sexta-feira, 30 de agosto de 2024

818 - TELHEIRO - "O ROUBO DO SANTO" …

         

 

Ontem, foi mesmo já noitinha que fui atraído ao Telheiro, uma aldeia pitoresca no sopé do monte que Monsaraz ocupa. Uma caminhada nocturna prometida e publicitada pela CMRM inserida nas festas anuais do Telheiro convenceu-me, até por ter afinidades com essa aldeia há mais de sessenta anos.

 

Dez da noite e aqui estou eu, apresentei-me, com o meu habitual e colorido bordão, calção claro, ténis à maneira, o vistoso camisolão azulão dos não menos vistosos, famosos e omnipresentes Caminheiros de Monsaraz, tal qual me podem ver numa das fotos, encostado à direita dela e um pouco desfocado. Essa caminhada nocturna representou para mim mais que o episódio do “roubo do santo”, tradição curiosa cujos link podem consultar no fim deste texto.

 

Tinha-vos prometido ontem ainda dizer-vos alguma coisa mais sobre essa caminhada / procissão, tinha prometido que vos contaria como, mais que a procissão/caminhada, o lugar, a ermida de S. Sebastião me sensibilizou.

 

Sendo eu natural de Monsaraz já conhecia o lugar, junto dessa ermida a minha avó Inácia Ferrador, e meu avô Palma naturalmente, criaram os mais de treze filhos e filhas que deram a este mundo, minha mãe, tias e tios, muitos deles e delas tendo partido dali somente para casar.

 

Não conheci a ermida por esses tempos, viria a conhecê-la muito mais tarde, teria eu quatro e tal ou cinco anos. As mulheres tinham descido a chapada até ao Roxo, umas para caiar a ermida, outras p’ra lavar e estender os lençóis a corar sobre a erva depois de lavados, enquanto a gaiatagem, eu e outros que já nem recordo, deambulávamos por ali e tudo nos servindo de entretém. 

 


Era comum nesses tempos avistarem-se lá em baixo no roxo, lavadeiras e roupa estendida corando sobre as flores que atapetavam os campos em redor, a ermida ficava a poucas dezenas de metros, uma centena talvez. A partir daí, nós putos, como lebres galgávamos a distância até à estrada nova, novinha, que se estava fazendo do Telheiro a Reguengos e quedávamo-nos embasbacados olhando a imagem que o futurismo gravava nas nossas mentes.

 

Cintilando num emblema dourado e estampado na lateral do cilindro verde que espalmava a estrada preta, uma inscrição a vermelho vivo que alguém nos disse ser "Coolfield Road Roller", gravado no flanco desse monstro, um cilindro bufando e gemendo sempre que lograva mexer-se, e que depois, enquanto as obras duraram passámos a contemplar do alto da vila, dia a dia, vendo a estrada crescendo e estendendo-se em linha recta e a perder de vista.

 


Deveríamos andar por 1969 ou 1970, lembro-me porque nesse ano de festas deixei de ver a estreia de Easy Rider, um filme famoso, com Peter Fonda e Dennis Hopper contando a história de dois motards (eu já era então um pequeno motard) percorrendo o sul e sudoeste dos EUA em busca da liberdade pessoal, pois nesse sábado toda a família estava já embarcada em Monsaraz e me esperava a todo o momento. 


Era o tempo da semana inglesa e eu trabalhara até à uma da tarde, depois enfiara-me na carreira até terras d’el-rei, dali em diante à boleia com um padre, num velho Ford que não passava dos setenta e me deixou quase a uma légua do Telheiro. O padre, curioso, indagou que fazia eu ali especado à boleia e, quando lhe disse que ia para a tourada em Monsaraz soltou um grotesco;


- Paganismo !


pelo que aprendi nesse dia uma palavra nova. Talvez que, se lhe tivesse dito ir para a procissão do Senhor dos Passos, no Domingo, me tivesse louvado e levado até lá mesmo acima… Devia ter amigos e petisco à espera dele no Bizaca pois cortou por uma estrada de terra em direcção à Barrada. 


Não me atrapalhei, meti a direito, passei ao lado da ermida de S. Sebastião (desde essa recuada data que nem perto dela estivera), subi a chapada, a três quartos dela comecei a ouvir a orquestra da artística animando a festa e, a cada pasodoble eu enchia-me de coragem e acelerava o passo, percebendo já a arena numa maré cheia e a entrada de quaisquer touros na corrida. 


