segunda-feira, 4 de junho de 2018

505 - MUSICALIDADES * por Maria Luísa Baião ...

Flávio Belisário assegurou uma vitória assinalável na Batalha de Dara (530) diante dos persas, e segurou ainda o Imperador Justiniano no poder, aquando da Revolta de Nika (532).

Amigo nada chegado ousou pôr em questão alguma prosa minha, mormente a concernente à música, à qual muitas vezes me refiro como imbuída de cores inverosímeis e odores indescritíveis. Suponho não ser para ele nada natural ver a música descrita através de figuras que nada têm de musicais. Atão direi que nunca me falaram com menos razão.

Felicidade a minha, que já tenho uns aninhos de vida e, ao contrário do meu inusitado amigo, vejo, para além dos sons, imagens que só mesmo a música me traz. Talvez o meu marido possa não gostar, mas como esquecer Peny Lane, dos Beatles, quando ainda moça desvairava pelo Dimas, cujo pai tinha uma loja de gravatas ali à João de Deus ? Como irei alguma vez esquecer sonhos, a carinha laroca do Dimas, ou o álacre viveiro de gravatas no expositor logo à entrada ? Não sabe o meu marido que a teimosia no exagero e extravagância que coloco nas gravatas que lhe ofereço, têm muito que ver e quanto, com as gratas recordações do Dimas, que persegui sem qualquer resultado e hoje o digo sem a menor pena ou arrependimento.

Peny Lane, é gira, tem violas e violões, contrabaixos e bemóis, acústicos e percussões, certo, e tem um coração alvoroçado cada vez que é tocada, passados tantos anos de pensada. E dizem-me que música é música e somente música?

Je t’aime mais non plus, que já nem me lembra quem cantava, recorda-me o cheiro adocicado de rosas-malva, a imagem de um enforcado e o Tó Rosado pedindo-me namoro enquanto denteava uma maçã verde. Adoro ainda hoje o odor e a cor salmão das rosas-malva mas nem sei por que carga d’água não sou capaz de tragar uma maçã. Esqueci a francesa, não esqueci o Tó Rosado, que só não fiz feliz por me ter pretendido no injusto momento em que alguém entendeu não ter a vida música. Desculpa-me Tó, mas como decerto hoje saberás, há momentos para tudo.

Pintem-me da cor que quiserem. Adoro os Procul Harum, em especial Hotel Califórnia, um álbum com perto de cinquenta anos. Não conhecem ? Claro que não conhecem, mas eu conto-vos. É um álbum de uma voluptuosidade afrodisíaca, dos tempos em que me fiz mulher, dos dias de festas em casa da amiga Irene, dos tempos em que conheci aquele que hoje é meu marido. Mais ? Ainda precisam mais provas de que o que a música menos tem é música ? Tem cores, odores, sonhos, devaneios e tantos anseios quantos os anos que já conto, e nem vos digo, quantas notas são precisas p’ra que uma pessoa se sinta perdida. 

Lembrem-me os Rolling Stones e têm aqui uma libertária pronta a pegar em armas, atirem-me com os Pink Floyd e reparem na minha transformação quase imediata em contestatária anti-sistema. E falam-me em sons, em música, coisas que não tenho como redutoras e me abrem o espírito para acções e recordações sem fim. Água Brava, fixem este nome, este perfume, esta colónia, after-shave. Nem vos conto nem vos digo, quanta música encerra uma só nuvem vaporizada de Água Brava, pediria apenas que hoje, mulher madura, adulta, responsável e figurinha pública, me tirassem desse filme.

Há quem coleccione álbuns, cassetes, discos e cd’s. Eu colecciono perfumes. Cada um, sem que ninguém saiba, traz agregado a si um álbum de recordações, de imagens, cheiros, devaneios e sonhos lindos de encantar. E não se paga mais por isso. Haverá quem coleccione postais ilustrados, selos, vinhos, calendários. Eu colecciono perfumes, bocados de vidas e amores, religiosamente, num grande armário. E qual lâmpada de Aladino, um frasco lembra-me um apeadeiro de comboios em Vila Franca, outro, o primeiro quarto alugado que ocupei no Rêgo, uma colónia espanhola que se está a acabar, um dia de Primavera, eu de peúgas brancas, botas de camurça, e alguém que me pediu em casamento. Num spray já ferrugento, o odor a bebé do meu filho, roupas de maternidade.

