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quarta-feira, 11 de junho de 2014

193 - UMA FANTASIA VELHA ..............

  
Levou o dedo à boca e molhou-lhe a ponta com a língua. Estava nervoso, melhor dizendo, excitado. A novidade da situação, de todo inesperada, para isso contribuía. Era um sonho velho, melhor dizendo, era uma velha fantasia.

Lembrava-se vagamente do filme em que vira uma cena assim pela primeira vez. Tornou-se-lhe desde aí fixação. O nome do filme esquecera-o há muito, a voluptuosidade da cena nunca mais lembrara, melhor dizendo, quer dizer, até hoje.

Há coisas que crescem connosco, sonhos que se alimentam e dos quais por sua vez nos alimentamos, era o caso. Na idade em que o vi aquele filme marcou-me, posso adiantar que naquela época eu não sabia nem conhecia nada de nada por assim dizer. Melhor dizendo, eu não sabia mesmo nada.

Fui aprendendo com o que vi e ouvi, muitas vezes mal e porcamente pois por vezes nem entendia o que mesmo à minha frente acontecia. Não entendia nem perguntava a quem soubesse, e escondia atrás de alguma fanfarronice a minha nunca assumida ignorância.

Talvez fosse melhor dizer boçalidade, pelo menos em relação a alguns assuntos candentes, hoje reconheço-o, mas naquela altura não o seria nem mais nem menos que quaisquer outros dos que me rodeavam, melhor dizendo, era e éramos uma trupe de labregos xico-espertos, ainda hoje o seria não tivessem sido as minhas primas, especialmente as duas de Lisboa que eram mais ricas, posso mesmo dizer ter sido com elas que, admirado, me espantei com tanta coisa que nem sabia, melhor dizendo, tanta coisa com que nem sequer sonhava.

Há coisas que não se aprendem na escola, se há…
E tantas coisas, ó se há …

Fiz cinquenta anos o verão passado e posso garantir-vos que, metade delas, os meus velhos amigos inda as não sabem. Há coisas que não se ensinam a ninguém, se há … tantas coisas… ó se há …

Errei, admito, algumas vezes errei, admito-o, mas nunca mais cometi duas vezes o mesmo erro, melhor dizendo, os mesmos erros.

- E não digas que vais daqui !

Que é como quem diz come e cala, ou a papa se acaba, era mais ou menos assim que a Miquelina rematava cada lição que me dava, ou melhor dizendo, que me davam, porque parecia mesmo que estavam combinadas, a Miquelina e a Jacinta, mas não estavam, melhor dizendo, não sei se estavam, nem sei inda hoje se não estariam.

A mecânica da coisa foi-me explicada detalhadamente por uma delas, nem eu me lembro nem interessa qual, porque afinal ambas gostavam que o fizesse daquele modo, sem aquilo era tempo perdido, porque mais minuto menos minuto para conseguir um resultado minimamente satisfatório tinha que levar o dedo à boca e molhar-lhe a ponta com a língua.

Embora a situação já não fosse inesperada continuava a excitar-me, só a ideia por si só já me excitava, para melhor dizer adianto que nem era por a coisa ter sido fantasia ou fixação que perdia o encanto, bem pelo contrário, no que me toca posso afirmar que o potenciava, melhor dizendo, quero dizer que ampliava, aumentava, porque a língua portuguesa é muito traiçoeira e potenciava, se bem que seja uma expressão potente, melhor dizendo, forte, atira-nos para o universo das possibilidades, potencialmente possíveis, eu diria que, em potencia em possibilidade está ali, pode acontecer ou não acontecer, tem essa capacidade, essa possibilidade, se faz ou não uso dela é outra conversa, quero dizer é outra questão.

Isto é como tudo, quero dizer cada um terá a sua perspectiva, e de acordo com a sua própria experiencia pessoal, nem todos temos iguais ideias acerca do perfeccionismo por exemplo, ou da higiene, pelo que cada um terá o seu modo próprio de o fazer não será ?

