quinta-feira, 18 de novembro de 2021

737 - MARIA DO ROSÁRIO, A POETISA PINTORA.

                    

                

 Não sou piegas, nem tão pouco um grunho insensível, tenho-me até descoberto no que de mais recôndito em mim existe já que dia após dia a poesia vem, comigo, ganhando maior adesão e significado. Não aprecio poesia por poesia, para ser franco detesto o rimar por rimar da poesia popular com que se enganam os tolos nos jogos florais, compreendo que saia mais barato e dê menos trabalho distribuir prémios que ensinar àquela gente os contornos da poética, cousa a que abro pequenas excepções, como ao poeta António Aleixo por exemplo.

 

Aprecio poesia inteligente, trabalhada, lavrada ou bordada, culta ou como queiram chamar-lhe, e já agora retiro o bordada não vá dar-se o caso de pensarem que a adoro adornada de enfeites e confetes, referi bordada do sentido de trabalhada, no entanto também admiro a poesia espontânea, evidentemente desde que rica de sentido e de conteúdo, substância, forma, corpo, o que a coloca longíssimo das quadras populares dos jogos florais que atrás referi.

 

É neste sentido que sou, e ao longo dos anos me tornei um admirador de Maria do Rosário Pedreira, MRP, a cuja poesia torno e retorno com uma cadência eivada por uma cada vez menor amplitude, pois se chapéus há muitos, e palermas, a poesia de MRP reveste-se porém de limites ilimitados, desculpai-me a contradição e redundância. Ainda que havendo muitos poetas, cada um assinala presença no mundo com a sua marca, o seu estilo, a sua época, ou geografia. Com a sua particular "literatura" MRP é única entre os únicos, “primo inter pares” ela surgiu-me como a poetisa da pintura, Maria do Rosário Pedreira escreve como quem pinta.

 

E pinta mesmo, pinta sensibilidades como quem pinta aguarelas, e do remanso de cada poema surge uma tela, que me sensibiliza até ao mais fundo de mim, até ao íntimo, cousa que eu mesmo desconhecia. O vento despenteando searas, os barcos aos gritos sobre as ondas, a agitação dos dedos fazendo crescer morangos, ou passeando-se insolentes nas sombras de um decote, cores vivas que a poetisa nada impunemente selecciona, grão a grão, pincelada a pincelada, abrindo ante nós paisagens imaginárias e deslumbrantes, sensuais pequenas histórias, as suas histórias, que bem podem ser as grandes histórias do mundo.  



Diz-nos MRP que o amor não cabe num poema, em nenhum poema, nem se enquadra em nenhuma geometria, nenhuma arquitectura, um poema pode ser, deve ser como uma explosão, como cratera em erupção, um trilho abandonado, saudade, farrapos de ausência, pulsão, convulsão, esperança, uma canção, redenção, um raio de sol pela manhã. Um poema é refúgio, repetição, memória, ressurreição, sendo a poesia como as coincidências que nos unem. Amamo-la, à poesia, ou por essas coincidências ou porque nos lembra despojos que o mar deixa de madrugada espalhados numa praia.

 

Maria do Rosário Pedreira, MRP, é exímia até no auto-retrato que nos deixa, um corpo numa tela, como um mapa onde tenhamos a prerrogativa de descobrir ilhas, paraísos, édens, o corpo exposto como um compêndio onde possamos passear os dedos devagar, tocando as linhas com que se cose a costa que nos abre os horizontes, ou as curtas linhas da mão, balizando sombras, conjecturas, sonhos, projectando as ondas que lhe balançam nos olhos. Os poemas de MRP são pedacinhos de vida flutuando na poeira dos dias e que facilmente confundimos com flores que o vento despiu, ou com estrelas escapadas das trevas, pingando luz, quais lágrimas de sol, alvas e puras penas de um anjo que perdeu as asas por amor.

 

Partida e desilusão vogam também neste seu peculiar e desvendado universo, pois a vida não é nada daquilo que sua mãe lhe dissera quando lhe começaram a crescer os seios. Parco amor e forte solidão depressa murcharam as rosas que lhe deram e por se ter deitado com mais homens que aqueles que amou, quando o que verdadeiramente amou nunca com ela acordou. Perdido o medo de morrer, desertas as ruas, fechadas as janelas, não quer ficar, não quer ver murchar as rosas prometidas pois ninguém virá fechar-lhe as pálpebras debaixo das quais os olhos descansarão como seixos numa praia que o mar nunca tocou...