Música? Música é o que você está a dar-me Perdigão com essa treta da música ser simplesmente música. Engana-se, é muito mais, só lamento que o não sinta.

E Beethwoven ? Como e porque pensa você que ele escreveu tantas maravilhas musicais depois de completamente surdo ? Eu digo-lhe, ou estava apaixonado ou amava a vida. E a que pensa o meu amigo que deve Stradivarius a sua mestria ? O seu delírio ? À música ? Está enganado mais uma vez amigo Perdigão, ele nada percebia de música, mas na busca da mulher ideal acabou produzindo mais de vinte virtuosos violinos por cada ano da sua vida sem que nunca tivesse encontrado o amor dos seus sonhos.

Belizário, diz a lenda, deve o seu infortúnio às imagens que viu enquanto se deliciava ouvindo o canto da Lira. Depois de uma vida de vitórias é afastado da corte de Roma em 562, cai em desgraça e acaba na miséria. Nada que não tivesse sabido de antemão. Belizário acreditava que nada teria mudado o seu destino, nem uma linha traçada na palma da mão com o fio do seu punhal.

E Einstein Perdigão?  A que pensa que se deve a sua genialidade ? O seu êxito extraordinário ? Sabe que ele não foi músico ? eu sei que ele não somente via como ouvia a música do Universo, a harmónica harmonia do Universo.

Entendidos quanto à música amigo ? Ouça-a menos e pense-se mais, não se arrependerá.

Flávio Belisário entra triunfante em Roma  no âmbito da Guerra Gótica

* Publicado por Maria Luísa Baião cerca de  21‎ de ‎Setembro‎ de ‎2005 in Diário do Sul

sexta-feira, 1 de junho de 2018

00504 - ANGOLA, GALO NEGRO GALO NEGRO ...

           
No intervalo dos tiroteios as negras estenderam os batiques na praça e nas arcadas do Banco de Angola em guerra aberta com outras quitandeiras. Luanda estava a ferro e fogo, os do galo negro e os outros não tinham ordem de poisar em ramo verde, aquelas tréguas na luta deixaram a cidade florir como um jardim à beira da baía onde quitandas improvisadas desabrochavam como fungi após as chuvas.

Recém-saído com alta do hospital de S. Paulo (de Assumpção de Loanda) o Tenente Fernandes numa tentativa de apressar a recuperação passara a frequentar de vez em quando o Adão, onde dava um salto sempre que podia para ouvir o Grupo 5, nessa época considerado o melhor grupo pop português. Na morte pensava pouco, e a vontade de meditar sobre ela não era nenhuma, passara por ela havia ainda pouco tempo como cão sobre braseiro, passara a correr digamos, pelo que nem ela tivera oportunidade para o agarrar, nem ele ficara especado a vê-la passar, ou a vir.


Havia o viver e enquanto o cansaço da convalescença não o abatia corria à Marginal olhando os dongos na pesca, ou sentava-se na Paris de cerveja na mão e sorriso na cara. Estar vivo era o contrário de estar morto como viria a escutar quarenta anos mais tarde na metrópole e, uma vez que se sentia vivo assim inda queria viver mais, apanhava um ou vários machimbombos e só parava na Gody ou na Biblioteca Nacional. Gostava especialmente do Largo do Bocage, do Parque Heróis de Chaves, de olhar as garinas, garinar, passear p’la Alameda D. João II ou p’la Avenida General Norton de Matos.

De vez em quando e agradando a companhia aliviava o peso dos dias dando um salto à Nicha, apanhando sol como Deus os trouxera ao mundo, ou tornando à Vila Alice. Uma vez passeando em frente da Maternidade Maria do Carmo Vieira Machado atirou-lhe a Faustina: 

- Quando me prantas ali amor ? 

Coitada ela ficou sabendo não, nosso tenente olhou em redor mirando no futuro e lamentar o triste estragado da cidade. 

