domingo, 23 de outubro de 2016

390 - ZÍNGARO SIM ZÍNGARO NÃO ........................


Mal as vi o pensamento fugiu-me para as bandas do Minho, de Viana do Castelo, onde uma vez, em férias, esbarrara com um aparato fantabulástico como diria a minha bizinha do 4º Esquerdo. Rodas, folhos e mais folhos nas saias rodadas, blusas alegres e o peito como prateleira, montra ou altar de filigranas de encantar, consagradas por desmedidos corações pendendo-lhes das orelhas.

Sorrisos e peitos francos, largos, num tagarelar nada próprio das alentejanas, muito mais recatadas e que as farão pela calada. Estas duas não, carregavam desmesurada alegria, uma natural desinibição e desprendimento total, contrastando com o soturno ambiente que as rodeava, pouca gente, sobretudo gente muda e calada, ou seja a pouca gente que ainda frequenta cafés pois a maioria desapareceu, fecha-se em casa ruminando taras, complexos, manias e desgostos diversos nem saindo à rua, ou mal saindo à rua deixando os cafés a um terço ou um quarto da frequência e freguesia que apresentavam há meia dúzia de anos. De entre todos eles, cafés, há agora na minha zona um que decidida e declaradamente não aceita ciganos. Não que eles abundem por estas bandas, para ser sincero há meia dúzia de anos que deixei de os ver por aqui com a regularidade que lhes era habitual, eles, as carroças, os cãezinhos, tão ladinos quão as criancinhas ranhosas que em bando os acompanhavam sempre, saltando por quintais, ora em busca de uma bola, ora de uma torneira onde encherem os sebosos jerricans de plástico, ora um par de calças, um sutiã ou uma blusa esquecida no arame, ora com a desculpa de um raminho de hortelã para a panela ou de uma rosa amarela para oferecerem à matriarca da trupe.

No café que ora os não aceita, antes desta nova gerência era habitual parar por ali, eu e eles, ambos de vez em quando, e de quando em vez lá lhes pagava um bolo ou uma sande, desde que assoassem o ranho do nariz. Elas as criancinhas assim faziam e eu contentinho, contentava-me com a minha boa acção do dia e com o meu moralismo de merda. Isto não o pensei eu, atirou-me certa vez à cara um pai cigano que chegara alguns minutos depois do ranhoso.

- Devolve já o bolo ao senhor e diz-lhe que meta o moralismo no cu Caló ! 

Ao ouvir isto as ciganas na sua esteira, fungando filigranas, não se remeteram a risinhos e sorrisinhos abafados como seria de supor entre nós, não, antes desataram sonoras gargalhadas que só não me deixaram todo vermelhaço por ter já há muito tempo perdido a vergonha. Tentei emendar a situação alegando despreocupada e alegremente sermos velhos amigos, eu e eles, os ranhosos, pois já nos encontráramos ali mais vezes pelo que seríamos “amigos de longa data”.

- Isso é outra conversa, ripostou o pai cigano enquanto recomendava ao Caló e ao Kalé que puxassem as moncadas antes que caíssem no Jesuíta, um bolito tão catita, - Que estão à espera para agradecerem a este senhor meus camafeus ?

Os catraios fungaram, a moncada desapareceu-lhes instantaneamente das fúcias mal eles fungaram e o pai cigano sentou-se despreocupadamente na minha mesa ajeitando o sombreiro, pedindo desculpa, e ordenando à gaiatagem que fosse ver das éguas, virou-se a mim atirando-me um:

- A gente nunca sabe com quem lida e tem que estar sempre com um olho no ciganito e outro no portuguesito sabe o senhor ? Arménio Zíngaro, um amigo ao seu dispor.

E lá continuou debitando a sua lengalenga, sendo aqui que a coisa muda completamente de figura e se torna interessante, dado tudo ter começado com uma ranheta, ou uma ranhada e um ou dois ranhosos terem dado azo a uma conversa entre nós bem bem avançada e, atendendo a que eu bebera um Brandymel a seguir à bica por o tempo estar incerto e haver que prevenir, logo ele aproveitou para me recomendar o licor Beirão, de longe o seu preferido, enquanto dissertava sobre aceitação, tolerância e independência, socorrendo-se no entre meio da conversa, de uma garrafa de Beirão que nem sei como viera parara à mesa, e de Miguel Torga, segundo ele o único de entre nós que compreenderia o seu viver, o viver do seu povo, pondo-me com isto de pé atrás e orelhas em riste.