 

Acicatar-vos o apetite é o meu fito, longe de mim sonegar-vos o prazer da leitura de MRP, só lendo poderemos extasiar-nos e deixar-nos embalar e conduzir por esta mulher que pinta versos, poemas, poesia, como quem nos desvenda e segreda o que lhe vai na alma em cada dia.

 

Boas leituras.



 Maria do Rosário Pedreira

terça-feira, 2 de novembro de 2021

736- LINGUAGEM E METALINGUAGEM ...



737 - "LINGUAGEM E METALINGUAGEM"

 

É pela linguagem que exprimimos o que pensamos,  que sentimos, sendo através dela que de igual modo recebemos as informações sobre nossas relações e o que ocorre no mundo em nosso redor. Podemos ora transmitir ora receber essas informações sobre a realidade de maneira objectiva, focando conceitos, aspectos científicos, teorias, dados concretos, e estados de alma específicos. Podemos também expor os nossos sentimentos, e o que quer que pensemos, através de pareceres permeados por emoções e impressões. Podemos ainda dar atenção à forma de falar, tendo como foco o impacto pretendido na comunicação que estabelecemos.

 

Para a filosofia "ikigai", a metalinguagem visa entender como nos expressamos e reforçamos o nosso comportamento através dela. Desta forma, é possível remodelar este modo de expressão, evitando o fortalecimento das crenças limitantes e promovendo uma estruturação de crenças positivas, ideias e, paradoxalmente, de preconceitos positivos. *  1980.

* Hofstadter, Douglas R.  An Eternal Golden Braid. New York, Vintage Books.

 


"E AGORA A PROPÓSITO DA LINGUAGEM"

Naturalmente sou um sujeito polido, membro civilizado da pólis, da civitas, capricho no trato urbano se calha dirigir-me a outros membros da urbe e também de modo muito natural e somente entre barreiras seguras, íntimas, me excedo ao expressar-me.

 

 Confesso mesmo que aí, seguro nesse casulo “privati” me excedo sem medo, crente que o cimento que une a argamassa, mental e muscular de que quer a linguagem quer um determinado momento são feitos, não passarão de um segredo ferozmente partilhado e nunca cantado aos quatro ventos em espaventos que de extraordinários nada tenham, antes pelo contrário.

 

Portanto, é uma linguagem mais espiritual que banal ou casual aquela que nesses momentos a inspiração me trará aos lábios, como que uma metalinguagem, propositadamente intimista porque o momento poderá não ser de recolhimento mas sê-lo-á certamente de oração, de devoção, de consagração e, havendo fé haverá que dar testemunho dela em especial se ela, a linguagem, a devoção, essa fé e consagração me são exigidos pelo instante vívido que se está vivendo ou atravessando.

 


Resulta dos factos que o seu uso, a sua fala, o recurso a essa terminologia mui própria e no momento exacto, torna a tarefa mais intimista, o ambiente mais leve e, já que estamos falando de leveza, eleva a relação através da espeficidade dessa mesmissíma linguagem e, quiçá dos seus elementos, dos falantes, engrandecendo o resultado final, qualquer que ele seja.

 

Cuidados extremos e atenção pressurosa à linguagem, poderão não nos engrandecer, mas certamente não nos deixarão cair numa frivolidade fútil, mantendo a dignidade que nunca deixámos ou deixaremos de cultivar com parcimónia.


Nessas ocasiões e quando eu despontava para a adolescência, minha avó Imelda, alheia e avessa aos aspectos práticos e semânticos da linguagem, optava por me prantar um escapulário preso à camisola, benzia-me e forçava-me a beber, de um trago e de olhos fechados, uma mistela horrenda cor de capilé e cujo mau cheiro nem a adição de licor de poejo dissipava.