Quando finalmente na vila ouvi a banda apelando à morte do touro na arena, já nem a coisa me impressionou, estava estourado, tinha as pernas cansadas mas um rasgado sorriso na cara. Tal qual ontem à noite quando o assalto à ermida acabou e já estava toda a gente no terreiro detrás da escola primária do Telheiro, o santo roubado metido a recato e o pessoal da trupe desmobilizando, dispersando, como na tropa.

  

A aldeia do Telheiro não me foi nunca desconhecida ou mero local de passagem, ali viveu o meu tio Tonhico Ferrador, inda ontem passei frente à casa que fora dele, com um alto e comprido portado à frente e de onde tantas vezes parti pra o Outeiro, sozinho ou com o Tio Domingos Papa-Agulhas, que se amancebara com a minha querida tia Aia. Era com eles que eu passava sempre uma, duas ou três semanas de férias no pino do verão.

 

Cresci muito nesses anos e nessas férias passadas em família, quer no Outeiro quer em Monsaraz, e em que o fogo-de-artifício estoirava mais forte que em qualquer outra vila ou aldeia em redor (incluindo a do Telheiro), festas em que num baile do varandil conheci a “Gafanhota”, a minha primeira paixão e que havia de suscitar em mim p’la vida fora mais interrogações que paixões.


Igualmente me foi turbulenta a eclosão da barba e a adolescência, prenhe de dúvidas, parca de certezas. Curou-me a légua a que distava dali a ribeira da Guadiana, a rapaziada amiga que em cada verão me acompanhava nas brincadeiras e esqueci (desculpai-me, eu era demasiado novo e o tempo de férias não ultrapassava duas ou três semanas), a caça com fisga ou armadilhas, os ninhos, o cansaço desses percursos tantas vezes palmilhados, mas também esses novos horizontes tão mas tão diferentes da cidade, a liberdade de movimentos e os mimos da tia Aia ou da avó Inácia.

 


Lembro ainda o Telheiro, eu com uns quatro anitos, num dia em que com a tia Fina e a tia Bia fui esperar a camioneta da carreira em que a mãezinha, muito branca, chegou vinda da operação ao coração, em Coimbra, sim mãezinha tive saudades, e medo, sim mãezinha eras linda como até hoje não vi, e de ti recordo-me, não me recordo é de um fim de festa como o de ontem, em que nem uma prece, uma oração, uma historieta, um discurso, uma explicação.

 

O cortejo, a multidão, a procissão/caminhada terminou como começara, como uma lagarta nas couves, sorrateiramente, e assim eu próprio fiz, meti-me no carro e dei-lhe gás e festa, um CD a preceito, o volume em alta, nem dei por ter chegado a Évora.

 


 https://caminharmonsaraz.blogspot.com/p/setembro-e-as-nossas-tradicionais.html


https://www.cm-reguengos-monsaraz.pt/locais/ermida-de-sao-sebastiao/


quinta-feira, 22 de agosto de 2024

817 - É A BANCARROTA, E AGORA ESTÚPIDO ??


 No que à leitura concerne o público está cada vez mais difícil de alcançar, de “tocar”, de impressionar ou sensibilizar, cada vez mais heterogéneo, mais desinteressado de tudo, por muito que o tentemos com textos lúdicos, pragmáticos ou com ecos do que se julga ser do seu interesse.

 Debalde, nada o cativa, nada o interessa e, em relação a públicos mais novos pode mesmo garantir-se ou falar-se em desastre, tal o alheamento que a tudo votam com devoção e manifesta fé.

 Não estou certo do que o que digo ou escrevo tenha o menor interesse para quem quer que seja, no entanto as milhares de presenças que o contador do blogue regista, apesar de tudo, fazem com que não desista e me pareça continuar a valer a pena. Continuo crente de que o mundo está um caos, e caberá a todos nós, em maior ou menor grau, mesmo em volume modesto, tal qual aos pintores, aos poetas, aos músicos, and so on…  Cabe-nos, no fundo, recriar a esperança.

 

Não recriar o mundo mas embelezá-lo, melhorá-lo, explicá-lo, ainda que parcialmente, evitar a queda no abismo do incompreensível ou do desespero de que necessitamos depurar-nos, numa recusa da catástrofe anunciada em que mergulha o planeta, o continente, a península, o país, a cidade, hoje meros elementos geográficos transformados num caos desordenado (se é que o caos tem uma ordem), num abismo que ameaça destruir  a civilização, a civitas, a cultura, a pólis e cuja origem hoje já ninguém lembra nem a filosofia ou os mídia explicam.

