quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

223 - FAROL, BERLENGA GRANDE .........................


Naquele lado da ilha o sol batia menos, em compensação era mais protegido do vento e não sofríamos os salpicos da rebentação, contudo não era por isso que ela o escolhia, mas sim por ser mais abrigado de olhares vindos do farol, ainda que o velho Baltazar estivesse entretido lá no alto polindo-lhe e limpando-lhe lentes e mecanismos.

Deste lado poderíamos pescar e lançar as armadilhas para as lagostas sem o tormento ou a violência das vagas, e depois estender as toalhas turcas sob a “anta marinha”, como eu chamava brincando com ela àquela rocha, debaixo da qual nos deitávamos gozando o sol ou trabalhando para o bronze.

A bem dizer fugíramos da Estrela,* eu com direito a seis semanas de licenças acumuladas, que aproveitei para dar continuidade à convalescença e que vinham mesmo a matar, credo, lagarto, lagarto, lagarto, o diabo seja cego surdo e mudo, quero dizer vinham mesmo a calhar. Carmelinda aproveitara e metera férias, farta que estava do bulício da capital e mais ainda daquele hospital onde, dizia, era eu a única coisa interessante e que valia a pena, o que para o meu ego superava o beneficio de vinte sessões de terapia como devem calcular.

Por tudo isso a Berlenga grande era mais que um paraíso, aquele verão quente aconselhava-nos lonjura da capital e a deixar o caminho livre à revolução, que grassava como fogo em capim e cujo calor afogávamos com os vinhos de Colares e as caldeiradas do velho Baltazar.

Dez minutos depois de estendidas as toalhas no aconchego da “anta marinha” transformávamo-nos em verdadeiros “homens” das cavernas, dando largas aos instintos, e esquecendo as armadilhas das lagostas e os iscos nos anzóis encostávamos as canas, mais preocupados em não ir ao mar para não perdermos o lugar, sucumbindo à primeira dentada muito antes de sentados à mesa frente a uma açorda de camarão, uma feijoada ou cataplana de marisco.

Era eu quem normalmente o fazia, desfazendo-lhe com os dentes o lacinho do calção, olhos ardentes, tal qual um miúdo desembaraçando da prata um chocolate e impaciente por degustar o bombom.

 Bombons ou salgadinhos ! Que também apreciava, e ainda aprecio. Raramente esquecíamos as toalhas e uma cesta com caju, morangos, mousse de chocolate, cervejas frescas e chantilly, e uma laranja ou duas, ou clementinas, que ajudavam a tirar da boca outros sabores e odores antes de regressarmos.

Aquilo era mais que um reflexo inato para nós, bastava que um começasse a salivar p’ra esquecermos o sol, as armadilhas, o velho Baltazar e a mais elementar cautela, como se a ilha fosse só nossa e nós os únicos ao cimo da terra.

Às dentadinhas repartíamos os morangos, outras vezes eram barrados em mousse de chocolate ou chantilly e comidos como a cereja no topo do bolo, lembro-me de uma vez em que fui obrigado a tirar um com o dedo, enquanto embaraçados desenleávamos as linhas iscos e anzóis das canas que a ventania derribara.

Momentos que jamais serão esquecidos, sobretudo quando ela, juntando o indicador ao polegar e fazendo um anel me tirava do sério, passando os dedos por mim suavemente, deslizando, fazendo deslizar a mão levemente numa cadência delicada e conspícua que me desorganizava os neurónios e eu, c’o pensamento desalvorado, entornava as caixas dos doces e, atrapalhado, procurava os morangos com os dedos lambuzados, uns dias de mousse de chocolate, outros de chantilly, numa aflição, enquanto ao mesmo tempo os guizos trinavam nas canas acusando peixe, e o cordel retesava-se e relaxava nas armadilhas prenhes de marisco e nós moita carrasco, esquecidos de tudo, dos guizos, das armadilhas, da caldeirada, do almoço, do farol, do velho Baltazar e do tempo, entregues às delicias da sobremesa enquanto no transístor

- Última hora ! Operários soldados e camponeses cercam a Assembleia Constituinte !

Recordo vagamente ter balbuciado ainda qualquer coisa como

- Será um putsch da esquerda ou da direita ?