 

Ainda hoje, calhando embriagar-me, acode-me às narinas essa pestilência e o vómito vem-me à goela. Felizmente não tenho esse hábito, contando-se pelos dedos as vezes que tal me sucedeu ao longo de uma vida de exemplar virtude. Vida dedicada ao estudo da linguagem, da semântica, da semiótica, da verdade, do saber, da fratrenidade, do amor e da felicidade.



domingo, 24 de outubro de 2021

ELIZABETH COTTEN, ETERNA VOZ DE MENINA


 

735 - ELIZABETH COTTEN, A ETERNA VOZ DE MENINA

 

Foi simplesmente pura casualidade ou mero acaso, ou isso ou um golpe sorte, mas como nada acontece por acaso fico devedor do Smithsonian,* devedor e grato, já que este preservou as músicas da minha surpreendente descoberta de hoje, um filão, uma velhinha com voz de menina e seu violão.

 

Gosto de música folk americana antiga, de blues, da sua história e dos seus intérpretes ou personagens, que por sua vez alimentaram a erudição ou inspiração d’outros grandes como Bob Dylan Cash, Willie Nelson, Dolly Parton, Kris Kristofferson, Brenda Lee, Patsy Cline e tantos outros e outras que me deliciaram, nos deliciaram. Foi numa dessas pesquisas casuais e aleatórias que dei com ela, com essa menina, perdão essa senhora com voz de menina mas de uma sensibilidade e inteligência raras, sobretudo naqueles tempos em que a raros era dada alguma oportunidade. 


Ouvi-a e depois de a ouvir quis conhecê-la, porque foi um fenómeno em vários aspectos, porque nunca se deixou arrastar por contrariedades, embora tenha vivido num tempo em que elas eram o pão nosso de cada dia. E quanto mais e melhor a conhecia mais a admirava e tanto a admirei que me vieram as lágrimas aos olhos por aquela menina que aprendeu a vida sozinha sem nada lhe ter pedido, nunca, mas a quem deu tudo sem que tal alguma vez lhe tivesse sido exigido.

 


Por sorte a primeira canção que ouvi foi a primeira que escreveu e musicou, aos 12 anos, Freight Train, trem de carga, comboio de carga, o tipo de comboio em que nos EUA os negros do sul fugiam da escravidão para os estados do norte, estados abolicionistas da escravatura, comboios que faziam parte rota da celebérrima Underground Railroad, rota de fuga usada pelos negros antes e depois da guerra da secessão (1850) e usada até aos princípios do século XX. Esse famoso tema, o seu tema de revelação "Freight Train", somente seria gravado em 1957, 50 anos depois de o ter composto, tinha então como dissera, 12 anos. 

 

https://www.youtube.com/watch?v=43-UUeCa6Jw


https://www.youtube.com/watch?v=X9nzFLKsNZk


Aos sete anos começou a tocar banjo e aos 11 já havia juntado algum dinheiro, com o qual comprou uma guitarra. Tornou-se muito boa a tocar esses instrumentos e escreveu 'Freight Train', depois de ver um comboio passar pertinho da sua casa na Rua Lourenço em Raleigh, Carolina do Norte. Mas o que surpreende é que uma criança tenha tido a sensibilidade de plasmar isso, esses factos e esses perigos na sua primeira e melhor canção de sempre, basta que olhemos o poema que dá corpo à canção e atentemos em especial nos versos sublinhados a negrito;

 

TREM DE CARGA

'Freight Train'


Trem de carga, trem de carga, corre tão rápido

Trem de carga, trem de carga, corre tão rápido


Por favor, não diga em qual trem eu estou

Eles não saberão por qual caminho eu fui

 

Quando eu morrer e na minha sepultura

E não almejar mais bons momentos aqui

Coloque as pedras na minha cabeça e nos meus pés

Diga a todos que eu fui dormir.

 

Quando eu morrer, senhor, enterre-me bem fundo

No caminho para a velha rua Chestnut

Então eu poderei ouvir a velha Number 9

Conforme ela vem rolando.

  


Elizabeth Cotten teria uns 10 anos quando Mark Twain faleceu, e não sei se chegou a ler as Aventuras de Tom Sawyer e as de Huckleberry Finn ou não. Num tempo em que poucos brancos saberiam ler e escrever é pouco provável que a menina que ela foi, negra ainda por cima, os tivesse lido. Talvez mais tarde o tivesse feito ou lhe tivessem lido essas duas obras que tão bem caracterizam a época em que viveu e as dificuldades que a mesma comportava e Twain tão bem retratou, ele que foi considerado o maior romancista americano de todos os tempos. 


