terça-feira, 31 de janeiro de 2012

106 - AMAR, SONHAR......................





      José Couso tinha acabado de almoçar. Vigiara a máquina colocada no tripé, regulara pela enésima vez a objectiva, sempre temente que qualquer desfocagem lhe traísse a limpidez de uma cena que desconhecia mas aguardava com impaciência.

        Que algo haveria de acontecer sabia-o de antemão, com tanta coisa a passar-se nos trezentos e sessenta graus em seu redor e mesmo ao pé da porta, era uma questão de espera.

        O que o traía era a constante tensão a que estava submetido, não seria contudo o constante afinar do mecanismo da sua Nikon que lhe devolveria a paz e o sossego por que ambicionava e havia muito não o deixava dormir um momento descansado.

        As saudades de Pilar também mexiam com o seu íntimo. Mais que da família era dela que constantemente se lembrava, a tal ponto que, certas necessidades psico-fisiológicas regular e atempadamente satisfeitas quando na Galiza, o traziam agora num estado de espírito que lhe toldava a concentração.

        Não havia dúvidas que um homem se completa numa mulher, talvez por isso milhões de homens em Bagdade, mantivessem apesar da guerra, uma calma que chegava a invejar. Mais a mais, e se era como se dizia, teriam bem guardadas em casa duas, três ou quatro para cada um, o que só podia redundar numa calma exagerada, mais a atirar para o cansaço, pois estas coisas de alcova também têm os seus custos energéticos.

        Com o estômago já habituado à frugalidade própria do lugar, José deixou-se afundar lentamente no sofá do quarto, mais para dedicar a Pilar alguns momentos oníricos de que andava precisado, que propriamente para descansar, embora desse modo almejasse juntar o útil e necessário ao agradável. Não dormia, como pensaria qualquer um que o visse assim descontraído e de pálpebras fechadas.

        Sonhava, sonhava acordado, sonhava com o seu amor e os descampados por onde comummente se passeavam, e tão nítida lhe parecia a lembrança que julgou sentir a humidade do chão nos cotovelos e joelhos, tal qual como quando pelo mesmo se rebolava, arrastando Pilar no abraço estreito com que aconchegava a si o seu peito, numa esperança incontida de fusão a que por norma punham cobro com uma prolongada comunhão.

        Tão concentrado estava na ilusão, que nem o barulho dos colegas logrou desviar noutro sentido o seu pensamento. Ademais, a confusão reinante, acabou por se confundir até com os gritos das crianças numa escola que, quando na volta do prado, costumavam ver e ouvir brincando no adro. 

           Acordou, contudo tão excitado e molhado, que ficou um pouco embaraçado, um pouco mudo, e com a imagem desse feliz momento, disfarçou o tormento acorrendo uma vez mais à varanda, uma vez mais desnecessariamente da objectiva em demanda quando, um clarão enorme precedeu o ribombar de um trovão e lhe roubou ali, naquele mesmo instante, a imagem querida e vibrante que segundos antes o maravilhara e elevara aos céus.

        Ouviram-se gritos e labéus, as objectivas destroçadas, janelas estilhaçadas, por todo o quarto uma sinistra pintura de sangue, apercebe-se de vários feridos e, jazendo no chão, inanimado junto de si, Taras Protsyuk da “Reuters”.

        Todo o hotel em alvoroço, gente entrando e saindo gritando, só então se deu conta que também estava sangrando. Quis levantar-se mas não, a perna pendia-lhe, presa ainda por um tendão, fora isso e não seria sua.

        Esvaía-se-lhe a vida e a alegria, alguém o socorria sem lograr estancar o sangue que corria, - um garrote depressa !, qualquer um gritou, - não que isso importe, - outro rematou, tal era a ferida de que padecia.

        Vieram amigos acudir, cada um deles, sem esperança, acabando por fugir daquele inferno, cedendo lugar a bombeiros e enfermeiros.         Uma maca, uma ambulância, uma corrida. Um corpo chegou quase sem vida ao hospital.

