terça-feira, 15 de março de 2011

33 - EM REDOR DE ALGUNS GINS TÓNICOS ...


Sobrei da história de meus pais como algo inesperado numa idade e época para eles pouco propícia a surpresas. Como tal, mais que um sonho, representei nos augúrios da família um estorvo desde o início.

Para trás fora deixada por minha causa, uma fazenda no colonato da Cela a sudeste de Luanda, em Angola, que meu pai já há muito e mentalmente havia dividido em parcelas para algodão, tabaco, cacau, café e gado, generosa oferta do governo de então e cujo objectivo, na retorcida lógica Salazarista, seria contrapor à guerra colonial então despoletada, um povoamento das vastíssimas planícies sem dono e em que a colónia era fértil e cobiçada desde tempos anteriores à querela do mapa Cor-de-Rosa.

Nunca distingui se o olhar de meu pai, perdido na minha contemplação, me admirava os predicados ou se vogava nas intangíveis caçadas aos leões, perdidas por minha causa nas matas de Gorongosa. Lembro vagamente conversas de carabinas e zagalotes certeiros entre os olhos das ferozes feras, fulminadas pela destreza do caçador exímio que era por cá com lebres e perdizes.

Depois disso faltam-me dessas recordações, recupero-as nos acordos de Alvor, na descolonização e independência dessa colónia, no 25 de Abril, dos retornados, entre eles os dos colonatos abandonados. Infelizmente já não tenho pai, e talvez agora, mais que nunca, se veja ainda embrenhado nas vastas savanas, caçando ou atento às cotações agro-pecuárias, desesperado com prazos de entrega, guias de embarque e exportação, esquecido de mim, como sempre.

Ele não soube, talvez nunca tenha sabido, mas adorava-o. Outras razões não houvessem e bastaria o facto de lhe ter frustrado na força da idade tão grandiloquentes planos.

- Bebemos mais um? Ou é tarde para ti ?

- Ficamos, adoro estar aqui, nem a minha história é muito diferente da tua, quantas vezes não me imagino filha de um mundo raro que nunca chora o passado. Quantas vezes dou por mim, olhar fixo num horizonte indistinto, como tendo vivido num mundo de mistério do qual guardo um segredo sabido, mas que provoca em mim uma exaltação no peito que mais parece uma tormenta e faz com que o coração anseie, como sabes, por dias felizes.

- Gosto de estar contigo, mau grado a consciência da enorme distância que nos separa, nestes momentos fecho os olhos e vejo-te como nunca, nem durante o dia te vi. Talvez efeitos do gin, ou então como que o despertar de um sonho, acordada de uma ilusão sob este céu inteiro pois numa fogosa cadência me lembras das cores das auroras, e imagino roçar a minha face pela tua e estremecer.

- Onde vou eu inventar estas palavras? Primaveras sei que invento ! - Será que enlouqueci ? Que fazer ? Como posso ? – Não, não enlouqueceste, eu sei que não. Próximo de ti é como se soubesse a história de amanhã e nunca antevisse o deserto. - Fala baixo, será que eles nos vão ouvir ? - Obrigado por ficares, tornas esta noite diferente das outras. Assim evito passar vezes sem conta à tua porta.

- Também eu, quantas vezes imaginei meus dedos como pente acariciando o teu cabelo, segurando-te a nuca e beijando-te.

Sei que não, que nunca, juro a mim mesmo que sim mas não, e continuo pela rua pensando como tudo seria bom, poder gritá-lo, poder gritar este amor como dourado ! Autêntico emaranhado de emoções e sentimentos, um novelo de frustrações. Verdade que sim, há muito és para mim motivo de agitação e cólera, vontade temor e receio.

– Acredito, sei-te incapaz de numa floresta assustares os pássaros dormindo. - Vais morrer de riso mas, quando estou contigo, como agora, é fogo que aspiro, sei como tu respiras, e respiro baixo, parece-me viver do ar que tu exalas, é só o que posso dizer e não me cansarei de o fazer.

Eu falo, tu falas, lado a lado, mas sinto que não escuto e não ouço, será que um dia partirás ? Deixarás de ser meu amigo ? Deixaremos de estar lado a lado ? Seria a morte.

Senti-me um intruso, mal pude sentei-me num lugar entretanto vago na ponta do balcão.

Enlearam as mãos, encostaram as cabeças, eu paguei a minha conta e fui-me, cabisbaixo.

Quem desejaria ali comigo não estava e, desde há muito tempo, senti-me só como jamais imaginara.  