E a Carmelinda afobada com os doces entornados, com o morango perdido, com os guizos que não se calavam ou os cordéis das armadilhas que não paravam quietos

- Fogo não ligues !
- Não pares agora !
- Em frente porra !

- Que se fodam as esquerdas e as direitas, jurei a mim mesma que nada havia de me estragar estas férias caraças !

E quando eu, no pleno gozo de direitos adquiridos e por adquirir me preparava para lhe censurar a linguagem desbragada, senti repentina dentada na orelha e ela, muito meiga e muito terna sussurrando-me ao ouvido

- Eles que chamem o Vasco meu querido, porque a mim daqui ninguém me tira e agora não saio e desliga a merda do transístor que nem as horas quero saber férias são férias e

E nem acabou a frase, ofegante, compenetrada de que a minha convalescença fosse bem aproveitada e a recompensasse de tanto desvelo, nisto a língua no meu ouvido e o anel apertando-se numa cadência mecânica e certa, como o rátátá de uma metralhadora, ou o rude ttttrrrrrooouuu das pás de um helicóptero, o coração batendo-me que nem um cavalo, o rubor conquistando-me o rosto, os olhos virando e revirando incapazes de focar o infinito quanto mais o finito próximo,

furioso o vento soprava por cima da “anta marinha” fustigando as canas e as armadilhas, ela desembaraçando-se do sutiã, estendendo-se na toalha turca aconchegada a mim em conchinha e eu, deixando de ver, protegendo-a num abraço enquanto o transístor repetia as noticias de última hora e dava o meio dia precisamente quando ela empinando e eu, que já nem via, vi nesse instante o farol aceso, piscando intermitente como nas noites quentes e negras em que ela me espantava despindo-se sob essa luz estroboscópica, e vi, juro que vi sob o sol escaldante mil grinaldas coloridas resplandecendo em cores vivas e vistosas e ainda mais fogachos multicores refulgindo e deslumbrando-me de tal modo que os dentes me rangeram e caí desfalecido na toalha, já sem forças, sorriso na cara, e a certeza de que a convalescença era coisa do passado.

                   Nesse domingo ainda almoçámos juntos, foi o último, ao fim da tarde regressámos à capital, ela ao hospital da Estrela, eu a Vale de Zebro e ao Alfeite. Perdemo-nos nesses tempos agitados, a revolução tragou-nos e durante décadas nada soubemos um do outro, até hoje, precisamente hoje, em que, maravilha das maravilha e graças às redes sociais a encontrei e soube na Tailândia, na Coreia, Camboja, no Vietname, no Laos, percorrendo toda a antiga Cochinchina, refulgindo escaldante por onde passa, resplandecendo em cores vivas e vistosas, linda e deslumbrando-me como sempre, acreditará ou pensará após tantos anos que esqueci o farol ?                                                                                                                                                   

        
* http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/221-contratempo-em-xangongo.html

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

222 - A IGNORÂNCIA, QUE GRAÇA ….....................

   
A IGNORÂNCIA, QUE GRAÇA …

That grace c’o pessoal acha
Of all that only ele sabe, e ri
Big desgraças, campeando por aí
Como fire que em restolho grassa ...


Não sabe, not heard, nem viu
The question mark, e se era enorme !
Enfiada goela abaixo, when riu
Atrapalhou, choked, deglutiu, matou a fome ...


E, impante, walked up the street acima
With fanfare se senta na cadeira
Levanta o braço, demands respect, chama a menina
Que, em vez de coffee and water devia servir-lhe caganeira ...


Valeram-lhe os friends da Távola Redonda
Masters dos cromos, da pesca & das caçadas
Devedores da mesma moral ética  that incomoda
Lovers do bom vinho, boa mesa & grandes barrigadas ...


Have mais de quatrocentos porcos cada, de certeza
I bet no more que a 4ª classe, inda que inteira
O que interessa é o pilim in his pocket, e vida de riqueza
When there dúvidas, leia-se Vergílio Ferreira ...


Humberto Baião, Évora 19 de Janeiro de 2015
                        



segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

000221 - CONTRATEMPO EM XANGONGO ............