        Ali ficou, ali se finavam vida e sonhos enquanto lembrava os filhos, pequenos, pois por um daqueles azares medonhos em que ninguém quer crer, no meio de uma contenda e na cidade das mil e uma noites, os hospitais nada têm que a qualquer um possa valer.

        O que matou José Couso, ali, naquele idade, foi tão só o facto de não estar naquele momento numa qualquer outra cidade, onde por mais modestas que fossem as urgências, por certo teriam ao dispor as competências banais e necessárias para acudir a casos tais.


in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad” - Humberto Baião " - Ed Nosso Futuro - 2005 - ISBN 972-9060-31-2 --- 6390

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

105 - DEDICA-TE À POESIA…................................. *



Ora toma ! Aí tens ! 

Desesperavas pela resposta dela e agora chegam-te todas de chorrilho ! 

É a porcaria da Net que te está a lixar não é ?

Valeu mesmo a pena o bucólico ou romântico, ou lá como o chamaste, deve ter sido sobretudo enervante o tal passeio de domingo olhando as amendoeiras !

Parvo, já não tens idade para isto, tas a ficar senil !

O excesso de sensibilidade afectou-te. Tas contente ? Tas ? E agora ?

Como é que descalças a bota sacana de merda, aí está ela a provocar-te de novo e tu feito maricas, pensando-te um valente não é ?

Vá ! Diz-lhe agora o que andaste para aí remoendo !

Mulher de força ! Mulher única, e coiso e tal !

E as mensagens que não passavam, e as que perdeste, e a incerteza de terem ou não ido, a revolta por não teres reconstruído a que perdeste, a inspiração ? Pensas ser coisa divina ? De momentos ?

               Toma mas é juízo pá, e porque ela estava logo ali do outro lado do monitor, e porque o perfil a dizia online, e tu sem saberes o correio electrónico dela, e tu agarrado ao monitor, beijando o monitor… 

Tas parvo ou quê ?

Toma mas é tacto, não viste que é uma mulher inteligente ? Não ?

Põe-te mas é a milhas enquanto podes ! Depois não te queixes !

Desesperado pela resposta dela, por veres a reacção dela, e agora que já viste ? Levaste na tromba ! Palerma !

Nove quintos da resposta ela dedica-os à filha, ao tesouro dela, das duas uma, ou baixou a guarda e só lembrou defender a filha, ou, numa contrita manhosice que devias ter por natural, fez-se despercebida, esquecida, fez-se de pequenina, que é coisa que ela não é nem tem nada, deu-te a volta parvo, e agora vais ter que perguntar-lhe quando haverá um outro passeio de moto, ou convidá-la para tomar uma Seven Up na esplanada do kartódromo, com palhinha, otário, ela sabe mais que tu, ela sabe mais a dormir que tu acordado, não viste ?

E agora já sabes, a filha não é fruto de nenhuma desilusão, desilusão apanhaste tu meu palerma, nunca mais deixas de ser parvo, só um parvo é que se põe para aí feito oráculo, a inventar adivinhas, e depois cagaste o pé todo, e ela, c’a desculpa de não saber escrever tão bem, sabe-a toda, vai-te regando o pezinho e dando a volta, vai contando a história dela, aproveitando para dar realce ao que realmente lhe interessa, é mais esperta que tu, palerma, deixa passar ao lado a conversa que não lhe interessa, quer lá saber do teu sentimentalismo meu parvo, mulheres inteligentes há muitas, tu é que não sais aqui da parvónia, não conheces o país quanto mais o mundo, e, para ser franco, que mulher no gozo das suas faculdades mentais vai dar-te conversa meu mentecapto ?

Quem ?

Não vês que a fasquia dela está demasiado alta para ti, não vês porque cegaste, apareceu-te uma mulher com M grande e desaparafusaste, entraste em órbita, vê lá mas é se compões as coisas, se lhe pedes desculpa pelas tuas parvoíces, que disso não passam, pareces um adolescente imberbe, idiota, vê lá mas é se ao menos ficam amigos, farta de aturar parvos e xico-espertos está ela, e dá-te por contente, já não perderás tudo, e vai-te iludindo que já é bem bom, e atina meu ! 

Atina !