Parar é que não, pensar é que não, sobretudo quando toda a cidade diferente, num cenário apocalíptico, assustador, dantesco, sobretudo quando andar na rua dentro ou fora de horas se tornou uma aventura, um perigo, e morrer se tornou tão banal como por dá cá aquela palha, por um azar do destino ou porque calhava, ou porque assim a sina e o pão nosso de cada dia estavam traçados. Luanda regurgitava cadáveres a qualquer hora do dia ou da noite sem que alguém parecesse preocupar-se com isso. Neste cenário viver ou morrer era coisa que não estava na mão dele, que não estava nas mãos de ninguém, estava nas mãos de todos e de Deus todo-poderoso.


O viver ou morrer tornara-se uma montanha russa, uma questão de sorte, que melhor para uma convalescença senão olhar todos os dias as dezenas que não tinham tido essa oportunidade ? Estava vivo, ainda, obrigado meu Deus, não me esqueças, não me tires o olho de cima nem o tapete debaixo dos pés, confio em Ti, a vida é mesmo assim, não vale nada, pretos ou brancos, é indiferente, a morte é igual, por aqui a cotação de qualquer uma delas não vale um caralho. Quando caíam morteiros, e ainda os de 81 não tinham começado a cair e já as galinhas debandavam para anharas, os bairros viravam num reboliço, a vida na capital ficava toda de pantanas. O tenente entornava infusas como nem um cambuta faria nem que andasse aos pinotes caçambulando por todo o quarto. Depois das explosões, das morteiradas e da tropa acalmada ouviam-se as vozes dos monandengues procurando as galinhas no capim, trabalho de que se livram os cipaios que, de covilhete na mão e pintando figuras de sotrancão se empenhavam na retranca debaixo de uma qualquer mulemba, beberricando maruvo e olhando sem interesse alguns dambas mirando miragem devido ao mormaço e chutando com indiferença quaisquer dongos que se atrevessem a aparecer.

Para ser franco o que agora apetecia mesmo era um cozido à portuguesa, ou grão com mão de vaca pois embora a trague já deito moamba de galinha pelos olhos. Cerveja Nocal, a cerveja sem igual, maruvo e jindungo são o melhor remédio contra a guerrilha, as explosões, os saguis, dongos e companhia, quando é assim saio de casa, busco um sicómoro ao fundo do quintal e deixo que aquela tropa se entretenha a despejar fogo e a despachar umas granadas. Para minha segurança alojei-me no Hotel Trópico que todavia não deixa de abanar, de dar pulos, deixando cair caliça do tecto e onde tudo corre mal e é mal servido. Por isto a minha tropa agora é outra, entrado em excesso e em delírio vou aviando de enfiada tudo que meta cerveja, tudo que tenha jindungo, da galantina de vaca ao kiombo e até que fique opado, a regougar, deitando espuma pelos cantos da boca. Quando estou assim, cagado de medo e me enxarco, bem podem cair morteiros, até os de 81, os tais que ainda não têm caído e já as galinhas debandaram para anharas.


Ele trabalha de empreitada e nelas é um tão preto tão matumbo como qualquer outro preto matumbo. Não faz cazumbi mas faz-se de inzoneiro e bem bebido, bem atordoado, bem anestesiado, imagina-se num salão de beleza, tratando flor do congo deitado numa esteira, mordiscando caju, deixando correr a cerveja, segurando o cachimbo de bambu, doseando a liamba, mais tabaco, menos tabaco, dependendo de quanto está disposto a vingar-se ou a não se deixar xingar, batendo o pé ao ritmo do batuque tocado por um qualquer caçambuleiro que não quis ir na busca das galinhas no capim, ou capinar mortos.

Capinar também não é com ele, ta no férias, salão de beleza, cuidar de si, dos antrazes, antes de ficar sem pés, tão opados que nem lhe cabem nas botas, não é frioleira aquilo, pede mais cerveja, uma peineta de caju, muito jindungo e vem kombucha com fartura também nesse vir. Tá visto, vai no ficar por aqui, há que fazer no vida, a morte não o assusta já, já lhe assustou sim, agora está no confiar, há-de chegar ela, mas só quando tiver que chegá, diz.