 Escrever é uma tentativa de fazer frente ao caos, de o travar, moderar, modelar, pois o caos é uma sinistra avalanche esvaziada de ideias, de ideais, prenhe de clichés   e gadgets sem sentido com que há anos nos bombardeiam, os quais necessitamos recusar sob pena de soçobrarmos. Ante a sua enxurrada, importa agir antes do desastre.

 Precisamos de anular o supérfluo, o inútil, o prejudicial, precisamos portanto de lutar contra os refrões mais modernos mais contemporâneos, os quais juntamente com a deliquescência em que nos deixámos embalar, na qual mergulhámos e em cujos meandros desta civilização do excesso sem nexo, sem espírito, sem coesão, sem solidariedade e sem qualquer móbil para além do consumo desenfreado em simultâneo nos perdemos. 

Toda esta arenga porque como é sabido Évora está falida, cinquenta anos de uma "belíssima gestão" por sua vez igualmente subordinada a uma ideologia das melhores que o mundo conhece, e sempre sem a menor oposição, foi no que deu... Nem daqui a outros cinquenta anos Évora voltará a estar de pé...

 Como é igualmente sabido a cidade arrasta há anos uma divida astronómica que a obrigou a taxar os munícipes p’las tabelas máximas no que concerne a derramas, taxas e taxinhas, licenças e etc etc etc … o que tem desmotivado os investimentos na cidade e continuará, doravante e por certo de modo ainda mais grave, não só a desmotivar mas a dificultar o tal investimento que seria de há muitos anos para cá como pão para a boca.

 Tal nunca aconteceu e o Zé tem vindo a pagar esses erros carissimos e continuará a pagar.... É enorme o buraco em que Portugal e a cidade de Évora estão metidos, mas nada disto é novidade, quer o país quer a cidade vão continuar a escorregar num plano inclinado no minimo durante os próximos cinquenta anos, e isto independentemente de quem governe, pois como sabemos deitar algo abaixo é fácil mas erguer o que quer que seja é outra história, canta outro galo... Boa sorte e coragem, vai ser precisa muita coragem para governantes e governados....

 

A questão do investimento foi em Évora sempre crucial mas sempre descurada. Acabámos falidos. Acordamos sempre demasiado tarde para o que é importante. Movimentos de cidadãos, movimentos que aplaudo e apoio, deviam há muitos anos ter podido concorrer a par dos partidos. Orgulho-me do facto do meu partido, o ADN, prever no seu programa que cidadãos e seus movimentos possam concorrer a todos os cargos elegíveis nesta democracia. A democracia não só é para os cidadãos como é feita para eles e com eles. Assim devia ser.

 Costumamos dizer por cá que “agora são sopas depois de almoço”, e se não são estamos perto de tal desiderato. Dos partidos sabe-se o que esperar, a esperança assenta nesta nova forma de democracia, grupos de cidadãos de mangas arregaçadas, temo porém que seja tarde, quanto mais tarde mais dificil será gerir a crise e a urbe. Estamos a ver que sim, a cada dia que passa as noticias, e a situação, apresentam maior dificuldade, já não se pode escamotear, nem esconder, e muito menos negar essa terrivel verdade.

E depois há, ou melhor, no caso de Évora houve durante décadas o desperdício do nobre princípio da subsidiariedade, cujos dinheiros não aproveitaram a quem os doou, nem a nós. O princípio da subsidiariedade mais não é que a garantia financeira da autonomia do poder local, e traduz-se na atribuição dos poderes financeiros da Administração Central através do Orçamento do Estado, transferindo anualmente recursos para os municípios, numa lógica “dos que podem para os que precisam” As autarquias locais apesar de serem autónomas são afectadas p’las opções do estado que nelas descarrega funções, sociais, educativas e muitas outras. Para compensar o mesmo estado promove desde que a CRP foi elaborada e entrou em funcionamento, por meio do cumprimento desse preceito constitucional, uma justa repartição dos recursos, para que os concelhos mais pobres, sem empresas, sem meios, sem ter como nem onde obter receitas, possam fazer face às necessidades e ganhem a possibilidade de abandonar a pobreza e prover ao seu desenvolvimento. **

Nesse espirito solidário não somente é feita uma sangria aos impostos dos concelhos mais ricos em favor dos mais pobres, através das transferências do Orçamento de Estado, como ao longo destes quarenta anos o processo tem evoluído, por isso hoje são permitidos aos municípios prover o aumento do número dos impostos locais, socorrer-se de mecanismos de perequação financeira, sendo-lhes inclusive permitida uma maior autonomia tributária de molde a aproximar a cobrança da receita à realização da despesa, por um lado, e tanto quanto possível respeitar os direitos dos contribuintes, um equilíbrio muito difícil de conseguir na prática.