Um cigano discutindo comigo o existir, o estar e o ser, citava-me Miguel Torga puxando da autoridade de ciganos dos quais eu jamais ouvira falar, mas que no seu mundo (no seu universo corrigir-me-ia ele), seriam estrelas no firmamento do tríptico em que nós profanos e pagão cristãos alicerçávamos o nosso viver, terra, mar e ar, não estando eu de todo certo quanto à correcta interpretação e explanação, aqui, ante vós, do completo e complexo discurso que o cigano aventou.

Ainda hoje não sei quem era ou seria tal personagem, chapéu preto, fato preto, coçado, coçadíssimo, sapatos cambados, barba de duas ou três semanas, mais parecia o meu mano Zé, um cheiro penetrante a fumo, a lume de chão, e sobretudo um saber que me surpreendeu pelo inusitado da coisa e pelo popular mas visível enciclopedismo que o enformava de modo admiravelmente incomum.

E enquanto eu cada vez mais surpreendido abria a boca de espanto, ignorando o mundo que ele me apresentava, ou desvendava, de boca espantada ia conhecendo, entre brandis Mel e licores Beirão a galáxia de divindades, pensadores e poetas que o habitavam e impressionavam. Em simultâneo justificava-se alegando ser a tradição oral a mais forte entre o seu povo, o qual se socorria da poesia e da música, como mnemónicas infalíveis numa filosofia de vida que centrava, confiava e assentava na oralidade da narrativa a sua sobrevivência.

Piscando-me o olho enquanto me dava uma joelhada que mais que incomodar-me me permitiu adivinhar um joelho magro, atirou-me esta pérola, como se rematando a surpresa impossível de escamotear em mim:

- Ora o meu amigo veja a quem e porquê deram há poucos dias o prémio Nobel, é que antes de verbo já cá estavam os Zíngaros, os Sinti, os Rom, os seus rapsodos, os seus aedos e a sua vida simples e boémia ou seja, muito antes da prosa já havia ranhosos !

Isto dito como se para encerrar a crítica ao meu inicial moralismo, tendo-se deixado tomar pelo riso que só parou quando me agradeceu o convite e os bolos dos catraios. Antes de desaparecer entre as mesas do Café Giraldo terá dito para a Sara, que as servia nessa manhã:

- Bem haja esse senhor, estimem-no, há poucos como ele !

Fiquei impávido, e eu que nem o convidara para a minha mesa pois fora ele quem abusiva e ostensivamente nela se sentara, tinha agora uma conta calada para quitar, só em brandys seria uma dúzia deles…


 LIBERDADE ** (by Spatzo) *

Nós ciganos temos uma só religião: a liberdade.
Por ela renunciamos à riqueza, ao poder, à ciência e à glória.
Vivemos cada dia como se fosse o último.
Quando se morre, deixa-se tudo: a mísera carroça ou um grande império.
E, julgamos, naquele momento, que foi melhor ter sido um cigano do que um grande rei.
Não pensamos na morte, não a tememos, eis tudo.
Nosso segredo é este: gozar cada dia as pequenas coisas que a Vida nos oferece
e os outros não sabem apreciar: o amanhecer do dia, um banho na fonte, o olhar de alguém
que nos ama.
É difícil compreender essas coisas, eu sei.
Cigano se nasce.
Agrada-nos caminhar sob a luz das estrelas...
Contam-se estranhas histórias sobre os ciganos.
Diz-se que lêem o futuro nas estrelas
e que possuem o segredo do Amor...
As pessoas não crêem no que não saibam explicar.
Mas, nós não procuramos explicar as coisas em que acreditamos.
Nossa vida é simples, primitiva.
Basta-nos ter por tecto o céu, uma fogueira para nos aquecer,
e, nossas canções quando estamos tristes.

* (Vittorio Mayer Pasquale(Spatzo)-poeta cigano.


“É preciso acreditar. É preciso ter em mente que a água nos benze, a lua nos abençoa, o fogo nos consagra, o ar nos liberta e a terra nos transforma. Só assim teremos os pés no chão, os olhos no horizonte e a mente nas estrelas.”
Descendentes Calon e Kalderash

CIGANOS
Tudo o que voa é ave.
Desta janela aberta
A pena que se eleva é mais suave
E a folha que plana é mais liberta.

Nos seus braços azuis o céu aquece
Todo o alado movimento.
É no chão que arrefece
O que não pode andar no firmamento.