Não teme não, não da p’ra isso diz para ele velho Nicolau, diz e repete, espreguiçando-se debaixo dum mamoeiro e adivinhando-lhe os pensamento. Logo esse velho cipaio que sobreviveu a dezenas de emboscadas, ataques, bazucadas, morteiradas e outras tantas aventuras que lhe custaram um pé, pouco para tanto baile diz ele por vezes, rindo de sua sina e repetindo esse rir que tanto faz ele rir, a sorte, a sina, o fado, e volta na volta lá vai buscá o Zeca e vai de Menino do Bairro Negro ou Um Homem Novo Veio Da Mata.


Conheci-o muito a sul, junto ao Cunene na aldeia dos hereros, onde vivia numa grande sanzala perto de Calueque o povo bantu, num povoado onde, sempre que passei não deixei nunca de cumprimentar um outro velho, o sábio Azekel (aquele que reza ao Senhor) um velho sábio tucokwe, bom manuseador de faca que ia enfiando bem afiada no marfim pachorrentamente, esculpindo-o com excelsa destreza.

Embora não fosse por dinheiro o velho vendia as mesmas estatuetas duas ou três vezes, ou mais, todos as queriam ter, como se fossem o amuleto da sorte, todos as queriam comprar mas infelizmente nem todos regressavam para as levantar, a vida tem destas coisas, por isso o velho não olhava na cara nem nos olhos dos que lhe pagavam, tinha tempo de os ver se voltassem, sabedoria de velho ou intuição.

Ainda carrego ao peito a sua recordação, acreditei nele, no poder da sua estatueta, senti medo, caguei-me de medo algumas vezes, mas aguentei, resisti, agarrei-me à sua boneca, a Deus, à Nocal, a cerveja sem igual, ao maruvo, ao jindungo, à liamba, à galantina de vaca e ao kiombo, à fé, e aqui estou a segredar-vos os meus medos, a minha ventura, a minha sorte, a minha coragem, a minha firmeza, o meu ânimo ante o perigo, e prometo que me fico por aqui, não maçarei mais vocês, nem beberei mais hoje. Tá no prometido.



503 - WANTED - PRECISA-SE - PROCURA-SE ...


Aqueles comboios com cento e cinquenta, duzentos ou mais vagões demoram seguramente mais de uma hora a parar. A gente trava agora, são 15:48h e ele vai parar lá para as 16:50h. Depois demora novamente mais uma hora a arrancar e a embalar. Quer dizer um comboio daqueles, vindo de Sines, teria de começar a travar na Casa Branca para parar ali onde ele o queria quietinho, paradinho e caladinho.

Queria mas já não quer, diz ele que se atrasou. Isto disse ele há três dias, a 29 de Maio, que reflectiu sobre uma possível estação da linha férrea Sines/Caia no Alandroal “demasiado tarde” * parece que se atrasou a pensar na coisa. Eu diria que ter pensado nela com seis meses de antecedência já teria sido bem pouco, quanto mais agora que a procissão saiu do largo e está quase de volta ao campanário.

Estas coisas nem se devem pensar seis meses antes mas seis anos antes, no mínimo. Mas a este presidente não pagamos para pensar, este é pago para não pensar pois admite ele que nem pensa, ou se pensa, pensa atrasado digo eu, pensará como um atrasado mental, sem desprimor para estes últimos. É contudo a esta espécie de gente soberbamente preparada que pagamos para nos governarem, para tratarem dos nossos interesses e não dos deles, a esta gente e a vereadores, assessores, técnicos superiores, dirigentes de unidades, chefes de gabinetes e serviços, de urbanismo, de arquitectura, de economia, de desenvolvimento económico, agora tão na moda o desenvolvimento económico desde há meia dúzia de anos para cá.

Declaração de interesses, sejamos honestos, e eu sou-o. Não conheço este senhor de lado nenhum, nunca na vida o vi, nem mais gordo nem mais magro, nunca me fez mal, nenhum absolutamente, sei a que partido pertence, ao mesmo que eu, ou ao que era meu e abandonei há mais de uma década por falta de identificação com o dito. Um partido (não o único) que vem brincando e gozando com os portugueses há demasiado tempo, um partido que julga ser a ética verde e coisa que se coma, até que um dia… Bem, voltando à vaca fria, simplesmente achei piada à confissão deste senhor, à sua inocência, à sua ingenuidade, à sua parvoíce, à sua ignorância.