Não queiras ser mais um parvalhão que se lhe atravessa á frente, deve estar farta disso, come-os ao pequeno almoço e risse deles, ao menos evita que se ria de ti, o que já nem seria mau, e dá-te por contente.

Faltava-me esta, não se poder rir para ti, porque é inteligente, porque é lutadora, porque é de força, porque é única, e depois ?

Que obrigação tem de te aturar ?

Já não tens avós que te gabem meu artola ?

Se alguém sabe disto é um gozo !

Inspira-te mas é nos astros e dedica-te à poesia, que é boa para entreter sonhadores, e toma juízo, entra nos eixos, não faças figuras tristes, orienta-te que já tens idade para isso, retoma a tua figura, mostra-te normal meu anormal e atina, ATINA ! Atina parvalhão !

Que ela disse mais pelo que não disse que em tudo o que escreveu !

Parvo.........

Dedica-te à poesia............

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

104 - A LIBERDADE AO VIVO.........


Ammã é linda, muito parecida com Évora nas ruínas romanas que também ali ainda se conservam de pé, as ruínas de Jerash, o próprio espólio da cidade velha, são de uma beleza incríveis.
Ficámos no Hotel Faraó, no centro da velha cidade, mesmo no centro da baixa, cosmopolita como poucas cidades do médio oriente, simultaneamente moderna na parte alta, mesmo muito moderna.
O hotel era barato mas acolhedor e muito asseado, ali voltei a encontrar muitos outros companheiros de Bagdade e também Haniko, ainda zangada com o mundo.
Matámos saudades enquanto embalámos e preparámos cuidadosamente, para uma viagem de quase dez mil quilómetros, um presépio artesanal iraquiano que eu trazia, de propósito, para um homem bom cuja colecção de presépios, mais de mil, de todo o mundo, é uma das maravilhas da terra.
Ficámos somente os dias necessários à obtenção de visto para entrar na Síria, os bilhetes de avião tinham o regresso marcado a partir de Damasco, pelo que o tempo urgia, havia à nossa frente mais quinhentos quilómetros para fazer em contra relógio e com o dinheiro a escassear nos bolsos, então sim seria uma aventura não ficarmos pelo caminho.
Apanhar um avião de Ammã até Damasco estava fora de hipótese e fora do orçamento, um carro, um táxi seria muito mais barato mas muito mais lento, na fronteira seríamos por certo retidos mais tempo que o que fôramos pelos americanos quando entrámos na Jordânia, as probabilidades de perdermos o avião eram enormes, a minha esposa tinha entrado no Hospital do Espírito Santo, em Évora, para ser operada, e eu sem qualquer nave espacial à mão.
Valeu-nos Alá, que na pessoa do Counter Agent da Air France em Ammã, o Senhor Suhail Halaseh, Senhor com letra grande, nos salvou de todas essas vicissitudes, por gentileza sua e da companhia aérea, na qual procurarei viajar o resto dos meus dias. Depois de saber a nossa história, colocou-nos num avião direitinho a Paris, sem escalas nem pagamentos suplementares. A esse homem e à Air France, os meus mais sinceros e maiores agradecimentos, nunca o esquecerei.
Foram mais de doze horas de viajem até aterrar em Lisboa, onde me esperava o meu filho, a namorada e dezenas de órgãos de informação.
A todos cedi uns minutos, para me arrepender nos minutos seguintes. Ainda as palavras não me tinham saído da boca e já estavam a ser deturpadas. Fiquei para sempre com a sensação que os repórteres são capazes de cortar palavra por palavra o nosso discurso, voltar a colá-las e colocar-nos na boca coisas que nunca sonhámos dizer.
Por essa e por outras parecidas é que hoje tenho, da comunicação social, a imagem que tenho, por essa e por outras é que a minha luta só terminará quando este livro vir a luz do dia, estou curioso em saber como vão reescrevê-lo.
Quando parti, meti férias e vi-me forçado a uma adaptação repentina a uma situação que nunca imaginara, uma coisa é o que vemos na Tv, outra, completamente diferente, a realidade. A diferença entre o que nos deram a conhecer e a verdade foi, neste caso, abissal. Hoje, refeito dessa surpresa, confesso não me ter adaptado ainda e de novo a este mundo. Estou muito mais calmo, sou quase outro, não sou decerto o mesmo.
Apesar deste testemunho, por hábito, não comento nem partilho a minha experiência com ninguém, não vejo necessidade disso, as mentiras sobre a guerra, que começaram muito antes dela, e as contradições em que mais tarde ou mais cedo todos os mentirosos acabam por cair, farão esse trabalho por mim. Limito-me a contar o que vi e vivi, em vez de armas de destruição maciça, miséria, muita miséria e um tirano destronado por Bush, um vencedor cem vezes mais perigoso que o vencido.
Hoje os iraquianos resistem, chamam-lhes terroristas, não digo que não haja por lá terroristas, decerto muitos mais que haveria antes da guerra, mas haja a coragem de lhes chamar, pelo menos à maioria, patriotas ou nacionalistas.
È certo que parti para o Iraque com o espírito de um militar, disposto a aguentar contratempos e contrariedades, não foi uma vida de lorde mas não passei fome, nem sede, não senti necessidades prementes. Como a re
stante população, que por não ter dinheiro não tinha vícios, nem com que os alimentar se os tivesse, também eu não achei falta do que não esperava encontrar, em compensação sobrou-me muito com que não contava, e isso, folgo em repartir convosco.