Saber história por vezes só nos faz e traz infelicidade e eu vi o que a sua ligeira biografia não mostrou, uma biografia aligeirada em demasia. Não esqueçamos que os movimentos cívicos pelos direitos dos negros nos USA começaram por volta de 1950, já Elizabeth Cotten teria quase 60 anos e uma vida vivida, uma vida de submissão e sacrifício que contudo não lhe coarctou a lucidez de que já em menina dera provas.

 

Sim, estou a falar-vos de Elizabeth Cotten, nascida negra em 1893 no Estado da Carolina do Norte, grande produtor de algodão e numa zona do planeta e data histórica em que ser negro era ser menos que nada. A biografia de Elizabeth Cotten a que acedemos ou acedi na Net é omissa em muitos aspectos, e descontextualiza a cantautora da sua época, como que branqueia aqueles tempos, pelo menos esquece-os, olvida-os, ou esconde-os, com que intenção não percebi. Somente aos 60 anos começou a gravar e executar publicamente concertos, tendo sido descoberta pela família folk-singing de Charles Seeger enquanto trabalhava para eles como governanta. Quanto aos Seeger tratava-se duma linhagem de músicos então muito respeitadíssimos no círculo folk. 

      LIBBA o Filme – Após muitas e longas pausas ela voltou a pegar no violão para   gravar em filme o seu álbum de 1958. LIBBA foi baseado nas canções de Elizabeth (Libba) Cotten,  construindo com elas uma ponte abrangendo 40 anos da sua vida.


Autodidacta, Elisabette Cotten desenvolveu o seu próprio estilo original. Não sei se era canhota, mas tendo aprendido cedo e sozinha a tocar violão (tocava também banjo) por ser ainda pouco mais que uma criança só se ajeitou com ele do lado esquerdo, o que lhe deixava livre a mão direita para dedilhar mas colocava escala e cordas uma ao contrário do usual, outras de cabeça para baixo, logo obrigando-a a usar não o polegar para fazer vibrar estas mas sim os dedos mínimo, anelar e médio, estilo que ficou conhecido como a sua assinatura, e tornou-se conhecido como "Cotten picking".

 

Uma curiosidade o estilo que criou, um estilo, o seu estilo, aliás muito peculiar e que nos deixaria mais de 500 canções, das quais o Smithsonian nos preservou a memória das melhores e mais populares, tanto pela qualidade da letra quanto pela qualidade da música, torná-la-ia um fenómeno inesquecivel, imortal.

 

Foi ao observar a destreza instrumental de Cotten que o irmão mais velho de Peggy Seeger, Mike Seeger, ficou extremamente sensibilizado tendo-a levado imediatamente para um estúdio onde gravou o álbum que mudaria a sua vida: Folk Songs and Instrumentals with Guitar,1957. Elizabeth Cotten, só em 1970 largaria a vida de doméstica tornando-se atracção nos grandes festivais de folk até ao resto da sua vida e, já com quase 90 anos veio a ganhar um Grammy, tendo dito ao recebê-lo;

- Que pena não ter aqui o meu violão para vos oferecer uma musiquinha.  



Mas é preciso não esquecer e gritar que aquela menina que tudo sofreu e nada nos negou, que tudo nos deu, viveu no pior momento da história para a raça negra sem se deixar abater, tudo aprendeu à sua custa, e em boa hora o Smithsonian preservou a memória daquela que aos 94 anos e no fim da vida foi agraciada com o Grammy de "Melhor Gravação de étnicos ou tradicionais" com o seu álbum “Elizabeth Cotten Live” da etiqueta Arhoolie Records.

 

Durante muito do tempo da sua idade bem adulta continuou excursionando e lançando discos por bem mais de 20 anos. Em 1984 ganhou o Grammy e usando os lucros das suas turnês e do lançamentos de discos, assim como de numerosos prémios que lhe foram atribuídos pela contribuição para a arte popular, Elizabeth mudou-se com a filha e os netos, comprou uma casa em Syracuse, Nova York, onde anos mais tarde viria a falecer. Sem dúvida uma vida cheia, vida à qual foram beber os ensinamentos encerrados nas suas canções, que inclusivamente já foram gravadas e replicadas por Peter, Paul, e Mary, Jerry Garcia, Bob Dylan, Devendra Banhart, Matt Valentine, Laura Veirs , His Name Is Alive e Taj Mahal.