             Levantara-me com cuidado para não a acordar, dirigira-me como um sonâmbulo à cozinha, boca seca, tal qual numa ressaca, mas nesse dia não, nesse dia era mesmo só sede, nem acendi a luz, uma fraca luminosidade coava-se pelos buraquinhos do estore, talvez seis da matina, porque às sete, hora a que ela automaticamente acordaria, não seriam buraquinhos de luz coada, antes estrelas luminescentes que o sol, batendo em cheio na janela, imprimiria naquela espécie de cartão perfurado *

Encolhi-me ante o bafo de ar frio quando abri a porta do frigorifico, que me atingiu como uma chapada, lembro-me de nesse momento ter apertado uma perna contra a outra sustendo uma súbita e impertinente vontade de mijar para depois, num repente, todas as pressas me passarem bloqueando-me, hesitante quanto ao pacote a escolher, sumo de laranja ou sumo de maçã ? Gostava igualmente de qualquer deles, ambos me dessedentariam por igual e estariam igualmente frescos, porquê então a minha hesitação ?

Foi quando nos lembrei num pomar de laranjeiras, inebriados pelo doce aroma das suas flores e dos sonhos que partilhávamos, em que eu, um eleito no paraíso, e tu uma das setenta e duas virgens que me estariam prometidas

Vivi o auge da revolução dos cravos alheado, atravessei-a convalescente e convalescendo no hospital militar da Estrela, em cujos jardins repeti, dia após dia a marcha que me fortaleceria, ante o olhar nem sempre desinteressado das sábias alunas das várias especialidades de enfermagem fumando às escondidas nos intervalos da labuta, camufladas nas ramagens de um loendreiro subindo encostado à mesma parede a que se aconchegavam buscando o sol quentinho dessas manhãs primaveris

Voltei a mim com o grito imperativo e aflito do cabo boticas para o grupo de busca

- Deixem-no comigo ! Dêem-me espaço antes que ele se vá ! Alguém chame já um helicóptero caralho !

Retomei a consciência e senti frios tremores assaltando-me naquele deserto quente e seco a que, na galhofa chamávamos o SPA da Namíbia e, ao mesmo tempo que a mão do boticas apertou a minha, senti a progressão de um estranho calor tomando-me da cabeça aos pés e ele, injectando-me confiança num sorriso

- Não temas, é a morfina, acalma-te, respira devagar e não te esforces, não te mexas, já vem um héli a caminho

Forcei-me a crer nas suas palavras e anui ante a certeza que aquele sorriso transmontano injectava em mim, de olhos fixos no ar revi os últimos momentos, qualquer coisa atirando-me contra o chão, desequilibrando-me como se tivesse levado um tremendo coice na costas, provocado pela pressão do ar mor a explosão, coice desembestado, atirando-me ao chão, enquanto um fio de sangue surgia por debaixo do cabelo empastando-o, escorrendo pela nuca e desaparecendo por dentro da camisa. À mistura um repetitivo e assustador matraquear vindo de sul, a barragem de morteiros caindo aleatoriamente à nossa volta, as nuvens de areia erguendo-se do chão, a gritaria deles, a nossa, atrás de mim alguém em desespero, o Gouveia acabara de se ir desta para melhor, a situação deteriorava-se e o inimigo encurralava-nos a cada minuto que passava...

- Eu já vos fodo todos  filhos da puta pretos dum cabrão !

E num segundo todos calados, silêncio, escuridão, depois o frio glacial, os dentes batendo incapaz de os suster, o vozeirão do boticas, o carinho quente da sua mão apertando a minha, a esperança galgando-me as veias numa calorina anormal e ruborizante e finalmente o som de um héli, a boca tragando o pó feito lama nos lábios em que derramaram os cantis

- Baixem-se ! Alguém ajude aqui ! Atenção, todos ao mesmo tempo, às três para cima da maca ! E vai um e vão dois e vão três ! Agora ! Só vêm os da maca os outros baixem-se e dêem-nos cobertura !

