventura mais casos de sucesso.


 O caso de Áurea é exemplificativo ou elucidativo de quão devem ser integrados, puxados a participar na programação e utilização do palco do Teatro Garcia de Resende, tanto os seus aprendizes da escola de artes como os já actores, torneando ou eliminando através dessa participação o enquistamento que todos nós sentimos e sabemos existir entre a academia e a população, e diria que opondo CME / academia, enquistamento que quanto a mim se fundará sobretudo na atitude dos actores e gestores institucionais da companhia residente, o Cendrev, cujo pensamento será sobretudo político e temente da concorrência de gente jovem, formada, com estudos, descomprometida, e não engajada.


Relembro que o Cendrev goza há décadas do beneplácito e incondicional apoio da CME, apoio tão incondicional que jamais convidará à evolução, à superação, antes ao conformismo do status quo... Ora esta candidatura veio precisamente para isso, mudar o status quo, FAZER O QUE AINDA NÃO FOI FEITO… E há muita coisa a fazer e a mudar se quisermos uma cidade rica, moderna, cosmopolita, rica, que nos proporcione bem-estar, alegria, e sobretudo qualidade de vida.