Humberto Baião in "A Guerra No Iraque" A Experiencia Inesquecível de um Voluntário de Paz Na Tomada De Bagdad " - Ed NossoFuturo - 2005 - ISBN 972-9060-31-2

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domingo, 15 de janeiro de 2012

103 - CEGOCENTRISMO.......................


Gosto de falar com o Paulo P. e com o Baptista, além de revelarem maturidade, revelam também, coisa rara nos dias de hoje, uma preocupação e visão do futuro não desfocada da realidade.

 Numa dessas nossas conversas, e a propósito de uma peça que o primeiro viu no “VILLARET”, consagrada aos usos e costumes nacionais, em vez de nos ficarmos pela rama, derivámos mesmo para uma apreciação mais objectiva, racional e baseada em factos concretos, tal como aconteceu após o experimentalismo português, com o nascimento do racionalismo, do positivismo, dos enciclopedistas, da ciência em geral, assuntos que vínhamos discutindo há dias.

 Sendo uma questão que por norma eu não tenderia a abordar aqui, já que pode ser considerada melindrosa por alguns leitores, mas sem querer deixar sem resposta os meus amigos, abordarei o assunto de forma isenta, e de cujas observações não me excluo.

Assente portanto a ideia que sou pecador, mortal e falível quanto qualquer de vós, vamos ao que interessa.

 Consultado o tira teimas de um Dicionário, logo concluímos, sem dúvida, metódica ou não, o seguinte: “ Egocentrismo; Ego; “eu”, o nosso eu “. Tendência para referir tudo a si mesmo, atitude normal para a infância, ausência de distinção entre realidade pessoal e realidade objectiva, ou seja ver as coisas como nos convém, não como são, e geralmente com uma análise muito infantil e nada profunda.

 “ Etnocentrismo; atitude baseada na convicção de que o povo a que se pertence, com suas crenças, tradições e valores é um modelo a que tudo deve referir-se, Etno; povo, nação, raça “. Que é o mesmo que dizer que quem não for como nós é contra nós, e não é perfeito.

“ Narcisismo; amor excessivo e doentio à própria pessoa, caso em que o objecto do amor é a personalidade própria, homem enamorado de si próprio, vaidoso, adamado “. Aquele que se revê na sua beleza ou nos seus méritos pessoais, méritos que normalmente nega ver nos demais.

 Ora estas qualidades, ou a falta delas, são infelizmente comuns a muitos de nós. Ainda muito recentemente a imprensa se referia a um inquérito efectuado junto de gestores estrangeiros em Portugal, incidindo sobre a sua visão do gestor português. O resultado, divulgado junto do público, mostrou-se arrasador para os nossos homens, cuja única nota positiva apareceu no item do “improviso”, o que não abona nada em seu favor nem conduz a proveito palpável ou duradouro.