 Tem sido muito difícil conseguir uma eficiência minimamente razoável nas decisões políticas quanto à realização da despesa local, desequilíbrio que vulgarmente é constatado pela observação do aumento do número e volume de impostos sobre os munícipes cuja cobrança está atribuída aos municípios. O inverso, o alívio fiscal com origem nos municípios raramente é observado.

 

Temos que ter em conta que em Évora o poder local conta há mais de quarenta anos com a atribuição de uma parcela significativa de receitas retiradas aos outros municípios através do FEF (Fundo de Estabilização Financeira) e de outras comparticipações, mecanismos e subsídios do Estado (59% da receita da CME em 2021, mais de metade da receita, virá de transferências do orçamento...) * bem como do recurso ao crédito, medida esta da qual tem abusado, pois como é sabido o Município de Évora foi declarado em 2013 num completo e complexo “desequilíbrio financeiro estrutural” e veio a acabar falido nos dias de hoje como é do conhecimento de toda a gente.

 Esta gravíssima gravidade da insolvência vai obrigar a que durante mais 4 ou 5 décadas a C. M. E. não tenha, novamente, acesso a crédito, nem disponha de verbas para investimentos, irá de novo ser proibida de efectuar um rol de despesas e vai ter que manter em alta a amplitude de taxas taxinhas, impostos e derramas que recaem sobre cidadãos e empresas, o que significa que os eborenses pagaram e continuarão a pagar tudo pelo escalão máximo porque a gestão municipal foi ao longo de décadas ineficiente e incompetente.

 A lei da autonomia financeira dos município prevê da parte destes a capacidade de elaborar, aprovar orçamentos correctos, avaliar discutir, modificar e votar as opções do plano e de outros documentos previsionais, elaborar e aprovar os documentos de prestação de contas que por lei lhes sejam destinados, ordenar e processar as despesas legalmente autorizadas mas, sobretudo gerir com eficiência os recursos colocados à sua disposição, capital, pessoal e equipamentos, nunca esquecendo que esses recursos saíram do lombo de cidadãos contribuintes doutros concelhos e claro, também do nosso, do de Évora.

 Ora o que tem sido observado é que apesar de ter sido despejado tanto dinheiro em Évora, é igualmente verdade que os resultados pretendidos não foram alcançados. Os município sempre apresentou fraca capacidade de gerar receitas próprias, o que significa que apesar dos rios de dinheiro em cima dele despejados foi incapaz de sair da pobreza, foi incapaz de prover ao seu próprio desenvolvimento, gerando um desperdício de esforços e de dinheiro. Parece até que, quanto mais dinheiro lhe é colocado à disposição, menos a CME se esforça por o fazer render ou por o gerir com eficácia e eficiência, com proveito.

 

 Numa palavra, o município de Évora, como aliás tantos outros por esse Alentejo e país fora, são incompetentes, e são-no há décadas. Os números estão à vista e falam por si, não sou eu que o digo.

 Évora não tem buracos, não tem é dinheiro para os tapar, porém, e para compensar, tornou-se ela mesma um enorme buracão.

 

A meu propósito, ou a meu favor, relembro Gilles Deleuze em “Anti-Édipo”, 1972, * «Os escritores são todos uns vendidos. A única literatura é aquela que coloca dinamite dentro da sua própria embalagem.» Ou seja, resta-me apelar ao inconformismo perante a passividade vigente que tem anestesiado e continua atrofiando o ser humano, o homem, o cidadão perante uma culpa que é de todos e simultaneamente não é de ninguém, como diria José Mário Branco.

                                 


 

*Palavras proferidas no rescaldo de Maio de 68 na Universidade de Vincennes. A Universidade de Paris-VIII, era anteriormente conhecida p’lo nome de "Universidade de Vincennes" e depois de deslocalizada, ou seja ainda agora, sob o nome de "Universidade de Paris 8 Vincennes-Saint-Denis" (em francês: Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis) É uma instituição de ensino superior pública com campus em Saint-Denis, Montreuil e Tremblay-en-France. Fundada oficialmente em 1971, no pós Maio de 68. A deslocalização ocorreu afim de roubar protagonismo ao movimento nascido em Maio de 68. Possuía 22.000 e 900 docentes em 2019.