       Pintura de Coskun Cokbulan

sexta-feira, 11 de março de 2011

32 - SER EU, CUSTA-ME .............................................


            Amigas e amigos muitas vezes me dizem que já era tempo de ganhar algum juízo. Outros, com menos confiança ou que nem tão bem me conheçam chamam-me, na melhor das hipóteses e de quando em vez, tresloucado, ou saudosista, nas piores louco. Talvez por não suportarem a minha extroversão…

Não que seja pretensioso, pois não sou, talvez por teimar traçar os meus percursos. Chovendo, fazendo sol, de noite ou de dia, cara ao vento, absorvendo os raios que sobre mim incidem, metamorfoseando-os em energia e vida, como as flores com a clorofila, ou as baterias com a energia retirada de uma mera reacção química, assim sou eu. Ser feliz é tudo para mim, porque descobri tarde que a vida é curta e não me merecem crédito os convencionalismos de que nos rodeámos, nem com eles beneficiei alguma vez por pouco que tenha sido. Não busco prebendas, favores ou privilégios, todavia não me lixem, deixem-me viver como quero, sem peias ou imposições.

Esta sociedade, moralista e puritana mas tão falsa quanto uma pérola de pechisbeque, sempre me tentou balizar e conter dentro dos limites por ela impostos. Com o tempo percebi nada se adequarem essas peias ao meu carácter, ao meu modo de vida, já que o que desejo é que a vida que em mim vive, resulte numa alegria digna de ser vivida e recordada vívida. Claro que embora acuse tiques saudosistas, apenas imposições dum gosto refinado porque apurado ao longo de anos, me obrigo e teimo marchar contra a corrente, jamais esquecendo que a única certeza da vida é o fim dela mesma, o que não me assusta, mas concita a valorar os minutos que me restam.

Mas a propósito, que é a saudade e a loucura ?

A obsessão pela ordem vivida, mas também o desvio a padrões de vida e comportamentos colocados frente à manjedoura ?

Comi daí demasiados anos e, que aprendi ?

Que enquanto cada um de nós se não libertar do pensamento alheio e pensar por si não vai lá, não chega a lado nenhum, não será nunca ele mesmo.

O que conta é o vivido e jamais permitir a vida parada.

Que nem deixemos meia vida por viver, nem vivamos a vida por delegação, isto é, viver a vida dos outros e, infelizmente muita gente há sem vida própria mas que a vive por imitação, por delegação. Vivamos cada um de nós a nossa vida e não uma vida alheia por procuração, derrubemos a melancolia, torneando prantos ameaçadores e dores escondidas, sonhemos ! Ao menos isso !

No Maio de 68, que agora se comemorará, a palavra de ordem era simplesmente “ a imaginação ao poder ” !

Então, estudantes e operários, descobriram por baixo das pedras das calçadas, arrancadas para servirem de armas de arremesso perante as forças da ordem que os forçavam ao passado, pasme-se, descobriram areia ! E Gritaram; “ por baixo das calçadas a praia ” !

Factos que nos dão ideia da originalidade espontaneidade e profundidade desse movimento social. Alguém portanto teceu esta teia que nos trama, qual tortuosa linha que o futuro traça à nossa frente. Mas viver não pode ser esse silêncio que ouves ou uma canseira, viver é ilusão, meditação imaginação e magia !

Sorrir, sorrir muito, não guardar segredos nem encantos e fechar na palma da mão o pensamento como um tesouro a repartir. Não acredites quanto é bom de ti gostarem, só farás do pranto canto quando houver alguém de quem gostes e possas gritar; “ como é bom ter de quem gostar, como é bom de ti gostar ” ! Chamam-me de vez em quando ou saudoso ou louco, e eu, contente, vos digo que o digais quantas vezes vos aprouver ! Aí encontro a certeza de que piso os meus caminhos e traço os meus percursos, a convicção de que esse futuro é meu e poderei cantar a vida levada.

O destino, o futuro, esta minha vida de louco saudoso mais não é que um constante quebrar de tratados, um lançar permanente de gritos de Ipiranga, um escancarar à vida todas as minhas portas e janelas, um convite a que entrais, que ficais, que vivais ! Traça para ti propósitos e intenções, enfrenta o que tens fingido não perceber e mesmo o que não entendas, não temas, elevar-te-ás onde nem imaginas !

Agigantar-te-ás !

E a tua vida, saudosa e louca, então brilhando desperta, tão apagada quanto o pode ser a vida de um tambor, manterá em permanente alvoroço um coração agitado mas liberto de enigmas, de sofismas.