 Acontece que o nosso planeta é hoje um vasto reservatório de saber, e nos países mais evoluídos, a palavra-chave tem sido, na última década, a descoberta de competências, nos outros, e que se possam misturar com as nossas, empatia na acção.

 As competências individuais, ou nucleares já não chegam, (nunca chegaram), hoje impõe-se o trabalho em parceria, a recombinação de competências, (as nossas e as dos outros) e de capacidades para atingir objectivos comuns e mais elevados.

 A inovação, área em que somos pobres, só de mãos dadas se consegue, longe vão os tempos das descobertas e invenções isoladas, hoje tudo se complicou, no sentido de maior complexidade, e globalizou. A modernidade, a concorrência, a produtividade, não se compadecem com amadorismos ou improvisos.

 Há que estabelecer estratégias de intervenção que forçosamente contem com as capacidades dos outros, aquilo a que chamamos trabalho de equipa. O português dá-se mal com o trabalho de equipa, e as razões podem ser variadas, tais como a fuga de cérebros ou a ausência deles no momento e no lugar, ou baseadas na justificada falta de confiança e capacidade nos que nos rodeiam por muitos que sejam.

 Uma outra faceta que ao português tolhe a capacidade é o facto, muitas vezes assumido, de se ver ele como o único capaz, com razão, conhecedor dos factos, e sem o qual nada é possível fazer-se, ou fazer-se bem feito, são, no caso, tarefeiros e individualistas assumidos.

 Temos por um lado o improvisador nato, e no extremo oposto o perfeccionista empedernido.

 Entre um e outro encontraremos a razão, talvez não a virtude, nem sempre necessária, mas pelo menos o motivo para que em conjunto consigamos transpor obstáculos que pela sua natureza serão impossíveis de galgar sozinhos, esse sim, o nosso calcanhar de Aquiles.

 Por estas e por outras, uma vezes nada fazemos, outras fazemos menos do que seria útil ou possível, outras ainda, fazemos alguma coisa que, posteriormente e para que lhe não percamos o controle, não deixamos crescer, ou seja, limitamos-lhe o crescimento.

 Tal qual como os pais que, não reconhecendo capacidades aos filhos, os tratam sempre como se fossem crianças, incapacitando-os de se tornarem homens autónomos, confiantes, capazes e empreendedores.

 Muitos acomodam-se a esta situação e viverão sempre à sombra sem que nada criem, outros sentir-se-ão limitados, desmotivados e logicamente acabarão por produzir tanto quanto os primeiros.

 Entre uma atitude e outra, e apesar da aparente complexidade da coisa, entre um extremo e outro diria, venha o diabo e escolha ...


sábado, 7 de janeiro de 2012

102 - SE ME DEIXASSEM…. SE ME AMASSEM ...



Sempre gostei de flores, gostará ela também ? E de quais ? Certo é não sermos excepção à regra. Não embarco nos pensamentos negativos que me assaltam, estou a ficar irritado, não costumo descontrolar-me, nem lembro já quando isso aconteceu a última vez, mas esta Gi dá-me cabo da paciência, precisará meter férias para escrever uma resposta ? Mandar uma mensagem por pequena que seja ? Que razão me assiste ? Talvez nenhuma ! Não é ela maior e vacinada ? Não é ela independente, inteligente ? Não defende ela o seu mundo com unhas e dentes ?

Não posso irritar-me, descontrolar-me, e logo pela manhã, o excesso de adrenalina, o excesso de gente e de carros, o excesso de restaurantes, sempre excessivos na falta de modos e profissionalismo, que a minha actual falta de paciência faz com que abomine, que os ache inexpressivos, exagerados, começando logo nos preços, desmedidos, na exigência de moedas e eu sem trocos, que se lixe o café, que se lixem todos !

