quinta-feira, 1 de novembro de 2018

541 - QUEM VEM LÁ ? VOLTA PARA MIM ...


Como dizer-te quanto te amei e amo, se os olhos se me embotam marejados de tristeza e me dói saber-te perdida, imaginar-te ali, levantar o olhar e deparar-me com esta nova e estranha solidão. Um insólito e inesperado desespero o destes dias, tornado mágoa para mim, pois para ti foi libertação, evasão de ti, do teu sofrer e deste meu egoísmo que te peava.

Miro as águas de uma qualquer poça e em todas elas pressinto teus olhos mirando-me, duas pérolas forçando o desejo e querendo abrir-me os caminhos sem fim que levarão a ti, pérolas reflectindo o olhar parado que fixei na hora da tua partida, os quais pressenti ansiosos por trilharem caminhos já não deste mundo mas outros caminhos, os caminhos do destino, da sina, da ausência.

Melhores dias virão, que se cumpram por agora as orações, e se cumpram as promessas feitas sobre desejos cismados, quais sonhos vogando ao luar e me deixaram o coração em sobressalto quando jurados. Egoísta eu, continuo como me sabias então, hesitante entre a tua libertação, a minha perda e avidez de te prender à vida, egoísmo cego, puro egoísmo, perdoa-me. Avareza não almejada cuja assumpção e arrependimento me remeteu a este pranto.

Renego essa indelicadeza fútil e egoísta, essa minha insegurança tornara-me lapa de ti, ostra mareando na corrente, palpitando de impaciência num mundo que se finou, se não cumpriu, um mundo girando todo ele à tua volta. Tudo posso ver nesses teus olhos se os olhar bem no fundo de cada poça reluzindo ao sol e que não piso, como se pressentisse ou temesse receber reflectido esse sorriso tão bem recordado que é o teu e me visse a mim em pesadelos, fugindo de ti e de quanto me tem custado esta inconcebível escuridão inesperadamente derramada, qual cruz fadando esta minha pobre vida.

Escondi este rosto olhando os destinos rodando em sentido contrário aos meus anseios. Miro-me nas montras sem o orgulho e o garbo que outrora eram os meus. Volta, vem dar-me novamente a mão, anseio ver-te de novo brincando, sentir-te o coração batendo, o peito arfando, então pedir-te-ei que sorrias, encostarei à tua a minha face, roçarei uma e outra vez nos teus os meus lábios sem olhar desconfiado as sombras que em silêncio te arrastaram para longe de mim e da vida que ambicionámos.

Arvora um sorriso e vem, para que de novo sejamos festa e a harmonia reine. Volta, para que esta minha solidão não seja condição, condenação, destino, determinismo, fado. Teus olhos têm fundo e dão vida, olha-me no rosto, percorre de novo com o indicador as linhas traçadas nesta mão, p’ra que eu rejubile e minh’alma não se esconda, para que o eco do depois nada tenha que ver com o antes, que seja outro tempo agora, e tu de novo com as faces como duas rosas, irradiando o inesquecível perfume que é o teu, e que de novo brilhes, bonita, linda, confiante.

Ergo as mãos ao alto, em prece, e creio, acredito em ti, vives, acredito em cada ilusão de ti, em cada miragem de ti, vivo como um eremita e sonho-te, vejo-te sorrir, pairar sobre este mundo e eu, qual pássaro de asas cortadas, de novo sem vergonha nem pudor ergo para ti os olhos porque para mim tu vives, tu revives, tu existes, tu és, eu é que não.

Não sinto, não vivo, mas anseio e não desistirei de voltar a ser gente se tu a meu lado.



terça-feira, 30 de outubro de 2018

540 - MEU AMIGO DURÃO by Maria Luísa Baião*…



           Logo que, vai para três ou quatro semanas atrás, cheguei de férias, procurei saber novas do meu amigo Durão. Não que outras situações não fossem para mim preocupantes, simplesmente o mundo hoje coloca-nos tanta complexidade em simultâneo que nos obriga a andar numa autêntica roda-viva. Isto quando não nos atira com enormes problemas para cima, que nos submergem completamente, e tão inacreditáveis que nos fazem perder a fé em tudo e todos. Ao Durão, bom rapaz, um pouco tímido até, aconteceu-lhe há pouco algo que não esperava, para o que não se encontrava preparado e que o deixou muito mal.