É que não somente se atrasou a pensar na coisa como, aposto, nem lhe ocorreu de a articular com os colegas de Borba, Estremoz, Vila Viçosa e Évora, porque não creio na possibilidade de uma estação ou apeadeiro em cada uma destas terrinhas, destas localidades, cujas distâncias entre si nalguns casos correm o risco de serem inferiores à extensão do dito comboio. 

Um comboio que demora mais de uma hora a parar e mais uma hora a arrancar e a embalar não se pode dar ao luxo de parar onde convém a cada um, todos teriam que escolher uma localização central e, juntos, bater o pé em como queriam o comboio parado ali, ali e não aqui, ali, acolá ou acoli. Onde pusemos o X no mapa, por este motivo e por aquele e aqueloutro segundo aconselham os dados deste estudo que todos pagámos e que prevê um volume de carga de teor Y escalonado no calendário Z que igualmente anexamos.

Mas dar corpo a tudo isto em 35 horas semanais torna-se impraticável, reunir o consenso de quatro ou cinco presidentes de câmara uma impossibilidade, reuni-los todos à mesma hora do mesmo dia numa sala com agenda e ordem de trabalhos um sonho de uma noite de verão como diria William Shakespeare. Sucede serem estas pequenas nuances, estes pequenos deslizes que fazem do país e em especial do Alentejo a zona mais atrasada da Europa, que ninguém tenha respondido ao senhor como devia é para mim uma incógnita.

Efectivamente o problema deste nosso Portugal são os portugueses. Foi (e continuará sendo) este tipo de atitude que contribuiu para o País ficar à deriva, sem sentido táctico algum e muito menos uma qualquer estratégia. Foi este tipo de comportamento, este não pensar, que fez com que muitos tivessem que partir, os melhores activos e os melhor preparados da sociedade portuguesa segundo se diz. O que prova haver quem durma, quem não abra os olhos à realidade, este senhor por exemplo acordou com 6 meses de atraso, e tem falta de mundo, de cosmopolitismo, far-lhe-ia bem sair de vez em quando do Alandroal, e até de Portugal...

Outra questão que me encanita, nem o partido do dito senhor o soube aconselhar? O partido, a concelhia, estão lá para o aconselhar ou para lhe aparar as jogadas? Estão lá para o ajudar a servir o povo ou para lhe servir os interesses e esconder os fiascos? O partido é representado por ele ou é ele que representa o partido? Sendo um partido com grandes responsabilidades no estado comatoso do país, a concelhia, as concelhias, não cuidaram de evitar tanta porcaria que tem sido feita ao longo dos últimos quarenta anos? Porcaria que tem sido e continuará sendo feita, a menos que, ao invés de eleitos comecem a cooptar os seus candidatos por anúncio na imprensa, com caderno de encargos bem explícito, o perfil desejado bem delineado, e a remuneração de acordo com os resultados obtidos. Um anúncio de “PRECISA-SE” ou de “PROCURA-SE”, um WANTED, como no velho oeste.

Se um método não dá resultados, e está mais que comprovado não dar, por que não mudar o método, o sistema ? Será preferível continuarmos vendo passar os comboios ?


Nota – Abaixo deste texto encontra-se uma caixa onde poderão deixar os vossos comentários, a vossa concordância ou discordância, elogios ou ofensas, vitupérios, insultos, injúrias, ultrajes. Desabafem, mas não matem o mensageiro, o mensageiro só pegou nos factos, não lhes deu vida, não teve pois a minima implicação neles.......



sábado, 19 de maio de 2018

502 - MINHA VIZINHA, D. NATÁLIA MARIA, PIA



 MINHA VIZINHA, D. NATÁLIA MARIA, PIA


Tenho uma vizinha que nunca me via,
que nunca me olhava, que me ignorava,
até ao dia
em que o padeiro parou à minha porta,
cedo, e me entregou pessoalmente o pão do dia,
pão que alguém amassara,
ainda quente,
viera casualmente num Mercedes.