Recordo o balançar célere do levantar numa nuvem de pó, as mãos dela descobrindo-me o braço, tacteando-o, um frasco pendurado por cima pingando apressado, os olhos fixos em mim, ouvido no meu externo escutando-me, a pressão de um dedo na carótida enquanto lia o relógio pendente do peito, o suor escorrendo-lhe em bagas, os cabelos em desalinho e gritando ao piloto

- A direito a razar as árvores ou perdemo-lo meu Deus !

Duas mãos segurando as minhas numa prece, lábios mordendo-se e murmurando em simultâneo uma ladainha que nunca entendi, quis erguer-me para beijar-lhe a testa e acordei longe dali num silêncio de hospital, no tecto branco ventoinhas remexendo o ar como pás de helicóptero em câmara lenta, uma touca branca debruçando-se sobre mim, uma mão invadindo-me as virilhas, a febre lida num termómetro prateado, um sorriso, baixou, três sacudidelas antes de pousado no pano bordado da mesinha de cabeceira, um jarro de água e uma jarra com rosas do deserto, linho, lençóis de linho branco

Bruscamente uma mão no ombro

- Como te sentes hoje filho ? Há dois dias que não davas acordo ! Tens fome ? Tens ? É bom sinal ! Vais rir-te desta ! O pior já passou, agora são sopas e descanso, muito descanso

Tudo em meu redor soava a branco do tecto à cama, como irrepreensivelmente brancas eram a touca, a farda, as meias, o sutiã, as rendinhas

Reaprendi a andar naquele jardim em que dia a dia repetia a marcha e me fortalecia, primeiro amparado nela que cheirava a flores de laranjeira, depois abraçados e escondidos nas ramagens de um loendreiro subindo encostado à mesma parede onde nos aconchegávamos apanhando sol, mimando-nos nas manhãs quentinhas duma primavera em que conheci o paraíso e ela uma das setenta e duas virgens que me estariam destinadas, ou prometidas, e em cujos seios e regaço me embalou todos aqueles meses de sonho e maravilhoso encantamento

À distância de quatro décadas é-me permitido um balanço. Setenta e duas virgens são manifestamente um exagero, mas seja ou não a minha vida um conto de fadas jamais deixei de as encontrar no caminho, a primeira na paróquia da senhora da Saúde, a segunda em Angola, no Xangongo, perdida na Picada de Kangamba, a sul do Cunene, bem dentro do Kalahari, onde eu a esperava enregelado junto a uma Velvechia com mil anos, (Welwitschia mirabilis), essa flor rara do deserto, tão rara quanto a fada madrinha que me salvou, estarei também fadado pra viver mil anos ?

A terceira fada encontrá-la-ia na Estrela, e por aí adiante, por isso tremi primeiro e sorri depois ao perguntares-me o porquê da minha queda por enfermeiras, ou queda ou paixão, ou simpatia, empatia no mínimo, (deixa-me esclarecer que neste teu conceito de “enfermeira” meti tudo quanto usa uma imaculada e respeitável bata branca, técnicas, médicas, etc) porém a tua pergunta não era inocente e percebi-a logo, naturalmente não desejo a ninguém que viva algumas das situações que vivi, já quanto a outras, lamentarei sim que as não tenham vivido, vivam ou venham a viver

De qualquer modo obrigado por me fazeres desenterrar tão gratas recordações. 

Claro que escolhi o sumo de laranja. A vida é uma dádiva

Cependant, aujourd'hui, je suis Charlie ...

* Nota : às sete em ponto a minha gata acordou, como sempre. 

                   http://youtu.be/mrVjgkKNU44?list=RDmrVjgkKNU44 

                  O Pomar                      Das Laranjeiras

Madredeus

Jurarei
Eterno amor
Saudades
A vida inteira
Ao nascer do sol
No pomar das laranjeiras
E se o dia
Não vier
Voltarei
De qualquer maneira
Só para te ver
No pomar das laranjeiras
É tão grande
O meu amor
Foi assim
Logo a primeira
Só será maior
No pomar das laranjeiras

+ ver também: http://mentcapto.blogspot.pt/2015/01/223-farol-berlenga-grande.html

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

220 - DUELO DE SAUDADES ..............................