Não consegui chegar à fala com ele, mas informaram-me estar a aceitar menos mal o seu destino e a recompor-se do choque que essa brusca mudança na sua vida lhe provocou. Adiantaram-me estar confiante, gente próxima mo afirmou; “que o rumo que está a percorrer é o certo”, fiquei contente, assim ele saiba encontrar depressa o seu caminho, nada de mais sincero posso desejar-lhe.  Foi difícil encontrar alguém que dele me desse novas, todos parecem estar em férias, com nada se preocupando, outros não sabem nem querem saber do que quer que seja, o mal é uma pessoa ver-se numa situação daquelas para conhecer ingratidão e esquecimento.

Nesta busca de novas do meu amigo Durão contactei velhas amigas e amigos, falámos disto e daquilo, tendo ficado a saber, entre outras novidades, ter havido um ilustre académico, aliás ouvido por uma “ Comissão para a Reforma do Sistema Político”, que teve a lucidez de afirmar; “...ter de haver coragem para aumentar os políticos, de entre eles os deputados”. Estou plenamente de acordo, até porque em tempo de vacas magras, se os deputados não forem aumentados mais ninguém o é.

Eu iria até mais longe, seria mais ousada, indexaria ordenado mínimo e pensões de reforma ao vencimento dos deputados e, de cada vez que estes fossem aumentados, quer o ordenado mínimo quer as pensões subiriam automaticamente, não seria justo ?
 
Até por ser tudo uma questão de produtividade, questão para a qual parece só termos acordado agora, é que por este andar qualquer dia ninguém quer ir para deputado, trabalhar a valer. Vejamos, com as reformas que alcançam, as imunidades de que gozam, as incompatibilidades a que são obrigados, e tendo que viver quase exclusivamente do seu parco vencimento, quem quererá um dia trabalhar nestas condições? coitados dos políticos.

Se queremos o que não temos, eficiência, responsabilização, clarividência, produtividade, competência, se queremos melhor saúde, justiça, educação e fiscalidade, é limpinho que teremos que aumentar os deputados! já deveria até ter sido feito há bem vinte anos atrás, talvez os problemas de hoje não existissem! agora assim? assim não iremos lá, temos que pagar a quem trabalhe, e quem trabalhe decerto o merecerá!

Mais conversa para aqui e para ali, contra-ataquei a minha amiga; que o nosso mal está no modelo de desenvolvimento económico e social, que o país está sem rumo, sem estratégia, sem investimento estrangeiro! Sim, sim, respondeu-me ela, na verdade o país não tem controle, cada português que arranja um estratagema para melhorar a vidinha é logo alvo de invejas, é ver o caso dos portageiros da Brisa, dos gestores de falências no norte, da Moderna! não pode ser! Isto como está a ficar não deixa que ninguém se governe! lá está! os deputados têm que ser aumentados! por arrastamento o povinho terá a sua parte e prescindirá destes arranjinhos com que vai endireitando a vida! doutro modo não é possível ! temos que nos preparar! vem aí o alargamento a leste e o fim dos fundos comunitários, isto não pode governar-se só com a fuga e a fraude fiscais !

Bom, chega de conversa disse eu a dado ponto, folguei em saber o Durão mais arrebitado, andava muito tristonho. Vocês conhecem o Durão ? um moço na casa dos quarenta, técnico na edilidade, está em franca recuperação e ainda bem, é bom rapaz, dos meus tempos de escola, meu amigo e amigo dos meus.

Liguei de seguida a uma outra amiga que, malandreca, me atirou logo com esta; ouve lá ó cronista! porque foi que o governo anterior, nos seus piores momentos, não teve nunca sondagens tão baixas como este novo governo agora? Ao que eu respondi que;

- não sei querida!  já não percebo nada ! vou deixar de me meter em política !
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* Escrito por Maria Luísa Baião, domingo, ‎15‎ de ‎Setembro‎ de ‎2002, ‏‎pelas 19:57h e em homenagem a este seu amigo de infância e que sofrera um grave acidente.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

539 - UM OUTRO OLHAR, by Maria Luísa Baião*...