 

Resta dizer para terminar que esta mulher admirável foi escolhida em 1989, uma das 75 influente mulher Afro-americana tendo sido incluída no documentário fotográfico “ Dream a World.” Mais uma mulher admirável ... Cada vez são mais ...

 

Obrigado Elisabette, paz à sua alma.



BIOGRAFIA DE ELIZABETH COTTEN

 Background information

Birth name          Elizabeth Nevills

Born January 5, 1893

Carrboro, North Carolina, U.S.

Died June 29, 1987 (aged 94)

Syracuse, New York, U.S.

Genres      Folk, blues

Occupation(s)    Musician, singer-songwriter

Instruments        Guitar, banjo, vocals

Cortesia do Smithsonian Folkways Recordings

 

https://www.youtube.com/watch?v=7HG6JsG0OfU&list=OLAK5uy_njWqQLqN9T0U_H_f0xd1gTiDLS51ox0SI&index=25

  

* https://www.facebook.com/Smithsonian

 

 * https://www.si.edu/

 

* https://www.si.edu/museums

  

* https://naturalhistory.si.edu/visit/virtual-tour

  

* https://americanhistory.si.edu/

 

* https://americanart.si.edu/


* https://www.si.edu/museums/natural-history-museum

  

* https://folkways.si.edu/

 

 * https://music.si.edu/

  

* https://www.si.edu/unit/smithsonian-music

  

https://www.letras.com.br/elizabeth-cotten/biografia

 

** https://pt.wikipedia.org/wiki/Underground_Railroad

  

https://www.letras.com.br/elizabeth-cotten/biografia

  

https://open.spotify.com/artist/1eTZGzLkukATM7FoGltyFs


https://acousticguitar.com/remembering-folk-icon-elizabeth-cotten-and-her-distinctive-guitar-approach/

 


























sexta-feira, 15 de outubro de 2021

734 - NÃ T’ACHO, MAS ACABEI POR ACHAR …





735 - NÃ T’ACHO, NÃ T’ACHO, MAS ACABEI POR ACHAR …

 

Não te acho, não te acho, mas acabei por achar e admirar-me de quão cabeça no ar sou, ou palerma, ou pateta alegre, mas ia lá eu adivinhar ser ali a Casa Soure.

 Tantas dúvidas, tantas interrogações, e afinal entrava ali no mínimo duas vezes por ano, quando ia pagar a assinatura, e quando da publicação das convocatórias de uma instituição de que faço parte.

 Ali mesmo, nos baixos da Casa Soure eram escritórios de “A Defesa”, pegados à Papelaria Livraria Gráfica, falida há bem poucos meses.

 É o caos por esta cidade, está tudo a falir e a fechar, mas o caos é também oportunidade, para mudanças, alterações, bons negócios, renovações, restauros, criações, criatividade, criação, diz a bíblia que se fez Luz e do caos nasceu a vida. E assim foi ali, depois da morte do padre Salvador renasceu o edifício, de cara lavada, restaurado, pintado, caiado, adaptado a restaurante, ocupando toda a Casa Soure e os pátios, que deram óptimas esplanadas, com gente atenciosa e simpática, boa comida e melhor ambiente.

Foi o Big Bang da casa Soure.

Tinha aberto terça-feira, hoje é sexta, por isso lhe desculpei algumas falhas, como não terem Super Bock a minha preferida e uma cerveja que adoro, e tão nacional, tão nossa como a Sagres, que têm mas detesto, é muito áspera. Ou a falta de cerveja à pressão, coisas que só o facto de terem aberto há três dias desculpa pois por outro lado têm uma garrafeira com um portfólio invejável, vi decerto mais de duzentas marcas de vinhos, e só vi nacionais e alentejanos. Idem para as cervejas, marcas de toda a Europa e do mundo inda que incompreensivelmente falhem com a Super Bock e nos lixem com os finalmentes, não havia poejo, o meu digestivo de eleição e tipicamente alentejano.

Esqueçamos as falhas, nasceram há três dias, não admira, tenho a certeza que nem eles sabem onde ficam todos os interruptores da luz, e por falar em luz faça-se luz, que o ambiente era lindo, nem reconheci o pátio onde tantas vezes passei, agora cheio de mesas e arranjado, de mesas cheias de gentes. A mesa que mandara reservar estava linda, com uma rosa numa jarra, num canto discreto, sítio sossegado, sombra e frescura, bons queijos do Cachopas, bom peixe, boa carne, não gostei da conta, mas para ser franco é coisa de que nunca gosto.

