em http://expresso.sapo.pt/o-economista-inconveniente=f827369
http://www.ordemeconomistas.pt/xportalv3/file/XEOCM_Documento/9321126/file/Luciano%20Amaral.pdf ORDEM DOS ECONOMISTAS – A QUIMERA DAS EXPORTAÇÕES – Luciano Amaral
Por
trás das pilhas e dos milhares de fardos de aparas de cortiça, debaixo de um
alpendre mal enjorcado, o calhambeque. Nunca soube porquê mas só a buzina
funcionava, roufenha, soando bem alto mas roufenha. O calhambeque só pó. Mesmo
por dentro só pó. Uma D. Elvira sempre presente enquanto eu, brincando ao Zorro
e ao Tonto, esporeava Silver na pradaria do quintalão, onde as pilhas e os
fardos as montanhas rochosas…
Naquele
Verão escolhera um chapéu de fita verde por me parecer mais fresca a cor, no
início de cada ano a mãezinha comprava-me um chapéu de palha novo na loja do
senhor Acácio. Eram milhares de chapéus de palha em pilhas, cada uma com sua
forma cor feitio e número de chapéu, número, largura de cabeça, de criança a
adulto, pilhas de vinte trinta chapéus e eu sentindo ainda o cheiro da palha
nova, o cheiro da tinta nas fitas,
o
cheiro a naftalina da roupa da cama arredada para baixo por ser Verão, um
cheiro que se sentia intensamente por causa das portadas fechadas para evitar a
luz e o calor e, embora as portadas fechadas e a penumbra, eu não dormia,
cumpria a penitência da hora da sesta mas não dormia nunca, enquanto lá fora a
esturrina queimava as montanhas rochosas e eu em cima de Silver perscrutando o
horizonte, até que ela chegou,
pé
ante pé, um dedo nos lábios outro nos meus, um silencio quente, abafado, nem o
pregão dos negociantes de cortiça se ouvia, estariam na taberna onde hoje o
Restaurante Flor da Pradaria, perdão, da Planície, e
nem
o resfolgar das maquinas estendendo alcatrão nas ruas da vila se escutava,
somente a respiração ofegante dela metendo-se na cama, colando-se a mim na
penumbra silenciosa e tropical do quarto, eu fechando finalmente os olhos, não
para dormir mas aspirando sem o menor ruído o perfume dela, o cheiro dela e o
perfume que jamais esqueci, nunca mais, nos últimos quarenta anos de vida entrei
em todas as perfumarias do mundo e nunca mais,
o
cheiro sim, às vezes, muitas vezes, mas o perfume jamais, e sempre que na
lembrança aquele odor no mesmo instante na memória ela, os seios fartos,
redondos e cheios, túrgidos, os biquinhos duros e salientes, as auréolas
grandes com sabor às da mãezinha quando eu pequenino, e, quando queria montar o
Silver e abalar à desfilada pela pradaria e ir embora, ela
vais
já, tá quietinho, quando acabarmos vais, e se fosse a mãezinha decerto me tinha
logo dado soltura para ir brincar, ao principio tive medo e fiquei calado, mas
depois, pelos dias fora já gostei, e ficava quietinho e caladinho até ao fim,
ainda hoje se baixo as persianas e a penumbra no quarto ouço o arfar acelerado
dela, sinto os beijos as mãos e os carinhos dela, eu crescendo em mim sem saber
e depois já sabia, e
ao
terceiro dia ainda ela se não esgueirara para a minha cama e já eu esquecera o
Zorro, e o Tonto, e o Silver e as montanhas rochosas, a aventura aprendida e já
tão desejada era outra por eu já a adorar e lhe conhecer os sítios onde ela se
rendia e ofegava e tremia, e depois de tremer o abraço dela, o cheiro intenso
dela, eu já não brincando nas montanhas rochosas mas brincando nas montanhas
dela até conhecer de cor e salteado cada curva cada canto cada reentrância,
com
o tempo aprendi onde tocar, a mão dela guiando a minha, mete aqui, faz assim,
não pares, mais, faz mais, mais depressa, não pares agora, e em vez de matar
índios e bandidos empenhava-me em cumprir o que dizia o xerife porque o xerife
era ela e eu gostava fazê-la sentir-se bem comigo, primeiro, de sentir-me bem
com ela depois,
porque
depois também eu ofegando, também eu numa agitação em crescendo, também eu
guiando a mão dela, também eu que embora não dissesse pensava faz assim, e ela
fazia, não pares, e ela não parava, mais, e ela fazia mais, faz mais, e ela
fazia muito mais, mais depressa, e ela mais e cada vez mais depressa, não pares
agora, e ela sabendo sempre onde parar porque se não parasse a brincadeira acabaria,
e ao
invés de matar índios e bandidos empenhava-me em cumprir bem o ordenado pelo
xerife por gostar de fazê-la sentir-se bem comigo, primeiro, de me sentir bem
com ela depois, porque ela me ensinou a parar,
jamais
esqueci o cheiro dela, nem o meu cheiro, nem o perfume que jamais encontrei, e
cada vez que um biquinho, uma auréola,
recordo-me dela, recordo aquelas férias e aquele Verão, aquele em que deixei de brincar ao Zorro e ao Tonto embora nunca mais esquecesse as centenas de pilhas de fardos de aparas de cortiça, o calhambeque cheio de poeira escondido na sombra do telheiro enjorcado, com a buzina roufenha e, ainda hoje se no tumulto do clamor do trânsito de qualquer grande cidade uma buzina roufenha
logo
o pensamento na aldeia, naquele verão, nela, nas camionetas dos Farinhas, no
cheiro a alfarroba, na relva fresca e na terra molhada do jardim nos fins de
tarde e nas amenas e estreladas noites em que, contemplando-a mudo,
descobri
que me fizera homem e, ainda hoje, de dedo nos lábios em sinal de silencio ou
não, aprendi a guardar para mim todos os pensamentos todos os segredos, todas
as memórias…
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