Passei um destes dias frente à Igreja de S. Vicente. Um panejão adejava levemente, a figura nele desenhada prendeu-me a atenção, uma perspectiva das arcadas da cidade, alongada propositada e verticalmente aproveitava o pano, lembrando os arcos da loggia superior de uma catedral, ou a sua nave, vista de viés. É certo que não passava de uma imagem trabalhada das arcadas da cidade, todavia, vistas sob um outro olhar.

Entrei, Évora era a personagem da história contada por Joaquim Carrapato, uma história contada pelo seu olhar de fotógrafo amador que aquela exposição credita como profissional. Ele que o não negue, a sua mestria no aproveitamento e uso da luz e da cor, dão-nos novas perspectivas da simultaneamente voluptuosa e indiferente passagem do tempo, parecendo sussurrar-nos os textos maravilhosos de Paulo Barriga, sobre Évora, e que tive oportunidade de apreciar num evento da Feira de S. João.

Este outro olhar de Joaquim Carrapato, as novas imagens por si encontradas dos velhos recantos e encantos do nosso burgo, todas elas de uma riqueza cromática inigualável, ali despidas da desatenção que quotidianamente atiramos aos pormenores, criam novas perspectivas que nos repovoam o imaginário, desconstruindo aparências, criando novas probabilidades como se de novos lugares se tratasse.
Carrapato não procura acasos, elegeu Évora para nela subverter o observado ali feito incógnita, dando novo corpo à nossa condição de voyeurs, através de nuances lumínicas novas, exteriorizando uma reflexão visual e intencional muito próprias e um sentido delirante do percepcionista calmo, malabarista no manuseio da objectiva, marcando a presença da intenção e da calma inerentes a quem comanda a mão que manuseia a máquina, oferecendo-nos um trabalho todo ele fruto de labor e da insistência de um autodidacta gentleman, roubado às horas livres do bancário cativante e simpático, todo ele e sempre um contínuo esforço ou jogo de paciências, empatia e delicadeza para connosco.

Fica mais que provado ser a fotografia o repositório da sua paixão, permitindo-nos descobrir nele uma apurada complexidade dos sentidos, redundando no encantamento transitivo de si para a imagem e para os supremos valores clássicos desta arte que por vezes aflora assomos místicos, fundindo temas, recriando novos e novas imagens pictóricas, testemunho da objectividade documental arrancada à objectiva.

Joaquim Carrapato é já um mestre nestes jogos com a luz, na graduação de cores tons e vislumbres que nos desestabilizam o sistema perceptivo para nos ciciar a intimidade do misticismo messiânico que o anima, oferecendo-nos novas e subtis metamorfoses dos mesmos lugares de sempre, através da sua criativa construção das imagens que tornam enigmático o espaço enquadrado.

Quem olhar aquela exposição não negará haver ali uma fúria de vencer a estética vigente, num esforço simultaneamente hierático e de erotismo, ao abominar a rotina, deixando descobrir uma forma muito pessoal de olhar para a cidade, descobrir-lhe a poesia e as sombras da noite.

Parabéns a Joaquim Carrapato, que, recriando memórias se vai aos poucos tornando o nosso Koda. Vá vê-lo, esta crónica saiu mais cedo para que tenha tempo para isso. A exposição está aberta até Domingo, 29 do corrente. Só ganhará com isso.


* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito num Domingo, ‎a 15‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006 e como homenagem a um amigo.           


domingo, 28 de outubro de 2018

538 - MEU TESOURO by Maria Luísa Baião * inédito


O pino do Verão não impediu que nuvens negras me toldassem horizontes. Valeu-me a esperança à minha alma agarrada, e o saber bebido em tantas fontes quantos os anos que carrego. Cheguei a ver-me só, perdida na terra do sol que me ilumina, me dá vida. Poeiras ameaçaram tornar-me também a mim pó, uma e outra vez, como em pó se tornara velha e querida amiga que uma vez me dissera, uma única vez; 

           - Vou ali 


mas não voltou...

Curti mágoas, bastantes águas correram por baixo de tantas pontes que não sei, que pensei jamais tornar a ver. A vida volvida uma ferida. Que Inverno este que para mim chegou tão cedo, tão cedo e tão frio. Gelou-me o coração sentir somente o seu bafio. Estio que se prolongou em mim ainda que amenizado p’los arautos da fiança. Os incêndios lavrando em montes e serras e eu noutra guerra. Vi santos, anjinhos, orei, ouvi sinos, chorei, toldei sonhos que tinha, desesperançada já de me devolverem vida minha.