Poderás então erguer-te e exuberante acreditar em mitos antigos ou modernos, rir da ironia, e, com zombaria, olhar para os teus detractores e entrar no paraíso. Aí me verás, como sempre, desperto, exuberante, esfusiante, saudoso, louco, triunfante, talvez exausto mas liberto, para te dar a mão e conduzir ao céu !

segunda-feira, 7 de março de 2011

31 - NÃO, NÃO É COMISERAÇÃO.............................

                         

Para aqui estou, olhando… Olhando e sorrindo a quem por mim passa. Rangendo os dentes de revolta, ódio, porque me sei diferente. Comiseração, não sei, apenas que se não na minha vida este acidente…. E eu seria outra, talvez indiferente ao que agora em mim mora, esta revolta, este ódio, a mim mesma, a toda a gente. Muita coisa mudou, foi como se o mundo tivesse acabado de repente. 

 Tantas as vezes que paro... e penso, qual caminho hei-de escolher, qual o melhor, se devo seguir o meu instinto, se o não devo fazer, pois sei que, aquele que escolher, será, e o outro, sempre para esquecer. Não há opções, não há alternativas.

Olhei-o, primeiro nele me despertou o corpo hercúleo, o porte erecto, os modos atentos, o sorriso franco, a beleza do olhar, a simpatia do trato. Não reparou que observado, continuou airosamente o seu mister, aproximou-se, não de mim, mas de uma caixa enorme que alguém deixara no meio do salão de exposição e vi-o olhar em redor, talvez buscando quem lhe valesse, retirá-la devesse, ou ralhado ser por tal desleixo.

Foi questão de segundos do olhar à acção, e, num ápice, numa destreza toda ela beleza, a segurança que só a força permite, baixou-se, pegou-lhe pelos cantos, e, como quem uma nota musical desenha, ergueu com tanta graciosidade quanta pode ter um simples gesto, aquele peso enorme até ao ombro, sem soltar um ai, um gemido, um lamento.

Siderada, ficaria horas olhando-o porque, nesse minuto vi quanta harmonia lhe animava a vida, felicidade irradiava do seu rosto belo, o cabelo escovinha, olhos pedindo avidamente ser beijados, ou eu desesperadamente desejando beijá-los, a tez morena, o peito largo, os músculos salientes e trabalhados, qual Adónis em cujo colo me entregaria, apenas para me afundar naqueles lábios carnudos e sedentos, ou sedenta eu porque para aqui sentada e condenada.


Bruno, assim se chama o meu enlevo, que nem sabe nem sonha quantas vezes aqui venho agora e desiludida parto se o não vejo.

Os ombros ! Que portento !

A altura meã, que mais lhe acentua os cânones que o corpo denuncia. Uma tara! Diria dele em meus tempos de menina e moça.
E não sabe ele nem nunca saberá quanto amor lhe dedico agora que presa e solta, presa em mim, solta dos constrangimentos, convenções e condicionamentos que esta moral em mim, em nós, inculcou e repudio num repúdio gritado, qual grito de socorro e desespero em que me enleio, em que me tolho, que me troa em pensamento mas nem ousa passar pela garganta e me sufoca.

E para aqui estou, olhando. Olhando e sorrindo a quem por mim passa. Rangendo os dentes de revolta, ódio, porque me sei diferente. Comiseração, talvez, quem sabe, sei só que não devia ter surgido nesta minha vida esse acidente…. E eu seria outra, talvez indiferente ao que agora em mim mora, esta revolta, este ódio, a mim mesma, a toda a gente.

É difícil de um momento para o outro aceitarmos que…

Porque se a todos vós amo, também a todos vós quero e nada mais anseio, apenas que não em mim este flagelo, esta vida parada, porque eu também quero viver !

Quero a vida cheia merda !
Estão a ouvir-me seus merdas !
Também eu quero a vida cheia !
Que se lixem todos !

E aqueles olhos pedintes, os lábios carnudos e sedentos, o colo em que me entregaria se pudesse, todo ele prometendo carinho, meiguice, doçura, mil promessas em que de bom grado me afundaria, mas não, condenada, agarrada a esta cadeira, e querem o quê fogo !

Sumam-se-me da vista !
Desapareçam !
Deixem-me só fogo !

Que desesperada e enleada em lembranças já esqueço, recordações esvanecidas, de momentos que contaram, já não contam.

Mãe ! Mãezinha ! Porque só agora te quero tanto ? Que nem correr para ti posso, abraçar-te, aconchegar-me no teu seio !