Fiquei-me por perfeccionismo e higiene para não me alongar, quer-se dizer-se para não vos maçar com conversas de treta, melhor dizendo com conversas de merda, mas certamente já intuíram que poderíamos não nos limitarmos a essas duas premissas e invocar com o mesmo direito a eficiência por exemplo, a invocar ou a convocar, é como quem diz, chamar, trazer, não subtrair à colação se me faço entender, e com base no mesmo espírito de apreciação, ou observação, como queiram, é-me indiferente, há modos diversos de dizer o mesmo, as palavras são como as cerejas ou como as conversas, já nem sei o que digo, perdi-me um pouco, melhor fazer uma pausa, quero dizer um momento de reflexão.

Voltemos pé ante pé atrás, sei que recordava a Júlia a Jacinta e a Miquelina, nem sei por que não me  saem hoje do pensamento, quer dizer eu lembrava-as, mas lembrava-as a propósito de quê ?

Rememorando, lembranças do cinema, quero dizer daquele filme que se me tornou obsessão, melhor dizendo, fixação, ora quero dizer que eu lembrava uma minha fantasia, e não temam porque não me vou pôr aqui a arengar ou a desbobiná-las todas porque o fio à meada já eu perdi, e vamos lá a ver é se mesmo assim consigo desenrolar o novelo, melhor dizendo retomar os pensamentos onde os perdi, e por falar em perder já me ocorreu, acabei de me lembrar, melhor dizendo, relembrar.

Levei o dedo à boca e molhei a ponta com a língua. Fiquei nervoso, melhor dizendo, excitado. A novidade da situação, de todo inesperada para mim contribuiu para isso.

Era um velho sonho, melhor dizendo, uma velha fantasia.

E depois de ter aberto as malas, no filme eram duas malas cheias de dinheiro, uma vermelha e uma preta, abraçaram os maços de notas em cada uma, à vez, tendo começado a contar cada nota de cada molhe, quero dizer maço, mais por voluptuosidade que outra coisa pois que contá-las todas lhes levariam duas vidas e esse tempo era coisa que decididamente já não tinham.

Mas para ser franco já nem recordo bem todos os pormenores, diria que como aquele da Miquelina, dela e das outras,

- E não digas que vais daqui ! 

- Come e cala, ou a papa acaba-se-te, rematavam...

Melhor dizendo, gritavam ou segredavam, ou sussurravam para não dizerem que falto à exactidão das coisas, e nisso parecia mesmo que estavam combinadas, mas acho que nem estavam, para melhor dizer não sei se estariam, só sei que qualquer delas invocava dois motivos muito importantes para me exigir que me calasse, quer dizer era uma coisa que faziam especialmente por duas ordens de razões, por tudo e por nada.

Lembro sim que uma delas adorava entalar-me a mão nas coxas quentes, era uma coisa que ela apreciava fazer, isso lembro, e depois ria-se às gargalhadas com o inusitado da suspensão, claro que não passávamos a tarde nisto, mas era um bloqueio que concitava ao avanço, ambos o sabíamos, o que eu já não sei mesmo é qual delas tinha essa mania, quero dizer esse tique, melhor dizendo não me recordo a qual delas atribuir esse capricho, mas diria que apesar de tudo me faço entender ou melhor dizendo me faço perceber.

E vocês que acham ? 




quarta-feira, 4 de junho de 2014

191 - FOI POR ELA , FOI POR ISSO ...…


Ela sorriu, com a cara entalada entre as mãos puxou-me o queixo para si, afivelando um sorriso deitou-me uma careta, mordeu-se torcendo a língua para o canto da boca e, espremendo entre os polegares a hedionda borbulha, fez que entre as unhas rebentasse primeiro e saísse depois o sinal e o pus cujo inchaço me desfeava a cara e me cobria de dores insuportáveis mal ali tocasse.