Foi este sábado, entregou-mo em mão,
parou à minha porta,
onde eu já o esperava,
Olá ta bom, Olá tudo bem, Obrigado,
Bom fim de semana,
Chau, depois faremos contas,
Obrigado.

E essa vizinha que nunca me via,
que nunca sorria,
p’ra mim não sorrira nunca,
mudou deliberadamente nesse dia,
ou depois disso;

Olá como vai o senhor,
eu vou à mercearia senhor doutor,
quererá o vizinho alguma doçaria,
alguma azevia,
fruta, legumes, pão do dia,
não se acanhe, disponha
estou ao dispor.

Eu sem saber que pensar da magana,
que não tarda até p’lo nome me chama,
e a crer no que vejo, e sinto,
não demorará a meter-me na cama,
é o que pressinto,

pois sempre que me vê afivela o sorriso,
e eu aperto o cinto,
não quero ser apanhado de calças na mão,
ou ficar na mão dela,
tão sorridente e loquaz donzela.

É assim a vida,
feita toda ela de pequenos nadas,
de surpresas,
de cenas inesperadas,
de mulheres viúvas, solteiras, ou mal casadas,

sei quão sou bonito, mas haja contenção,
e respeito, estou no meu direito,
além disso estou comprometido,
não estou à venda,
nem sou um vendido.

Quanto ao meu padeiro,
o tal que parara à minha beira,
à minha porta, num Mercedes preto claro,
reluzente, metalizado, resplandecente, transparente,
nem era dele, era emprestado.

Mas fiz um figurão eu,
ou ele, ao trazer-me o pão naquele carrão
que à minha vizinha deitou abaixo o carão,
a minha vizinha tristinha,
a tal que agora se desfaz em salamaleques,
cortesias, simpatias, empatias,
e insiste em trazer-me da mercearia, queques,
talvez por temer ficar para tia,
sei lá o que pensa a vizinha Maria.

Quis dar-me o número do telefone,
no café, um destes dias,
Depois vizinha, depois,

(vá prá cona da sua tia vizinha Maria),

que eu agora tenho que ir às mercearias,
sabe, tenho a despensa vazia,
e estou com pressa pra ir ver as minhas tias,
a Josefina, a Paquita, a Marianita, a Bia…

Pois, sim, está bem, vá lá, depois …


Poema de Humberto Baião, Évora, 19 de Maio de 2018


quarta-feira, 16 de maio de 2018

ÉTICA VERDE, VEIO UM BURRO E COMEU-A ...


Fora aquela a última vez que me empolgara. Penso que no auditório da U.E. Lembro tê-lo ouvido com atenção de cão, o normal após dez anos de quem nunca soubera o que fazer da sorte que Deus lhe dera. O pessoal estava todo em pé, aplaudindo desde que ele entrara e até chegar ao palco onde já não subiram umas figuras misteriosas que o acompanhavam como moscas. Falou, falou, não disse nada de especial mas toda a gente gostou, e aplaudiu claro, eu também.

Seria a última vez que aplaudiria alguém, Guterres foi mesmo o último a quem bati palmas, depois da desilusão de o ver fugir da responsabilidade, depois de bater a asa deste pântano donde não nos quis salvar deixando-nos atolados. A merda que se seguiria só me deixou mais convicto da minha razão, o totó do Sampaio não teve artes nem manha para se bater com Durão, que lhe fez o ninho atrás da orelha, como fez ao parvalhão do Santana, a quem deixou com o alguidar e o bebé nas mãos, tal qual durante mais de dez anos fez a todos quantos lhe surgiram pela frente. Olhar de peixe morto, um sorriso e uma palmada nas costas e nunca o “porreiro pá” rendeu tanto como nessa áurea época, em que na Tv, nas cadeiras do poder, ocupadas por Santana e por Sócrates, estes se batiam com fé e devoção pelo futebol da nação e arrebatavam multidões como Fátima nunca vira.