 Bem localizado o Nã T’acho,  bem em frente à Pastelaria Académica onde eu adorava ir comer ou banquetear-me com os bolos do Seabra, pasteleiro por baixo da casa onde mora ou morava o Naia, ali ás portas de Moura, a três passinhos, e o Seabra que tantos e tão grandes e bons passos deu na vida já lá vão cinquenta anos.

  Bom pasteleiro, com a entrada na CEE abriu uma fábrica de bolos e uma pastelaria na rua de Alconchel, sucesso. Depois outra nas Coronheiras, sucesso, depois foi tirar direito p’ra não ficar estúpido, cinco anos de viagens e noites perdidas ou mal dormidas, mas sucesso. Mas de sucesso em sucesso o Seabra acabou apanhando Alzheimer ou Parkinson e hoje a esposa ampara-lhe a sombra com devoção e carinho.


                (A mesa que nos reservaram) 


Eu, cada vez que lembro o Seabra sinto um aperto no coração porque:

- Ambrósio e se alargares o cinto antes de rebentares ?

era a Fatinha a reinar comigo, mal sabendo que somou no meu cérebro 2+2, o Seabra este e o Seabra um outro que:

- Deixem-me aqui, deixem-me morrer, não quero viver assim !

 E não viveu, desapertou os dois cintos que lhe garroteavam as coxas para não se esvair em sangue antes da chegada do héli e esvaiu-se mesmo. Não queria viver só com o torso ou só meio homem, e não viveu, teve a coragem dos desesperados e mal nos descuidámos uns minutos aliviou os garrotes e deixou que a mina que pisara cumprisse o seu destino.

Já lá vão quase cinquenta anos e ainda choro a morte do Soares, o jovem mais timorato e corajoso que conheci. Lembrei-o hoje ao almoço e chorei, baixei a cabeça para não ser visto mas vieram-me as lágrimas aos olhos, a felicidade tem um preço, oh se tem, e hoje é dia de festa e felicidade, Deus cobrou-me o excesso e recordou-me também o Grou e o Teigão, que teriam exactamente a minha idade se não tivessem deixado a alma lá longe naquelas guerras de há quase cinquenta anos.

 Lembro-os exactamente como eram, ainda estão vivos na minha memória hoje como então.

 Brindámos depois dos doces conventuais, outra maravilha do Nã T’acho que em boa-hora achámos.

Daqui a uns tempos voltaremos, e esperamos que o chão de granito e a calçada do pátio estejam já livres daquela sujidade própria das obras e complete o belíssimo restauro e restaurante que ali temos. Parabéns aos corajosos invetidores, e a todos os colaboradores, é de gente assim que Évora precisa, com cabeça tronco e membros, e bom gosto. 



segunda-feira, 4 de outubro de 2021

733 - SOLSTÍCIOS .......... E EQUINÓCIOS * ............


734 - SOLSTÍCIOS E EQUINÓCIOS * 


O combinado era não haver despedidas e, fossem elas pequenas ou grandes, voltasse eu no dia seguinte, semana, mês, ou ano, as despedidas deveriam ser como se o meu voltar tivesse lugar ainda nessa mesma tarde.

E assim era, ou assim foi durante muito tempo, não sem que, ao princípio somente uma vez por outra e antes de alcançar o passadiço eu conseguisse evitar um último olhar e gritar-lhe:

- Hei miúda ! Isto não é maneira de dizer adeus !

Era assim antes de pisar o convés, ou de entrar no comboio, metro, autocarro ou toda e quaisquer que fosse a coisa que me levasse dali, me levasse para longe dela, nos separasse.

Ou eu ou ela, dependendo de quem partisse ou ficasse, o combinado era o combinado. O não dar azo a despedidas evitava uma despedida maior, maiores dores, choro ou choque emocional que só a paulatina assumpção da realidade se encarregaria de esbater.

As dores das despedidas eram compensadas pelas alegrias das chegadas, das vindas, saber dumas antecipadamente minorava as dores de outras ou lhes triplicava as alegrias.

Ir e vir, ir e voltar tornara-se hábito assim driblado, até um dia vir para ficar, sim, voltei e fiquei, ficámos, por largos tempos.