Tento soltar as asas, voar, procurar de novo algo, impaciente, ansiosa pelo que espero encontrar porque todos os dias novos esforços são novos desafios, desde o início, desde a partida, são sempre novos desafios e todos os trajectos são grandes, agora sei, conheço melhor o percurso da vida, e não devia ser assim, não devia nunca.

Todos os dias novos desafios, sempre, e em tudo, tristezas uns, alegrias outros, até atalhos parecem surgir, com diferentes vias, por vezes uma luz que sigo sofregamente e cujo caminho não tem, ou nunca mais chega ao fim e, se chega, quando chega, é ao fim da estrada imprudente que tomei.

Ao menos tu Bruno, estás aí posso ver-te, sonhar contigo, tocar-te.

Nunca o soubeste mas, dia houve em que sorrateira, empurrando esta cadeira, fui até à tua beira e me acerquei de ti, te toquei, e tu solícito, como sempre, como és;

- Em que posso ajudá-la menina ?

Corri !

Corri é força de expressão !

Nem sei como tanta força repentinamente me acudiu aos braços, de tal modo que em duas braçadas as rodas desta cadeira galgaram a saída e me vi só, feliz, contente por me teres visto e falado e por momentos, fui outra, fui como qualquer outra e, ruborizada, coração pulando no peito, sonhei-te, nesse momento como em tantos outros, e tens sido o meu sonho o meu elo de ligação à terra, o meu elo de ligação à esperança, e por dias se me aliviou o desespero.

Cuida-te Bruno, que essa moto, essa bomba, jamais faça de ti o que fez de mim um carro lindo...



sexta-feira, 4 de março de 2011

30 - IMAGINADAS SAUDADES DE TI ...


Tenho saudades de ti.
Nem sei como não ter se tão gratos foram os momentos contigo repartidos.
Saudades desses inolvidáveis momentos, dos nossos momentos... dos bons e dos maus também, se bem que nenhum desses lembre.
Tenho saudades. Saudades das conversas de leito e sem leito, conversas com pés e sem pés nem cabeça, conversas que abarcaram todo um mundo em que vogávamos e era grande, tão grande quanto as saudades que agora teço e não esqueço.
Saudades das discussões acesas naquele quarto apagado.
Saudades do teu sorriso tantas vezes tacteado, do teu sorriso se calhava falares nalguma coisa cómica, saudades da tua cara de ódio que nunca vi nem pressenti, saudades de quando propositadamente ou sem querer te irritava.
Saudades daquele amor intenso, daquele odor suspenso, daquelas manhãs dilatadas, por vezes em tardes, por noites e madrugadas.
Saudades dos teus lençóis lavados e quentes, do teu corpo escorregadio, fugidio, sempre presente e entregue em volúpia e dádiva, que eu sugava e amava e jamais cansei de tomar e agradecer.
Saudades dos teus medos e do modo peculiar com que eu cuidava deles. Saudades da maneira carinhosa e doce com que te preocupavas comigo.
Saudades do nosso primeiro encontro, do primeiro beijo e do último também.
Saudades de quando surgindo do nada me fazias sorrir pelo simples facto de estares ali. Saudades das tuas mãos nas minhas, da minha boca na tua.
Saudades dos planos que fizemos, sabendo que não valia a pena fazê-los, por impossíveis. Saudades dos nossos telefonemas loucos, parvos, de adolescentes. Saudades das músicas que trocámos e que toco até cansar e que só conseguem que te tenha mais saudades do que alguma vez tive.
Que saudades de nós lado a lado, sonhando, não vivendo, mas sonhando, o que, dadas as circunstancias, já nem era mau.
E agora o sofrimento das horas sem ti, o esfumar da tua imagem, o esbater das recordações vívidas que de ti guardei e me esforço por manter intactas e das quais me alimento, vivo.
Acumulo, acarinho e odeio as saudades de tudo o que vivemos e do que não conseguimos viver. Entesouro saudades do modo como me amavas, como te amava e te fazia sentir a mulher mais amada do mundo.
Empilho saudades da nossa dependência mútua, da nossa peculiar forma de esquecer o mundo quando juntos. Amplio as saudades de ser teu, só teu, e tu só minha, de saber ou lembrar o que fazíamos e quando.
Cumulo de recordações e saudades a nossa historia, a mais estranha que alguém já viveu. Armazeno para memória futura saudades dos nossos encontros e desencontros ás quais acrescento as saudades de estar contigo, simplesmente por estar, ou precisamente por estar.
Tenho doridas saudades da tua amizade, do teu sorriso, da tua força. Saudades da tua voz, do teu carinho, da tua paixão, do teu desejo, das tuas loucuras, da tua inteligência, do teu talento.
Saudades de ti quando comigo. Saudades de mim quando contigo. Saudades que imagino verdadeiras…ou que verdadeiramente imagino, que interessa, serão sempre saudades…


P.S. Volto a recordar que qualquer semelhança dos meus textos com a realidade é pura coincidência, não confunda a minha imaginação com a realidade, nem a sua com os seus desejos. Obrigado

29 - QUEM ME DIZ.... ???