Olhámo-nos nos olhos, demoradamente, mirámo-nos de alto a baixo, detalhadamente, expectantes, como dois adversários num duelo, prontos a disparar ao primeiro movimento ameaçador do outro

Medi-o à lupa, o olhos fundos de alecrim foram o primeiro indício, apurei os sentidos e notei-lhe um cheiro inda que leve a flores de giesta, afrouxei os músculos como quem afasta as palmas dos coldres prometendo calma e, com mais vagar observei-lhe os ombros largos, que vestiam uma camisa branca sem colarinho, o peito era franco, como o dos cantadores do cante, os braços compridos, bons pra sementeira dos alqueives e as mãos brancas, rugosas, de dedos compridos lembrando-me alguém que vira descascando a riqueza dos sobreiros

Cada um recuou um passo, hesitante, temente, sem perder o nexo à distância que garante a confiança, foi aí que ele falou para mim

- Bem, na verdade não falou, balbuciou qualquer coisa que demorei a entender devido à pronúncia afrancesada

Mas pelo ar limpo, o cabelo de melenas desgrenhadas, os botins mal amanhados, a fralda por fora da camisa, parecia-me ser ele, há quanto tempo nos não víamos, trinta e tal ? Quarenta ? Ah ! E o nariz aquilino ! E as patilhas? As patilhas !

Voltei a mirá-lo. Magro como um cão, maçãs do rosto sumidas, pele branca, todo ele branco, na boca um sorriso e, desenhando-se-lhe cristalinamente nos olhos, duas planícies !!

Era ele ! Era impossível não ser ele !

Foi então que chegou perto do fim a fita que, no subconsciente se me desenrolava vertiginosamente, flashes, avanços, recuos, pausas, reset, dizem-me que na hora da morte vemos o mesmo filme, não sei, neste só ele, ele e eu, o passado correndo impetuoso na bobine, trazendo ao presente tudo que gravara, ele e os braços compridos de semeador, as botas caneleiras descuidadas, a calça de ganga desbotada, o cinto de fivela à cowboy, os cabelos pelos ombros, a pasta do portfólio, o autocolante nela em laranja fluorescente “MAKE LOVE NOT WAR”, e os pincéis !

Sim isso os pincéis !

De imediato lhe mirei as mãos, os dedos de artista, as unhas, roídas e aparadas mas cada uma suja de sua cor, de acrílico, aguarela, guache, óleo, em cada uma um fino traço de sujidade denunciando-o

Era ele ! O Délio !

Levantei os braços e avancei sem dúvidas nem restrições, descurei as armas, esqueci os coldres os revólveres e o cinturão das munições, ergui os braços como quem larga os cuidados, abri as mãos como quem esquece a enxada, a foice, o martelo, a bandeira, abracei-o com vontade e senti nas minhas costas as suas manápulas, ainda o abraço não tinha começado e já as línguas se desatavam na ânsia de pôr em dia quarenta anos de escrita

- Sabia que tinhas ido para França

- Sabia que não morreras na Namíbia

- Sabia da tua passagem por Argel

- Sabia que casaras com a Luísa

- Sabia que estiveras cá em 74

- Sabia-te à esquerda ainda navegas nessas águas ?

- Soube que te andavas casando todos os meses eheheheh

- E não havia net faria se houvesse… Almoçamos no Narda ?

- O Narda já acabou

- Vamos a Reguengos !

- Vamos antes ao Redondo !

- Lembras-te daquele professor de francês meio marado e barbudo que tinha um dois cavalos ?

- O que era coxo ? O Artur, ou Raúl ou Saúl ? Se lembro ! Se aprendi bem francês a ele o devo ! Agora deve ser um tipo para a nossa idade, teria o quê ? Mais cinco ou seis anos que nós ? Estivemos vai que não vai para ir com ele num passeio a Marrocos recordas-te ? E as tuas pinturas ? Ainda continuas na onda psicadélica ?