Saudades sofri sem estar ausente, arfar o peito, pulsar a corrente de vida em mim, temente Deus quisesse que assim fosse. Poderia ter sido. E passei horas inteiras, sem ter olhos para chorar, numa cadeira prantada, sonhando passado e futuro e, para mim, ali sentada, não havia presente, dia, noite ou madrugada, o mundo do outro lado da janela. Um dia, outro dia, aurora após aurora, me lembro agora, de ampulheta virada uma, duas, dez, cinquenta vezes e eu doida, ausente. Alheia aos luares, subindo como que encosta após encosta sem achar o caminho ou o fim à minha dor.

Até que um dia, Deus seja louvado! Louvado seja ! Gritei eu. E nessa, e noutras noites, até hoje, já vi, vejo de novo as estrelas no Céu e foram elas, baixinho, num murmúrio, em surdina, que me prometeram ir viver uma outra vez.

Ó quanto cismei, se é que cismava, basta um minuto, a vida nunca é eterna, agora sei que o amei como não amava. E a vida foi-me sendo devolvida aos solavancos. Alegria chorada afrouxou de novo o ritmo das lágrimas derramadas deixando-me a alma descansada. Lentamente se esfumava essa trovoada de Verão que não quero lembrar, sofrer, chorar. Óh ! Como é belo de novo o luar ! Esquecer os ais, deixar de ver sobre a minha cabeça tais punhais.

Já vou de novo, de vez em quando rindo uma e outra vez.

Arrumei a cadeira dos meus prantos, o medo, as incertezas, desencantos, e já sonho de mãos juntas viver a vida outra vez, recomeçar, tê-lo de novo nos meus braços.

Olvidei quanto no meu peito me matava e, extenuada agradeci aos santos, agradeci-Lhe a Ele ter-me ouvido quando pensava que me não escutava. Revivi memórias que te contarei de novo, contar-te-ei escolhas que fiz, escolhas que fizeste, contarei aos outros quanto contas para mim. Não adormeço já cansada, nem os dias rompem em nevoentas madrugadas. Acordo repousada, irada com a vida mas não magoada. Quem não teve já noites parecidas, padecidas ? E eu, que vivera soluçantes os dias, ergo-me de novo exuberante e salto da cama contente. Quero esquecer essas noites, esses dias, poços sem fundo, abismos, noites de mãos soldadas, erguidas, suplicantes.

Não ouço já sinos repicando, finados. Sinto o ar lavado, o coração batendo ritmado. E vejo águas prateadas, no horizonte esperanças a que me agarro e pelas quais choro. Esperança e choro quebram-me o desgosto. Vivi silêncios inaudíveis, sofri até não ter olhos para chorar, sem perspectivas, a vida em sofrimento e o futuro, o futuro outro tormento.

Sofri saudades, sofri, sem estar ausente, arfou-me o peito, senti pulsar a corrente de vida em mim, minha, temente que Deus quisesse que tivesse sido assim. Não foi ! Filhos são mar de saudades, vida que nos agiganta. Mas a tristeza também mata e não só se o pranto solta. Noites escuras, horas surdas, coração batendo em descontrolo, a alma tão plena de amargura que nem a lua a desperta, a vida, via-a deserta.

Meu filho meu tesouro, no teu rosto a luz, o dia transformado em melodia p’rós sentidos, frescura p'ra minha alma. Obrigado vida que me deste tanto, voltou-me de novo toda a calma, submergiu-se o desgosto, galguei uma ponte ao ver de novo flores na tua alma, tornei a olhar as cores nos campos, e  ver de novo no arco-íris vida.

Graças a Deus conheço de novo a esperança e o seu encanto. 

NOTA DO BLOGUE: * Escrito terça-feira, ‎12‎ de ‎Setembro‎, ‏‎cerca das 10:00h por Maria Luísa Baião‎. No início do verão de ‎2006 o nosso único filho sofrera um grave acidente de mota em 24 de Julho de 2006, fora operado de urgência ao fígado que ficara desfeito com o embate, e fora muito dificil e demorada a recuperação desse acidente.



sexta-feira, 26 de outubro de 2018

537 - PEDISTE-ME POESIA, by Maria Luísa Baião*...