Ganhava Sócrates claro, o outro até gaguejar gaguejava, Sócrates era expedito na resposta, sempre na ponta da língua, disparava respostas prontas e eloquentes, era bem-parecido e vestia Armani, marcava presença entre o mulherio, as moscas estavam atentas, temos homem, há que atirá-lo para a frente. Atirá-lo contra as feras, está encontrado o candidato ideal, o animal feroz, tratem das coisas, abram-lhe o caminho, estendam a passadeira, escolham a música, façam que o elejam, estamos servidos, temos homem, este tipo tem muito para nos dar, espremam-no, serve às mil maravilhas, tem todas as qualidades que nos interessam, tratem da coisa p’la calada, não queremos ouvir um zumbido, todos a trabalhar para o futuro. Agora batam a asa sem alarido e atenção, nunca estivemos aqui, nunca nos vimos, nem tão pouco nos conhecemos, deixai-o ir e é esperar, aguardar, ter paciência até ver o marfim escorrendo, estas coisas levam-se com calma, demoram o seu tempo, só resultam se pela calada, o bom é inimigo do óptimo, ele é vaidoso, irá pelo seu pé, nem precisará dum empurrão, já o temos onde o queremos.

Realmente, nem que tivessem andado com uma candeia. Por isso, quando com Sócrates a coisa se repetiu, a entrada triunfal, a música celestial, o cenário preparado, mantive-me calado, olhando, vendo, observando, e lá estavam as mesmas moscas, as mesmas figuras mexendo os cordelinhos, esperando o filãozinho, aguardando o engrossar do fiozinho, é sempre assim, começa tudo de mansinho, as pessoas primeiro, as pessoas não são números, depois, depois cifrãozinho a cifrãozinho é que os rapazes enchem o papinho, não somos muitos, nem somos assim tantos, isto dá para todos, não façam ondas, o povo é sereno, já o temos onde queremos, sempre tivemos, é agora ou nunca, é aproveitar agora que está a dar, Angola nunca foi nossa mas esta merda é, tudo pelo partido nada contra o partido, aproveita Zé.

Paris, por que não ? Faz-te à vida, o futuro é teu, o intelectual és tu, sim, com certeza, uma tese, claro um livro, a malta cá está, a malta comprará, pois a Lena, e a Fernanda, a Clementina, a Natividade, a Fatinha, sorri, sorri muito, aguenta-te quieto, não te mexas agora, não mandes a barraca abaixo, tanto que custou erguê-la, soubesses tu, meio mundo comprado, concelhias, distritais, provinciais, não nos desiludas agora rapaz. 

E o povo rendido, o povo, os concelhos, distritos, províncias inteiras e eu vendo-os, já não empolgado mas ainda interessado no espectáculo, vendo os bastidores, olhando os cenários, mirando os cordelinhos, desiludido, cada vez mais desiludido, e entretanto um monarca pisa também ele o risco, espezinha a ética, um filósofo imaginem, um poeta, de malinha na mão, recheada de dinheiro, recordei de novo as moscas, os moscões, os moscardos, sempre na sombra mas sempre pairando ou poisando sobre todos, vá lá, deixas um cheque e levas contado, igual valor, não perdes nada e ajudas o partido, quem não é por nós é contra nós, e ajudei, eu, o Francisco P e mais umas largas dezenas ou centenas de outros, quem se mete connosco leva já sabes, claro que sei.

Estará arquivada a minha culpa, no banco, um cheque assinado com a minha transgressão, nem sei por quê mas assinei, sim lavei dinheiro, ajudei o partido e o partido ergueu-se quando o país se afundou, mas não, não chegou, apesar disso o partido tem dívidas, milhões, ali é tudo aos milhões, é a nossa grandeza, de pequenez chegaram cinquenta anos, agora é tudo à grande, à grande e à francesa, e quem sair que feche a porta, o último que apague a luz, e eu arrependido.

Arrependido e desiludido, e as moscas as mesmas, a merda a mesma, o cenário, os bastidores, os cordelinhos, os senhores doutores, os louvores, os amores, as consciências, a falta delas, a ética, a desética, que será feito desse monarca que tão pouco tempo reinou ? Terá levado um rombo a sua ética ? Ou será que também ele concluiu, como a distinta Teresa Guilherme, que a ética nunca deu de comer a ninguém ? Será por isso que agora todos trazem a boca cheia dela ? Dela e de boas intenções mas o cálice, emborcá-lo, isso não, isso foi coisa de Sócrates…
“A Morte de Sócrates”, do pintor Jacques-Louis David, 1787