E rimos os dois a bom rir, rimo-nos muito, pusémos em dia quarenta anos de riso atrasado, e fomo-nos ao vinho branco de Redondo, gelado, e ao tinto de Reguengos, corrente, e aos queijos e linguiça assada, à cabeça de xara, aos secretos grelhados, ao polvo de vinagrete, às sardinhas em escabeche, empanturrámo-nos de pezinhos de porco de coentrada, alambazámo-nos com a sopa de cação e a rechina com rodelas de laranja que é o tempo dela, telefonámos á família e aos amigos e pela hora do lanche já eramos quase uns vinte em roda da mesa, que nos contei como faria qualquer escrivão da puridade enquanto ele me contava da França, do Benelux, da tenda ou bancada, da banca é o mais correcto, da banca que tinha no Marché Aux Puces, o Mercado das Pulgas em Paris

- Comprei lá há muitos anos o “Quadrophenia” um duplo álbum dos Who que não tinha saído cá, andava por lá vadiando com a Luisinha, bela música ! Uma bomba !

Abandonara havia uns vinte anos a pintura, contou-me. Já ninguém comprava arte aos novos artistas, fora algumas vezes convidado a falsificar pintores famosos mas recusara, não era a cena dele embora tivesse sido fácil, pintava cenários e publicidade para teatros e cinemas, aderira forçado à moda do design comercial como me disse a rir, estava cá há umas quatro semanas e já sondara “o mercado”, tivera esperanças de ficar mas tudo o aconselhava a voltar, já não havia em Portugal lugar para a publicidade de exteriores disse-me cabisbaixo

- Nem isso nem empresas nem teatros nem cinemas respondi-lhe eu, se te safares só em Lisboa ou no Porto e bái bái…

- Estive duas semanas em Lisboa em casa da mana Olinda, não dá, rendas caras, tintas caras, pincéis, telas, tudo, nem uma promessa de trabalho consegui, acho que isto está pior do que quando daqui me fui há mais de 40 anos

- A quem o dizes Délio !

- Não vale a pena, vou voltar, ainda bem que não me desfiz de um estúdio que tenho lá há bem mais de dez anos

Entretanto e sem que tivéssemos dado por isso caíra a noite, um grupo de cantadores entrou em surdina entoando as Janeiras e inadvertidamente dei por mim cantando-as, de braço dado com a Luisinha que adora o cante alentejano e me desafiara. Metade de nós acompanhava o grupo quando me apercebi que o serrabulho era demasiado e a Gabi confundira o rosé de Borba com o Bordeaux, de que era amante, e exagerava, ou sumíamos depressa dali ou alguém teria que a levar em braços ou ao colo até casa, nem seria essa a primeira vez, nem a quinta ou sexta, aguentava pouco e como estava era uma questão de tempo

Quando acabámos a desarrumação acusava a “luta”, garrafas de Poejo, Fedrisco, Anis, Medronho e Ginginha enchiam a mesa, os pratos dos doces conventuais e os copos vazios exalavam um olor adocicado a álcool que os cafés fortes não dissiparam

Desde os cantadores que o convidado virava a cara revirava os olhos e torcia o nariz enjoado, estranhei, pensara o Délio um saudoso amigo das tradições e disse-lho

- Tradição o caralho pá, não os vi mas soube que estiveram cantando em Paris na semana em que me vim embora pra cá, só palhaçadas, só temos jeito pra palhaçadas, mais valia que aplicassem o esforço em coisas que desenvolvessem o país

Embatuquei, desci duas notas o volume do meu cante, não fosse ofendê-lo porque entendi a sua negação, na verdade o país que o rejeitava pela segunda vez continuava alegre e inconscientemente em festa…   

      https://www.youtube.com/watch?v=CPbylKVCDAk&feature=youtu.be



quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

BALANÇAS AVERY * por Maria Luísa Baião...........


Numa aldeia perdida do nosso Alentejo, um destes dias, em viagem de recreio, sábado, entrei numa antiga mercearia. O espaço era ainda como os que dantes nos bairros de Évora se viam, dividido entre mercearia e taberna.

Hoje, sabemo-lo, todas as tabernas viraram cafés, os copos de vinho foram trocados por bicas, e nem vemos já o chão coberto de serradura ou aparas de madeira escondendo beatas e cuspidelas, estas últimas coisa em que há muito e felizmente, deixámos de ser exímios.

O curioso da história nem são os ovos do campo, queijos, enchidos e outras iguarias de que me abasteço regularmente, todas sem conservantes, aromatizantes ou corantes, mas que fazem as delícias de uma mesa, em especial quando as visitas abancam em minha casa.

