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domingo, 25 de setembro de 2011

90 A ................... MAHINGA MAMI * .......................


Os últimos dois botes a tocar a praia. 

Tudo começou durante as compras de Natal ao queixar-me à Margarida, numa resposta que curiosamente era até concordante com a posição dela;

- Pois ! Por isso detesto o Natal, tudo que nem um louco comprando o que pode e o que não pode... Eu tenho lá paciência... Imagina tu que uma amiga até tentou engatar-me há quinze minutos ali atrás no corredor das águas e dos Ice Tea... Eu seria a prenda de Natal dela... Não fosse ela ter mau hálito e ainda a teria ouvido até ao fim mas detesto maus cheiros sobretudo desde que andei com um preto morto nas traseiras dum Unimog quase uma semana.

Nós nem dormiu, por uma semana toda inteira eles e os brancos terem dado reboliço na sanzala. Ele veio soldados e armas, e jipes, tudo em carradas, todos em festa, brancos e negros todos bebendo e enxotando nós para longe. Nem soba tinha mão nos festivaleiros e quando a xaranga calou-se nós todos desconfiados né ? Por isso hoje ter acordado cedinho p’ra juntinhos seguir eles, que estão todos se levantando no silêncio e se metendo ao caminho sem estrampido que acorde um babuíno e todo mundo sabe dormir ele cum olho fechado e outra orelha levantada. Nós entreolhámos entre a neblina e nós viu, soldados em barcos saindo do mar como feitiço e pisando no areia e abraçando os nossos sem pio, tudo ali pela calada por isso a Djá estava desconfiando-se e cuidando de nós não piar. Uns dias atrás Kima ameaçara e assustara ela lhe dizendo que se gaiato nom dispersar vai levar ai vai vai e nós saber que ele ser duro e bruto como búfalo em desvario. Tipo aquele grande e alto ali no meio do negros dando ordens é m’ermão Zé Rosa por isso cala gaiato e cuida de não dar estrilho agora ou m’ermão vai afogar a gente p’ra ficar calados. Quando gente for grande gente vai lutar como ele e honrar esta nossa terra pátria mãe e enxotar branco daqui p’ra longe.

No entretanto ondulávamos ao sabor das vagas mansas e apressávamo-nos a remar em direcção a terra antes que o sol rompesse e nos pudesse denunciar. Quatro pneumáticos por pequenos que sejam seriam uma mancha negra no mar azul e passível de ser vista a milhas de distância por isso havia que remar direitinhos ao grupo dos Unimogues que nos esperava na praia. Para trás era impossível voltar e as ordens tinham sido bem claras, submergir e zarpar mal largados os homens, um submarino ali se descoberto daria um escândalo de nível mundial.        
               
                               Rasto dos jipes  numa das extensas praias.

Vista do mar a costa da Namíbia era linda, praias douradas escondidas entre falésias negras, orla costeira com milhas e milhas a perder de vista ou penhascos caindo abruptamente sobre o mar. Não fosse o receio de sermos descobertos, os Unimogues poderiam atingir quase cinquenta milhas por hora, e galgaríamos imenso terreno em pouco tempo. Em vez das praias e do areal a prudência aconselhou contudo o caminho pela savana, o resguardo do capim alto e das árvores, ainda que poucas, por entre as quais a coluna de Unimogues serpenteava lentamente com paragens escassas, a fim de aferirmos a posição, calcularmos a distância ao alvo e os tempos de deslocação necessários para o alcançar. O objectivo era um acampamento militar a partir do qual os sul-africanos lançavam raids que massacravam toda a zona da fronteira sul. Os serviços secretos cubanos não tinham falhado, o acampamento, cuja acção mortífera se fazia sentir em todo o sul da província estava agora sinalizado, marcado. Contávamos com o efeito surpresa de uma operação relâmpago e o êxito da nossa missão estava pouco menos que exclusivamente dependente disso. 
              
                         O fantástico todo o terreno Unimog. 

O facto de sermos em menor número que aqueles contra quem nos esperávamos confrontar seria contrabalançado pelo efeito surpresa, pelo moderno equipamento e armamento indicado que carregávamos e pela superior preparação, treino e capacidade dos homens da nossa coluna, todos eles seleccionados entre os melhores, eles e elas. Não poderíamos dar-nos ao luxo de correr o menor risco ou a nossa retirada estaria comprometida. Todas as vozes daquele acampamento teriam que ser caladas, os hélis sabotados e o posto de rádio destruído sem que restasse a mínima dúvida. Um clique do rádio e teríamos os hélis do South African Army à perna e isso era o que todos nós mais temíamos.
           
                             Rasto dos jipes  noutra das extensas praias.