Tudo tem um futuro.Desde o Big-Bang inicial que o cosmos não pára, expande-se, não indolentemente, como tantas vezes o comezinho correr das nossas vidas e dias, mas expande-se, nem casuística nem aleatoriamente, expande-se simplesmente, tem o destino traçado, diria mesmo um futuro que podemos prever.

Não são assim os nossos dias, nem sequer o nosso futuro, que por vezes imagino tão caótico quanto o teórico e incerto caos definido como origem de tudo. No início era o Verbo, no início era eu, esse eu que, com a mesma aparente passividade com que o infinito nos aparece, já que, expandindo-se, será finito a cada momento, me moldaram, moldei e moldam, esse eu a que se me transmutam os dias, o porvir, umas vezes tornando ilusão o que foi, outras inacreditável o presente e até mesmo o futuro.

É-me impossível adivinhá-lo, quando muito tenho dele uma ideia feita, preconcebida, projecção das rotinas pisadas e repisadas na constância de uma vida vivida que, como qualquer outro aceito, como qualquer outro idealizo, cumpro, e à qual procuro aditar a irrelevância da exaltação ou a alegria dos momentos nos quais me julgo feliz. Como é relativa a apreciação que cada ser faz desses momentos ! 

Não fora o sonho e eles seriam tão válidos como as falácias fiduciárias de que, em momentos de aperto, as sociedades tanta vez se socorreram ! Não fossem os sonhos e como suportaríamos o tédio dos dias, a ocorrência destas vidas simples, balizadas, mais dos outros que nossas ? Por isso os sonho, aos dias futuros, e me envolvo, sim, neles me envolvo, qual molusco em casca dura, e os torno fim e meta, objectivo e escape.

E é sempre na miríade de momentos felizes, que me sonho e julgo centelha fugidia da girândola absurda em que nos querem fazer acreditar vivermos, que me acontece crer-me e pensar-me vogando de mãos dadas à beira rio, olhando feliz e despretensiosamente os campanários das urbes, os bandos de aves cruzando os céus num V cujo vértice lhes aponta rumo e destino, que de forma inata conhecem, e, nesse item, me superam, nos superam, vulgares mortais a quem foi dado o livre arbítrio e jamais soubemos que fazer com ele.

Por isso, ao invés das certezas que ás aves invejamos, nos quedamos sonhando, incapazes de tomar uma decisão ou acreditar numa certeza tornada aspiração e, repetidamente, teimamos nos mesmos sonhos como se, desse modo, pudessem ser alteradas nas nossas mãos as linhas que desde crianças nos traçam o futuro.

Tornasse uma qualquer varinha mágica os sonhos em realidade e certamente me veria, de mãos dadas, de novo visitando os mesmos lugares em sonhos percorridos, ou outros para que a luxúria das miragens me conduzisse, feito príncipe encantado ou encantado com a beleza desses dias, como se num outro universo, paralelo, ou numa outra vida, de cujos céus roubaria as estrelas que poria nos ombros, como dragonas de luz, aliviando as dores, o sofrimento e o peso das responsabilidades assumidas e que nem o carácter nem a personalidade a que submissamente me sujeito me permitem alijar.

Então, então nem as estradas seriam negras, antes pautas musicais que um violão para mim conjugasse, nas quais caminharia com a destreza e velocidade dos caracóis que nos sonhos me acompanham, tal qual os dias sem fim, nuvens ou escolhos com que o sonhar me alicia. Seria decerto eu mesmo e um outro, sem passado nem peso, eternamente sonhando a realidade em que me sonho como se, numa Primavera sem princípio nem fim e os odores que me toldam a razão perpetuamente se soltassem de flores sempre viçosas, belas, coloridas e risonhas, o chão um espelho mágico como na história do feiticeiro de OZ.

Assim sim, desceria das nuvens e caminharia sem medo.

Mas por que tenho eu medo ?

De que tenho eu medo ?

Por que até já de sonhar tenho medo ?

Quem me diz ?