Ainda guardo na despensa um pote de azeite, na garagem garrafões de vinho a granel e deixo os queijos a “marinar” empapados em panos embebidos no nosso ouro fino de oliva. Abandonei há muito por falta de espaço e serventia a salgadeira, mantenho todavia o hábito de guardar a “espiga” não vá o diabo tecê-las, e a seu lado penduro cebolas, alhos, orégãos, louro em rama e o alecrim que constitui o meu segredo no coelho à caçador.

A história de hoje gira à volta do espaço central do balcão de madeira dessa velha mercearia. Alva, em esmalte branco, como o eram, apesar dos certamente muitos e muitos anos que acumula, dominando como um centro de mesa, uma velha balança Avery de dois pratos.

Desconheço se a marca é ainda fabricada, há mais de trinta anos que nenhuma via, hoje tudo vem embalado, higienizado, calibrado, catalogado, normalizado, pesado, e em vácuo na maior parte das vezes.

Balanças nem vê-las e quando tal, são impessoais, espectaculares e digitais. Um toque e dão-nos o valor, a data e hora da aquisição, o peso e o custo, vomitando etiquetas autocolantes enquanto nos piscam uns números verdes ou vermelhos iguais em todo o mundo.

Das balanças Avery guardo a doce recordação do leite em pó que, numa garagem, as senhoras da Cáritas ou da Paróquia, distribuíam pela população. Leite em pó do melhor que até hoje vi, manteiga branca, de sabor incomparável, e queijo flamengo ou uma espécie disso, tirado de latas novas de brilhante cromado, talvez de cinco quilos cada uma.

Em cerca de trinta anos passámos das parcas compras na mercearia, cujo valor era genericamente apontado em caderninhos de deve e haver saldados ao fim do mês, saltámos, dizia, para a paródia de filas e atropelos nos hipermercados, cujos carrinhos enchemos até mais não poder e pagamos a pronto com um dos muitos cartões que retiramos da carteira.

Nem tudo irá mal, pelo menos para a maioria, a minoria esconde-se, e escondemo-la. Pois minhas amigas, era assim no tempo da outra senhora, no tempo daquele que há pouco e nem sei com que saudades, ganhou discutível concurso televisivo.

Como o tempo e as coisas mudaram. Hoje acotovelamo-nos para encher mais o carrinho que o vizinho, dantes faziam-se fileiras para receber o leite em pó, a manteiga e o queijo que nos chegavam como oferta do povo americano, oferta desinteressada do grande Satã.

Quantas de nós se lembram dessas noites em garagens e sacristias um pouco por todo o país ? E no meio de uma grande mesa, nessas noites de dádiva e partilha, sempre a branca e alva balança Avery, que me ficou na memória, como ficaram os filhos ranhosos e descalços de muitas mães e que hoje, melhor ou pior, vão de carro ao supermercado.

Como tudo mudou. Mudámos nós, mudou o país, mudou o mundo e mudou o grande Satã, parecendo continuar a não querer dar a ninguém motivos de reconhecimento e nisso fazer gala. Às vezes penso se a miséria terá diminuído na directa razão do aumento da estupidez, da prepotência e da malvadez ou egoísmo.

Não sei se ainda existem, se produzem, fabricam ou vendem balanças Avery, talvez em remotos países do mundo onde a caridade é ainda a única esperança. Ignoro a existência de alguma correlação entre dignidade e balanças Avery, ignoro. Ignoro se entre as balanças Avery e a iniquidade haverá algum elo macabro.

Sei somente que, numa aldeia remota do nosso Alentejo, existe ainda uma balança Avery e, por indução de ideias, acredito que no interior deste país que discute opas, otas e tgv’s, talvez persistam ainda demasiadas balanças Avery e quem, sem presente nem futuro, dependa do trabalho desinteressado de muitas fadas caridosas da Cáritas e das Paróquias, e isso, provoca-me um mal-estar compreensível, um sentimento indizível de revolta e indignação, mas também a certeza do muito a fazer e uma vontade sobre-humana de participar, contribuir para que este tipo de balanças não mais seja visto entre nós.

*Texto  de Maria Luísa Baião publicado in Diário do Sul –  rubrica “Kota de Mulher“