Mas uma outra despedida houve que nos levou anos, a última e, embora nunca o combinado tivesse sido esquecido ambos fizemos por jamais o lembrar e, esquecer partidas e despedidas ocupou-nos permanentemente a ideia delas empurrando-nos para uma dedicação dedicada, apaixonada, para uma entrega inusual por talvez excessiva, talvez derradeira, pioneira para nós escoteiros um do outro e sempre juntos, quer na fortuna quer no infortúnio.

Desta vez não consigo despedir-me, tenho agora mais razões que nunca para te gritar.

- Hey, That's No Way to Say Goodbye !  **

- Ei miúda ! Isso não é maneira de dizer adeus !


- Ei miúda ! Isso não foi maneira de dizer adeus !

É permanente o meu protesto, sobe de tom à medida que se instala o dezasseis de Outubro, data marcada a ferro em brasa no meu cérebro e que por esta altura do ano vira chaga purulenta atormentando-me minuto a minuto. Nem a consigo debelar e muito menos curar de vez pois pelo que tu não vês mas eu percepciono, olho e na minha frente vejo somente um deserto árido, a visão toldando-se-me como se mergulhado numa tempestade de areia e isso é tudo quanto vejo e sinto, areia nos olhos, areias movediças roubando-me o chão debaixo dos pés.

Mas, quando tu aqui tudo eram certezas, rocha sólida, os dias claros, claros como a água mais pura, cristalina, como cristalinos eram os teus olhos, o teu olhar, porque o meu agora nada, o horizonte nada, uma linha recta e plana como quando os televisores antigos se avariavam ou no hospital, na maquineta à tua cabeceira da qual não fui capaz de desviar o olhar, ela surda muda, calada, uma linha plana movendo-se sem fim tal qual a linha ténue deste caderno sobre a qual alinhavo sentimentos dispares, emoções aleatórias, incontroláveis, irreprimíveis, terríveis.

Só me apetece gritar-te:

Ei miúda ! Isso não foi maneira de dizer adeus.

 

Não foi não, essa não valeu, hei-de contestar-te a vida inteira, isso não são modos nem maneiras e, por muito que eu queira perdoar-te, como fazê-lo se nem sei como amar-te agora que te foste embora para não mais voltar e eu aqui lembrando-te, quando lembrar é o verbo que mais me custa conjugar e esquecer não ouso, nem consigo, perdido que estou nesta tempestade que me açoita e cega, a vida uma cega-rega em que a falta de vontade tomou lugar, forma e conteúdo, urdindo um desânimo bem-vindo sob o qual me escondo e me desculpo de culpas que nem sei.

E sem saber a quem culpar culpo os astros e a astronomia, o Solstício de verão, por ser sempre desde ele até à tua efeméride que, quer os dias quer as noites mais me fustigam e, tal como os marinheiros de antanho, me sinto atirado de um lado para outro por vagas alterosas ora soterrando-me de areia ora enterrando-me nela, ora a sentindo abrasando-me as faces ora faltando-me debaixo dos pés e eu, balançando como apanhado num furacão, aspirando ao improvável impossível, ao dias em que te erguias forte e direita como um vulcão e, dando-me a mão, me imprimias segurança, certezas certas, uma vida e um mundo sem declinações, nem solstícios nem equinócios, apenas certezas infalíveis até nas horas mortas.

E agora tu um relógio de pêndulo, parado, o mundo parado, o tempo parado, a vida parada, como se tudo aguardasse a tua ressurreição e o Equinócio da Primavera para que os mecanismos do universo entrassem de novo na ordem, em funcionamento, idem para os astros, idem para mim que me quedo apático, eu sim, eu por norma tão simpático e agora uma chávena do mais azedo veneno, já sei, é fazer tal qual Sócrates com a cicuta, bebê-la vagarosamente e aguardar que a vida deixe de me ser um fardo, se estabilize, se defina, qual linha recta e plana, sem bip bip que a escravize, sem o sobressalto que a garante, finalmente plana, finalmente em paz, finalmente uma recta plana, deitada, soterrada, enterrada, 

eu. 


 

* https://mentcapto.blogspot.com/2018/10/535-uma-mui-querida-estrela-nasceu.html

** https://www.youtube.com/watch?v=BzgUs3c9QHY