                        PEDISTE-ME POESIA

Pediste-me poesia, sem qualquer noção real do desafio não percebido que acabaras de lançar. Não perceberas afinal que te andara a enganar. Sempre adorei poesia, mas por favor entende lá que uma coisa é poesia, outra aquilo que eu fazia.

Não mais que enfeitar palavras, alinhá-las bem juntinhas, polvilhá-las redondinhas, pintá-las de fantasia. Quem vê nisto poesia? Tu talvez, porque acreditas inda haver coisas bonitas em que embalar ilusões e nem reparas que és tu, o embrulho de emoções em que reptícia me intrometo.

Prometo-te alegria, agradeces querendo mais, como quem se delicia com a quimera inventada, a utopia intuída mas que se afunda em abulia como galera perdida na sangria que é a vida.

Baixela de pechisbeque, diria para ser sincera, pois mais não julgo esta escrita que a teus olhos me enobrece. Quem me dera ser poeta, falta-me a arte, o engenho, contudo a ela me entrego, porque quero, porque gosto, me permite divagar, me dá gozo e asas de ouro para com empenho chegar ao que tu dizes gostar.        
                                                               
Também sonho, também almejo alcançar, voando nos céus do desejo o que a essência tem para dar. Se grande a ânsia, a impaciência, maior a agonia e a demência. A vida é tormento, náusea, estertor afã e agonia, fulmine-se a apatia, estoire-se com a anemia em que teimam controlar-nos e, em sôfrego ou vibrante arquejo, revoltemo-nos, impunhamos o desejo como bandeira adejante, vençamos de rompante a opressão ímpia e vegetal desta existência brutal vivida no dia-a-dia.

Nunca dês azo a livranças, letras, rendas e algemas, furta-te a tal tenaz, andanças e contradanças de quem te faz contumaz, sê ferrabrás desse algoz, qual sado carrasco atroz que os dias te põe a prazo. Candeia que vai à frente alumia duas vezes, não deixes escoar a vida como areia em ampulheta, faz finca-pé, não creias nessa tese, não engulas essa peta, renega essa chupeta.

Dou-me a mim mesma alforria, ergo cânticos, alegria, ávida de desassossego incito-me ao sobressalto, agito a perturbação, parto os cântaros, quebro os cânones mas excito-te o coração. É isso que esperas de mim, confundes com poesia a alma que eu abro assim. Poesia não é isto, poesia é uma espia de alma bem luzidia e de mais alta fasquia, o que lês, se comparada é atonia, nostalgia se o quiseres, de quem, c'a desculpa de afazeres, aspiraria ao que tu queres.

Não confundas estas palavras cruzadas com emoções bem profundas de inspirações mais letradas. Quem me dera ser capaz, quem me dera a Primavera e, como a hera, trepar severa às alturas e canduras daquelas a quem invejo venturas e a quem num bocejo imito. O que escrevo, não é poesia é um grito, grito que enfeito a meu jeito, a que dou forma e substância, plataforma para a distância a que me guindo atirá-lo. Não confundas, não me obrigues a passar pela vergonha de medonha imitadora de mente alva e criadora.

São momentos de prazer que daqui tiras ao ler, mas poesia? Isso era sim o que eu mais queria. Prometo-te alegria, se entendes ver mais que tal garanto-te que é simpatia e, se assim for agradeço. Só isto, nada mais peço, quem não gosta de jogar? Que é o que faço afinal. O que não posso dizer, disfarço bem ao escrever, tão bem que por vezes sucede veres escrito no papel, não o que eu penso, não o que eu digo, mas o que para ti sabe a mel.

O que tu gostas, no fundo, é do ar de Carnaval girando em redor dos textos, que nada tendo de profundo, te retiram por minutos do contexto deste mundo. São jogos de palavras, nada mais, são modos de te dizer ou perguntar como vais, são como jogos florais no florir das Primaveras, mas uma coisa podes crer, brincando brincando verdades te vou contando, porque as palavras são veras, porque as palavras são tudo e porque saem bem sentidas, quantas vezes doridas, prenhes e, de um sentimento que folgo atirar ao vento.

      * Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito na Segunda-feira, ‎dia 25‎ de ‎Outubro‎ de ‎2004, ‏‎pelas 15:13:56