 

** Lei 1 / 79 de 2 de Janeiro

     Dec lei 77 / 84 de 8 de Março

     Lei 1 / 87 de 6 de Janeiro

     Dec lei 384 / 87 de 24 de Dezembro

     Dec lei 363 / 88 de 14 de Outubro

 

E muitas outras leis emanadas de cada vez que à autarquia são atribuídas novas competências e responsabilidades, bem como leis criando instituições de apoio e controle (?) como a CCDRA e outras, ou simples delegações de ministérios, Economia, Finanças, etc etc etc A verdade é que durante tantos anos, com tanta lei, tanta gente envolvida e tanto controle, ninguém viu nada, a CME simplesmente deu o berro, pela surdina….

 

 É A BANCARROTA PALERMA, E AGORA ???????


  https://mentcapto.blogspot.com/2021/03/676-os-mui-grandes-buracos-de-evora.html


 https://mentcapto.blogspot.com/2021/06/716-despesa-boa-ou-despesa-ma.html

 

terça-feira, 20 de agosto de 2024

816 - PARTIDA

 


Não que eu andasse distraído, nunca andei, porém fui apanhado de surpresa. Não era costume, nunca fora teu hábito apanhares aquele autocarro por isso foi como se num momento ali estivesses e no minuto seguinte te tivesses esfumado, evaporado, desaparecido.

 

Foi isso, esfumado, escoado entre os meus dedos como a água, a areia, uma miragem e hoje, somente uma lembrança que cuido com carinho para que se não torne vaga, para que também ela se não evapore, não se suma entre estes dedos engalfinhando-me a memória, incapazes de suster a cor do autocarro, o número da carreira, a hora e a paragem em que foi como se tivesse sido apanhado a dormir na forma e… Ops !!!!

 


Num minuto estavas ali, mas no momento seguinte desapareceras para todo o sempre eu aqui, de bola de cristal numa mão e um baralho de cartas na outra tentando adivinhar-te os passos, o rumo, o destino, procurando-te denodada e desesperadamente como no filme «Procurando Susana», mas, debalde, os meus esforços nem conseguem o mínimo dos mínimos e nem um GPS á mão para te seguir as últimas voltas e voltinhas e, eventual e surpreendentemente encontrar-te.

 

Já não sei em que paragem disseras não sei o quê, nem lembro sequer onde estávamos que, nem passados alguns dias tais recordações lograram tomar forma apesar de me martelarem constantemente a cabeça, abri-la à evidência mau grado a constância e para além dela, a persistência com que a tua ausência, teimosamente primando pela clareza me obstruía a mente, o pensamento, toldando-me a visão.

 


A tua vida tornara-se um corrupio de expectativas goradas, de chegadas e partidas adiadas, por isso te perdi, distraído por esse remoinho de inconstâncias, de fés consumidas, de esperanças destroçadas e, …

 

Por isso agora entro intempestivamente em cada autocarro que passa, em cada eléctrico, em cada comboio, perscrutando todos os lugares vagos onde te possa encontrar como se me tivesse imbuído duma missão compulsivamente abraçada, como se de devoção celestialmente assumida se tratasse mas que todavia não consigo cumprir e, à qual, contudo não imagino furtar-me.

 


E só já penso e desejo preencher este vazio, preencher cada lugar vago em cada autocarro, eléctrico ou comboio, tudo menos este vazio que me consome, esta procura inútil, esta esperança traída, despedaçada, e esta devoção sem fé que a alimenta, por isso teimosamente persigo cada paragem, cada horário, cada carreira, cada autocarro, metro ou comboio numa vã esperança de ver ocupado um, ao menos um desses lugares vagos em cada um deles e na minha memória, na minha vida.

 

Eras o verbo, eras a luz, eras a vida, eras o rumo e transparência do meu caminho, eras azimute, eras cor, eras o azul do céu, o voo das aves, a liberdade, eras a linha do horizonte sem fim, o ritmo da minha marcha, a leveza do meu passo, o caminho de Santiago, uma rota, uma pauta, o giz do meu trapézio, a vara cujo equilíbrio me estabilizava o presente, o futuro, eras a certeza, a verdade.

 


E sempre este vazio desfazendo-me, e sempre esta esperança vã de conseguir encontrar ocupado o tal lugar vago em cada carruagem, eléctrico ou autocarro e nada, ninguém se senta, ninguém se atreve, ninguém se aventura a tomar esse lugar vago, vazio, um lugar por preencher e sempre atormentando-me, negando-me o descanso, impedindo-me de dormir, de viver, de sonhar.

 

Quem ? Quem se atreve ?