Depois do espanto e de
olhá-la profundamente quedou-se olhando-a, remirando-a demoradamente até que um
estremecimento a denunciou, assustara-se e levara involuntariamente as mãos ao
peito persignando-se, como se no ritual duma crença em que eu sabia não
acreditar ou cresse pudesse protegê-la.
Encontrei-a um
dia destes quando visitava a exposição “Vantagens e Desvantagens da História para
a Vida” no Fórum da Fundação Eugénio de Almeida, reconheci-a não só pela
cicatriz e pela “pinta” mas sobretudo quando parou petrificada ante a exposição
duma máscara negra africana em madeira de mpingo, jacarandá africano ou
pau-preto. Não a via há mais de trinta anos, vira-a em Durban por volta de 75 ou 76
pois os pais chegaram a morar ao lado de uma vivenda onde vivi uns meses. Ela era então uma criança de
uns doze ou treze anos a quem eu fazia umas festas na cabeça sem lhe ligar grande importância.
- É tudo uma
questão de fé, disse-me a páginas tantas. – Ainda recordo o meu pai
distribuindo ordens, lugares e munições pelos homens deitados no interior de
janelas e portas, o paizinho ajeitando o chapéu para que a aba o protegesse do
raiar do sol, os homens praguejando, a neblina matinal confundindo-se com o fumo
que os casões e os celeiros ainda largavam e por cima do cheiro a fumo o odor
nauseabundo dos animais e dos pretos mortos e inchados, abandonados à sua sorte
ia para alguns dias pois ninguém arriscava abandonar a segurança dos fortes
alicerces da casa mãe.
Mpingo
dissera o pai ao arrancá-la da cara do matulão estendido ao comprido na soleira
da porta, lábios secos encolhendo em volta da boca cujos dentes o inchaço
parecia querer expelir das gengivas, a barriga aberta por um zagalote, as
tripas espalhadas empestando a atmosfera de um cheiro fétido.
Pau-preto, como os pretos que ela assustada guardara e apertara contra o peito como fazia
com a boneca Carmina, também ela preta, ambas desandando para a casa grande
onde as mulheres rezavam e choravam pedindo a intercedência de Deus a fim de
levar os pretos para que se salvassem os brancos.
Olhei-a
consternado.
- Além disto
pouco mais recordo daqueles dias duma infância vivida em sobressalto. Nunca
mais vi o paizinho vermelho de raiva como naqueles dias. Ainda o recordo
bramindo:
- Bala de
branco não mata preto, ai não mata, devem ter aprendido a lição os cabrões, não
enterrem nenhum, deixem-nos ficar a apodrecer ou a servir de pasto à bicharada.
E não os enterraram,
as cruzes ao fundo do jardim tinham todas nomes brancos, Eulália, Laura, Elsa, Ludovina,
Natércia, Florindo, Metrogos, Fonseca, Marco, Rocha, Gervásio, Pacheco, Santos, Palma, Rolo, Desidério, Pimenta, Pessanha, e uma cruz
pequenina da cadela Violeta que por vingança tinham degolado com uma catanada.
Uma cruz maior, na qual enrolaram o terço com o qual andava sempre rezando, movendo os lábios numa ladainha que não serviu de remédio nem de consolo a
ninguém, foi feita a preceito para a irmã Esperança. Mas decididamente o deus dela não
estava olhando os brancos naquela hora fatídica.
Durante a
viagem a Carmina perdeu os cabelos primeiro, uma perna depois e ao fim de
tantos dias caminhando debaixo de sol acabou por perder a cor. Quando o
primeiro camião da fila tocou o claxon anunciando Durban estar à vista e a
viagem a chegar ao fim, deixei-a cair devagarinho pela janela do carro mal me
senti ensanguentada e alarmando tudo e todos com um ferimento que parecia ter
escapado ao mais atento e pôs os nervos da mãezinha em franja até ter acabado
por sossegar e me acalmar também a mim explicando-me a natureza coisas.
- É a
menarca, disse para o meu pai.
E foi o
último episódio da minha vida em que sangue me poria em polvorosa. Custei a
adaptar-me à escola em Durban, o monhé que dava as aulas não tinha a paciência
da irmã Esperança e pela primeira vez na vida desejei enterrar alguém e
esquecê-lo. Nesse ano ainda os meus pais conseguiram falar por telefone com a
família na Covilhã e rumámos à metrópole, metade da minha vida foi passada em
viagens, se não foi é o que sempre me parece, ou fugindo de uma coisa ou
correndo para outra.