Debaixo da dor lancinante berrei e fugi com a cabeça, mas o mal já estava feito e eu livre do problema. Havia que desinfectar e aguardar até que tudo se recompusesse.

Ela sorria e mostrava-me os polegares infectos onde o pus se derramava festejando o sucesso da operação e dando fim ao episódio.

- Lindo ! Estás lindo outra vez !

E espetou-me um beijo na bochecha ainda doída.

E foi assim.

E foi por isso que a tomei pela cintura, a puxei a mim e, com a cara ainda vertendo um fiozinho de sangue a beijei em sinal de gratidão e reconhecimento.

Lembro-me que ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Há dias foi a vez dela, e eu a ver.

Sentada na cadeira da dentista, nem a boca totalmente aberta escondia o inchaço que lhe ia na face. O abcesso era dos grandes, e a médica daquele novo consultório, bem equipado, RX e tudo, de bata impecavelmente branca e cheia de pergaminhos, prometia segurança e dava-nos confiança.

O prédio tinha sido totalmente recuperado e renovado, dantes uma padaria e o respectivo forno de lenha, e nós agora precisamente onde há muito mais de trinta anos comprávamos pãezinhos com chouriço acabadinhos de fazer para acalmar-mos as ressacas.

Ali, onde agora a recepcionista, dantes o balcão, uma velha balança onde o pão nunca era pesado, e uma caixa de madeira vidrada  mostrando os bolos da padaria. Por detrás o quintal onde se amontoavam os molhos de lenha que alimentavam a fornalha.

Aqui, nesta sala, exactamente no lugar onde instalaram a moderna cadeira da dentista, dantes a casa do forno e onde se acumulavam os grandes tabuleiros em que arrefecia o pão com chouriço que tão bem cheirava.

Lembro-me bem, era inverno, quase três da tarde. O forno ainda quente da azáfama dessa manhã, ela atendera há minutos a última freguesa e procurou-me junto do quentinho onde eu reconfortava as mãos geladas.

Abraçou-me.
Abraçámo-nos e enrolou-se-me o sentimento.
Enrolámo-nos.

Precisamente nesse lugar, hoje, muito mais de trinta anos depois, ela voltava a ter medo e a tremer.

Queria muito, mas assustava-a o momento.

A médica soletrava-lhe palavras de calma e conforto enquanto brandia na mão a ferramenta com que havia de extrair-lhe o queixal.

Retoiçámos.

Sentiu-se acalmada, confiante, medrosa mas confiante, a mão no ombro transmitiu-lhe calma e paz suficientes para esboçar um sorriso amarelo.

Como que espantada, num instante abriu muito a boca e soltou um gritinho.

Já estava.

Eu afastei-me um pouco, e sim, era verdade o que diziam.
Doía um bocadinho mas depois era bom.
Já se sentia bem melhor.
Levantou-se e ajeitou a blusa e a saia.
E nem fizera assim tanto sangue.

Orgulhosa, a médica exibia um grande queixal na ponta do alicate cromado, sorria, e acalmou-a :

- Pronto, já está, afinal não custou nada pois não ?
  Era mais medo que outra coisa querida !

Lembro-me que depois daquilo ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Alguém alvitrou serem quase três da manhã e dentro de pouco tempo podermos ia à padaria dos Canaviais comprar uns pãezinhos com chouriço, estávamos ali desde as cinco da tarde e já nem havia nada que se comesse nem pachorra p’ra continuar a ouvir as histórias da vida do Aurélio.

- Foi por ela, foi por isso que sempre estive apaixonado por ela, por tudo isso, desde o primeiro dia, ainda me lembro, ela tinha estreado umas botas de camurça que calçava com umas meias brancas e …

Levantámo-nos num repente, montámos as motas e num excessivo alarido rumámos todos aos Canaviais. Todos menos o Aurélio que, babando-se, chorava que nem um menino, revivendo a história que acabara de nos contar…