Outro levante, pois, ciganos!
Outra tenda sem pátria mais além!
Desumanos
São os sonhos, também...

MIGUEL TORGA




segunda-feira, 10 de outubro de 2016

389 - TAXISTAS, UBER, GORILAS E POLÍTICOS ...



 Antes de me pronunciar sobre o aceso conflito que vem opondo taxistas e servidores da Uber no nosso modesto país gostaria de, numa breve panorâmica, dar-vos uma ideia da dimensão do problema. Nada melhor que compararmos a grandeza das forças em presença, de um lado os taxistas ou os táxis, que em todo o Portugal, do Minho ao Algarve são todavia em número muito inferior aos que circulam por exemplo na cidade espanhola de Barcelona.

A acrescentar a este pequeno mas não despiciendo esclarecimento deixem-me dizer-vos que na GB um taxista tenderá mais a ser equiparado com um cocheiro da rainha, tais os graus de exigência que em vários planos tem que satisfazer. Um taxista de sua majestade, por exemplo em Londres, submete-se a vários anos de provas e exames que atestem as suas capacidades, não há “Novas Oportunidades” nem facilidades quejandas, não perde mas gasta três ou quatro anos com toda essa preparação e, no fim, terá superado em muito o que entre nós actualmente se exige para a grande maioria de licenciaturas, mestrados e doutoramentos.

Quanto à Uber, sabe-se que nos três primeiros anos de investimento / lançamento do serviço, a nível mundial pois preferencialmente aposta nas grandes cidades do mundo (confesso-me admirado por se terem incomodado connosco) acumulou uns milhares de milhões de dólares de prejuízo espectável, esperado, há que semear para colher, ora só semeia nestes termos ou nesta grandeza quem o tenha, o pilim, o picão, o caroço, a narda, o carcanhol, já viram portanto que isto envolve gente de grana, gente importante, gente da estranja… e quando os lucros do investimento começarem a pingar pingarão aos milhares de milhões e serão mais umas divisas que sairão deste depauperado país onde todos ganham dinheirão menos nós…

Desta vez não se trata de um negócio do Tony da Alameda, que quando as pensões que tinha no Beato deixaram de ser procuradas pelas putas se mudou para a Almirante Reis, tendo mais tarde aproveitado os favores de um tal Robalo ou Vara, inspector de finanças, a quem deixava de vez em quando comer as meninas à bórliu. Diz quem sabe ter sido precisamente quando este Robalo ou Vara foi, em paga de outros favores, elevado a administrador bancário que ele Tony aproveitou a oferta, tendo acontecido que ele, Tony Dos Santos de seu nome e nada tendo de seu nem tão pouco onde cair morto, sacou ao banco uns milhões com que comprou três ou quatro dezenas de táxis que meteu a correr em Lisboa, com tanto êxito que se cagou nas meninas (só lhe traziam xulos, trabalho e conflitos com a autoridade) e, dizem as más-línguas, foi dos poucos que pagou ao banco o que de lá tinha sacado, embora todos saibamos serem os boatos rasteiros e que o melhor será nem lhes darmos ouvidos.

Portanto a luta que se trava é duma dimensão aparentemente inócua mas não tanto, e terá que nos obrigar a fazer escolhas, logo nós que tanto gostamos do recato e que ninguém nos chateie a vidinha, porém desta vez o caso é sério… O progresso tem, paulatinamente, acabado com os homens que aviavam gasolina nas bombas, com os portageiros nas portagens, e ultimamente até os direitos adquiridos dos estivadores têm sido colocados em causa e os respectivos sindicatos incapazes de susterem a sua queda. Muitos destes labregos e grunhos que perderam a vez, ou a oportunidade nas bombas de gasolina, na estiva e nas portagens têm sido cooptados pelo poder local, de longe o maior empregador em Portugal mas, como todos sabemos sem cheta para mandar cantar um cego, sem cheta e sem esperança já que ninguém compra o que têm para vender e qualquer dia levarão o mesmo caminho que algumas juntas de freguesia já levaram, aliás bem poucas, a extinção ou a fusão.

Mas enquanto tal milagre se não dá e já que as câmaras estão agora impedidas por lei de dar trabalho a indigentes, e até a arquitectos e engenheiros, há que dar trabalho a estes gorilas, ora nada melhor que reciclá-los em taxistas, afinal são gente grunha, sem quaisquer pergaminhos ou competências como agora se diz, rudes demais para acções de formação, mas voluntariosos, com bons bíceps, um ou outro piercing e algumas tatuagens que com um pouco de boa vontade poderemos considerar lindas. Não falam línguas mas são rijos para o pé na tábua e são eles quem sabe a sina, o karma, o astral, os caminhos e os destinos de quem os procurar.   