De volta a
Lisboa, de que não me recordava minimamente, senti pela primeira vez ser
indesejada. Para onde quer que nos virássemos éramos vistos como tendo peste,
ou lepra, os pretos não gostavam de nós e fugimos deles, mas como fugir dos
brancos, e para onde ? Em três ou quatro anos arrolei meia dúzia de namorados,
não suportei nenhum e admito que fiz tudo para correr com todos eles. Todos com
a boca cheia de solidariedade mas incoerentes entre o dizer e o fazer, nem lá a
ignorância das gentes preenchia um décimo do que por aqui vi, ainda se vê.
Cidades atrasadas, gentes atrasadas, ruas e ruelas tortas e tortuosas, tenho
saudades das mentes libertas e dos espaços livres das cidades das colónias e de
Durban. Aqui sou culpada, ainda não percebi bem de quê ma sou culpada, o
remédio é usar uma máscara, é isso, fingir, ouvir, concordar, e depois fazer
como quiser, esta gente é incapaz de tolerar seja o que for. Poderei um dia
tirar a máscara mas já não sou a criança de há vinte ou trinta anos, Mudei
muito, mudaram-me, a máscara garantiu-me a sobrevivência, lá fora a estupidez
continua a mesma, contínua igual.
A conversa
prosseguiria dias depois na sua casa em Cano, Casa-Branca, Sousel, terra onde o
marido, veterinário, refez a vida e lhe repôs a calma numa alma torturada havia
demasiado tempo. Puxou de um baú de onde retirou a máscara que o pai tinha
arrancado do rosto de alguém diante dela naquele dia fatídico. Virou-a para mim
e recomeçou o diálogo que interrompêramos dias antes:
- O óleo
espalhado no corpo não evitou a bala do branco, nem o óleo nem as máscaras, mas
a mim salvou-me a máscara que afivelei, salvou-me da estupidez e das
incongruências destas gentes. Simbólicas as máscaras por vezes, quer sejam ou
não irei restaurar a que tenho em casa e herdei do paizinho, passá-la a óleo e
expô-la na sala, jamais deitarei fora esta máscara, não, não vou voltar a
guardá-la, foste um herói paizinho, recordar-te-ei sempre como um herói, contra
os pretos lá, contra os brancos cá, contra os preconceitos de toda a gente e em
toda a parte. Quanto à minha máscara jamais a tirarei. Culpada, incapaz, todos
somos considerados incapazes, só porque alguém se recusou a negociar a paz, só
porque alguém não acautelou, não recorreu à diplomacia, não nos protegeu
naqueles dias, nos dias em que todos sabiam o que iria acontecer e em que
aconteceu. Só não soube quem não quis, só não sabia quem não queria, por que
não nos defendeu quem nos convidara a ir ? África sempre foi dos africanos,
como a Europa dos europeus e as Américas dos americanos. Angola era nossa, Angola
não era nossa, e o que é nosso agora ? Uma dívida que vai durar duzentos anos a ser paga ? Nada, não temos nada, está tudo nas mãos das Tríades Chinesas,
de Fundos Anónimos, de Mercados Invisíveis, os pretos quando quiseram lutar
pela libertação ainda tinha a nossa cara para apontar mas se nós quisermos
lutar agora pela independência a quem vamos apontar ? A quem ? Com o quê ?
Quando ? Como ? Que gente de trampa
esta, que miséria de povo, gente de merda, este país dá-me nojo, só gente estúpida, corrupção e
corruptos, e ninguém lhes mete as tripas ao relento… Expulsa de um lado, atirada
para o outro, é assim que me sinto desde 74, mas que culpa tenho eu ? A quem
fiz mal ? Quem foi o animal que assinou e selou o meu destino ? Quem ?
E tu Diogo cala-me
essa cadela e muda-me já a merda da televisão para o canal Disney que já não
posso com a trampa do funério, e faz o que te digo ou desaparece-me da frente.
Desapareceu...
MÁSCARA *
Depus a máscara e vi-me ao
espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar
a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a
pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um
términus de linha.
* Álvaro de Campos, in
"Poemas"
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não
inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as
chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses
nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a
realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas,
como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do
lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o
fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não
era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao
espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia
vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no
vestiário
Como um cão tolerado pela
gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para
provar que sou sublime.
** in Tabacaria /Álvaro de Campos
(F.P)