Estou sem paciência, pachorra como por aqui se diz, hoje tudo é exagero, tenho que fugir daqui, dar um passeio pela costa, o que a costa ainda tem de bom que me seduz é todo o mar, por vezes a perder de vista, de impressionantes e caprichosas ondas, que para mim são uma delícia de mirar até onde logro espraiar o olhar, pois pois…

Logo eu, que fugi a uma bica em Setúbal, que me iludi, me enganei, não, não, não tenho que pensar para mim meu Deus o que eu fiz ! No que eu me meti ! Enchi-lhe a cabeça de sonhos, desassosseguei-a…

Eu nem sabia ter este poder !

Mas que culpa tenho ?  E será que tenho ? Não, não fui eu, digam-me que não fui eu, ela não é parva, eu não medi o alcance das palavras, que é que eu fiz ? Agora empato, não sei como sair desta, ela não é parva, o que eu disse não teve importância, ela não se deixa levar, porque não me acalmo ? Porquê esta sensação de culpa ?

Não é ela maior e vacinada ? Não é ela independente, inteligente ? Não, não fui eu, digam-me que não fui eu, ela não é parva, eu não medi o alcance das palavras, que é que eu fiz ? Agora embaraçado não sei como sair desta, nem como nela me meti, agora embico e alego falta de tempo, de disponibilidade e indeciso, tanto mais empato quanto mais vontade tenho de correr até lá e cobrar aquele abraço prometido, tenho é medo de a encarar, as mulheres inteligentes sempre me meteram medo, e se ela faz o mesmo ? Se espaçou as mensagens para me arrefecer ? Se as tornou mínimas para me afrouxar ? Para refrear estes ímpetos ilógicos de um amor serôdio ?

Passei ontem todo o dia tratando do jardim fronteiro à casa. Arranquei ervas, alguns arbustos em excesso, para quê ? Para arranjar espaço para as flores, que foram trazidas daquele viveiro/estufa ali aos Canaviais e irão alegrar solenemente as minhas chegadas a casa.

Tudo porque ela não escreve e me desespera, e cuidar das flores é ajudar-me a passar o tempo que a resposta tarda em chegar.

É isso ! É por isso que ela fala pouco ! É por isso que as mensagens são pequenas sabendo ela que tal detesto !

Está a colocar-me no meu lugar, está a colocar-me à distancia, ela sabe como lidar com estes desvarios, com parvos como eu, quem o não sabe sou eu, que não sei nada de mulheres, são para mim um cada vez maior mistério, serão sempre…

E as flores, que flores ? Flores alentejanas concerteza, daquelas que vimos a alegrar os nossos campos agora que a Primavera vai chegar mas se antecipa, tudo se antecipa, o tempo anda, como gosto de dizer, cambalhotando os nossos dias, só uma mensagem dela se não antecipa, flores amarelas, violetas, rosas, lilases e vermelhas, brancas e azuis, porque é assim com estas cores que pintamos quando meninos ou apaixonados o Arco-íris.

Um aroma salutar e alegre inebria, fará mesmo com que o carteiro se demore um pouco descansando da labuta, a minha amiga Gi não manda cartas, nem flores, flores que me vou habituando a tratar cada uma pelo nome próprio e de família, terei que estudar de novo a botânica das roseiras de todo o mundo, o que não consegui até aqui.

Talvez um dia traga do Algarve uma amendoeira, talvez venha a contribuir para preservar a espécie, talvez à sua volta falemos do que não devíamos fazer, talvez... mas que fiz ? Que estou a fazer ? Que nos estamos fazendo ?

Estou incapaz de imaginar a beleza do Algarve na Primavera, nada de excessos, de excessivo só mesmo aquele mar de pétalas branco-rosa, tornando exuberante a mesma paisagem que no verão se nos mostra árida, seca, agreste. Como estes dias, estas horas, crestadas pelo desespero de um sinal. Olho o céu na esperança, como se dali viesse, pelo éter, o fluxo virtual que aguardo ansiosamente, vejo aves, caminhando para sul, aves de arribação a quem solstícios e equinócios traçam os rumos.

Contristado, pela primeira vez na vida sem um rumo que me guie, voltarei com a alma por preencher mas desperta ao meu jardim, ao meu Eden.

Se me deixassem encheria toda a cidade de flores, flores e mais flores, de todas as cores e espécies, até que alguém notasse que aqui se teima pela vida e que não, não estou maluco.