Ora como bons patriotas que somos, e se não os queremos ver aos milhares no desemprego comendo avidamente os impostos que pagamos, o melhor será mantê-los ao volante, já que nada é nosso e em nenhum sítio os poderemos “pendurar”… Quando a PT era nossa, ou a REN, ou a EDP, ou a TAP e a ANA e os aeroportos, ou a Banca, quando ainda eram nossas essas e tantas outras empresas, seria fácil metê-los lá, não fariam nada mas não andariam por aí alardeando preguiça, mostrando os músculos, dando maus exemplos e causando desacatos…

Mas agora que nada é nosso onde os meter ? Quem quer andar com eles ao colo ?  É realmente um problema do arco-da-velha, os portugueses que pensem bem antes de apostarem num qualquer QASHQAI da Nissan, ou num qualquer menino do marketing ou antigo delegado de propaganda médica agora desempregado e que se mete ao serviço da Uber para tentar pagar a letra do carro no fim do mês e, ou, vergonha das vergonhas, evitar que o stand lho venham buscar a casa.

Pensai meus amigos e meus compatriotas pensai…

E agora ide e levai trocos..

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

388 - AMOR, ou N. Senhora de Fátima, é o mesmo…


Pois é, pois foi, foi assim mesmo que a coisa se passou, sucedeu, apesar do escuro que depois se fez média luz e finalmente luz. Inicialmente foi um leve olor, um odor insinuante, o perfume a rosas pela manhã, acabadinhas de regar, orvalhadas.

Só passado algum tempinho, e quando a luz ficou de ficar, média, veio a vista, o deslumbre, a visão, e lá voltou de novo e antes de tudo o insinuante perfume, para imediatamente depois a sensual aparição. Aí já deu para enternecer mais, ainda mais, derreter-me digamos. Nada mais restava ante tal milagre que perseguir aquele odor perfumado até às pétalas orvalhadas e, primeiro farejá-las, aspirar-lhes o perfume, a alma, deixarmo-nos envolver até flutuarmos pairando sobre o fruto da roseira, fruto é como quem diz, flor, flor milagreira e então, após envolvimento que me colocou boiando sobre mim mesmo, aliás mais acertado seria dizer flutuando sobre o roseiral, veio-me arrebatamento tal que senti chegando-me aveludado, porém nada subtil, camuflado sob a forma de um estremecimento ternurento, assim para um sentimento que nos colhe a vontade mas livremente nos leva lá, nos conduz lá.

Digo nós por não por ser caso único, como eu haverá milhares, milhões, a quem ante tal aparição acomete uma metamorfose e, com crente e respeitosa genuflexão, abdicam da vontade própria e deixam-se conduzir pelo arrebatamento do momento, pela emoção e estremecimentos do coração, por tudo que de admirável encerra e existe na paixão.

Não é este o tempo do livre arbítrio, estamos nos campos do desejo, da cegueira, da pulsão, diria que da ressurreição pois fico outro, todos ficamos um outro se a vontade de não sei quê nem sei de quem nos enovela, enleia, atrai e seduz quando pétalas banhadas de orvalho, abertas e perfumadas nos excitam o olfacto, os sentidos e a razão, razão e sentidos que embotam sem remissão conduzindo-nos ou atraindo-nos ao crucial, ou desaire, como um buraco negro suga o universo e toma as rédeas de quem o orbite, captando-o, cooptando-o para si, para seu exclusivo proveito ou antes repartido repasto, gozo, prazer, partilha, comunhão.

Dias inesquecíveis em que a Primavera pode acontecer no Verão, Outono, Inverno, enfim, quando um homem quiser ou se dispuser a debruçar-se com carinho e devoção sobre pétalas de rosa, orvalhadas ou não, perfumadas ou não, ciente ser ele a quem cabe regar em cada dia, cada ocasião o jardim do Éden, as árvores da vida e do conhecimento, o roseiral que lhe devolva em oferenda o madrigal de paixões cuja seiva lhe caberá colher e lhe permitirá dessedentar-se en dépit de la saveur acre e adocicado a maçãs verdes, le merveilleux fruto do paraíso dissimulado em cada roseiral, em cada rosa, em cada pétala, em cada madrigal.