Após meia semana de penosa e sigilosa marcha passámos a avançar a coberto da noite, a pé e com a segurança de dois batedores duas horas à frente do grupo de guerrilha. Finalmente ao quinto dia ainda o sol não tinha despontado e o objectivo estava à nossa frente, nem escondido a coberto do mato, na orla do Calaári e fora da savana, inconcebível, todos naturalmente o buscariam e esperariam encontrar rodeado de mato. Optámos por não atacar ao amanhecer como seria normal, com toda a gente dormindo e as sentinelas cansadas e sonolentas. A nossa coluna estava exausta, homens e mulheres necessitavam de descanso, de recuperar forças, e as armas de limpeza, manutenção, pelo que unanimemente escolhemos atacar ao cair da noite e quando todos eles, obedecendo às ordens de recolher estivessem já deitados e adormecidos. As sentinelas seriam silenciadas à vez. A táctica surtiu efeito, o ataque foi desencadeado e uma hora depois gritávamos êxito. Fiz soar um assobio para rescaldo, concentração e reunião do pessoal.

Quando grande mim querer ser guerrilheiro, Djá e Cila Cumaio também quererem ser como meu grande ermão Zé Rosa. Família Rosa lutar há vinte anos sempre com seus melhores filhos e guerreiros na luta e na frente. Família ter pergaminho desde tempo do avô Rosa que ser dos primeiros a ter dado corpo nas balas e primeiro caindo na honra da Pátria mãe, avô Rosa se finou em confrontos de má memória lá no ano longe de 61. Depois da vez dele família sempre seguiu na sua coragem e exemplo se valorando e se adentrou sempre na luta portanto subiu alto na disciplina e na escala ascendente do coturno do partido. 
             
        Unimogues todo terreno utilizados nas guerras de Àfrica.

Uma vez reunidos contámo-nos e recontámo-nos, foi feita chamada e apreciação de danos, Micolo, Chicoti, Gourgel, Mutinde e Canga estavam feridos ainda que sem gravidade, elas tiveram menos sorte, Kussumua e Muandumba apresentavam ferimentos que exigiam mais atenção e inspiravam maiores cuidados. Dificuldade acrescida para chegarmos de novo aos Unimogues, escondidos na mata e a um dia de viagem a pé. Zé Rosa o grande não aparecia, dez dos mais novos foram colocados de vigilância e os restantes empenhados na busca apesar da noite de breu. O gigante negro foi encontrado passado algum tempo, pelo cenário defendeu cara a vida mas acabou esventrado, por baixo dele um oficial do SAA jazia morto, mas antes de morrer estripara-o. Dei ordens para que lhe metessem tudo no buxo e o corpo fosse levado numa padiola, alguém a improvisasse com dois paus e lona das tendas. Que aproveitassem parte da lona para cobrirem o corpo. Aquela baixa ditara uma vitória amarga, levar o corpo, que carregámos durante quase uma semana num jipe para entregar ao soba e à família a fim de lhe darem descanso à alma e fazerem o luto foi o mínimo que a decência, consciência e solidariedade exigiam...

Passado ano e meio, famintos, sedentos e cansados, a bem dizer fugidos duma outra operação que ao contrário desta correra mal** e em que perdêramos dois homens, todas as viaturas e muito material, embora tivéssemos safado o coiro, revisitámos a mesma aldeia donde Zé Rosa o grande era natural e fora enterrado. Notava-se ainda no ar a dor da sua perda, noite dentro e ignorando a bela voz que a cantava ouvi pela primeira vez cantar "Mahinga Mami" (Meu Sangue) uma velha canção de dor e de saudade. 

           Hoje passados cerca de 40 anos é cantada por Jorge Rosa* que a retirou do Youtube sendo cantada por ele somente em privado. Compreenderão porque não consigo ouvi-la sem que me cheguem as lágrimas aos olhos.

Atenção ! Submergir !


* Num vídeo cuja canção é aparentemente filmada e cantada nas praias e falésias onde há 40 anos um grupo de guerrilheiros desembarcara de madrugada a partir de um submarino para fazerem frente à África do Sul que nunca apresentou publicamente protestos pelo ataque de que o SAA foi alvo. Por seu lado o ataque embora com inegável e incomparável sucesso também nunca foi reivindicado por ninguém pelo que tecnicamente a história que acabou de ler nunca teve lugar. Uma das primeiras versões desta canção, cantada por Fernando Sofia Rosa pode ser ouvida neste link: - https://youtu.be/haN4r-zIqeo  A versão de Jorge Rosa, mais sentimental vi-a e ouvi-a há alguns dias no programa RTP África, foi essa a razão na origem do desenterrar destas saudosas e penosas recordações.  




Um perigoso desembarque.