Assim o tomei para mim e me tornei poeta, ou por ser poeta o colhi para mim descobrindo nele um vendaval de paixões irreprimíveis, como se em vez de tocado uma rosa ou beijado as suas pétalas tivesse aberto com ou sem cuidados a caixa de Pandora e agora, liberto de mim me pudesse entregar de corpo e alma tal qual tivesse sido tocado ou bafejado por sagrada epifania.

Sobre os lençóis alvos sorria um mar de pétalas, como se ventania ciclónica os tivesse atravessado um dia e, apesar do arrebatamento inquestionável pairando na luz que dilacerava o quarto numa miríade de questões, apreensões e interrogações, em cada pétala uma gota de orvalho persistia, mantendo o fulgor a frescura e a beleza de cada rosa desse roseiral encantado no seio de um escuro que depois se fez luz, média luz e luz, por fim luz perfumada em que, segundo os anjos, numa manhã, com arrebatamento e paixão num estremecimento desejado e consentido se regou o amor.   

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

387 - XPTO .................................................................


XPTO

Se não é o policia de Olhão,
é outra cena de ocasião,
o bombeiro do Sabugal,
ou o sexagenário de Tentugal.

Tratam-te como a uma criança,
notícias às oito, às treze, às vinte,
as notícias, o biberon, a santa aliança,
estás fadado de eterna criança e de pedinte.

Não darão a Olhão o que é de Olhão,
nem a Sabugal o que pertença ao Sabugal,
das coisas do rebanho não se abre mão,
democracie oblige, uma só mamada p’ra todo o Portugal.

E tu, rindo, cara de parvo, ou de idiota,
marcas o ponto das nove às cinco,
sem um esgar, um vómito, um coice, uma revolta,
tatuas o braço, o peitoral, metes um brinco.

Mas lutas p’la liberdade de género,
comemoras a liberdade, o dia da cidade,
o do primeiro de Maio, o da castidade, o do orgulho gay,
mas nem que vivas cem anos, serás sempre um nulo efémero.

Nem terás tempo para compreender.

Depois o epitáfio,
aqui jaz em paz o Bonifácio,
rico homem, inteligente, um paz de alma,
nem por um momento deu trabalho à gente…


Évora 30 de Setembro de 2016, por Humberto Baião.


quinta-feira, 29 de setembro de 2016

386 - O GRITO ...............................................................


Olhei com atenção aquele quadro famoso “O Grito” pois tinha motivos para tal, estourara-me nos ouvidos, e agora impressionava-me a vista, que grande artista, um expressionista a impressionar-me, quem diria. Cores chocantes, um cenário apocalíptico, uma ponte entre margens que suponho afastarem-se e não juntarem-se, não se fundirem, ele ou ela de mãos na cabeça horrorizado (a) com o que viu, a boca num esgar, será medo, será repulsa ? Não, não me parece, atendendo à espuma dos dias antes a vejo como uma boquinha de broche, como a boca daquelas bonecas de plástico ou de borracha, de insuflar, para deleite de quem não se importa com as margens nem com o apocalipse ou o horror, apenas consigo mesmo e que a boneca não grite porque um grito na ocasião, qualquer grito, seria comprometedor, condenaria à exclusão, ali no segredo do quarto gritos só ele;

oooooooooooooooooooooohhhhhhhhhhhhhhh ! ! !

aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhh ! ! !

e toca a dobrá-la com cuidado para se não romper, e a guardá-la na caixa, debaixo da cama ou no roupeiro, p’ra não se ver, não envergonhar, não comprometer. O grito, a boca, o esgar, o chupar, o meter, o aliviar, o limpar e guardar até uma próxima ocasião, e nada de atrasos que tem aulas às nove e a gaiatagem não se ensaia nada para se meter a fugir mal se ouve o toque de feriado.

Crianças, gaiatos e gaiatas, Lolitas, boquitas, gritinhos, quantos deles enveredarão por belas artes ? Ou pelo cinema, p’la literatura, pelo teatro, pela pornografia ? Vá lá saber-se, dependerá de tantos factores, tantas variáveis, internas, externas, endógenas, exógenas, fulcrais ou insuficientes, dependerá da fortuna (ou não) dos pais de cada um, da religião e da moral, é isso, da moralidade, sobretudo da moralidade, o bibelot dos nossos dias, elástica e ecléctica como a pintam os políticos, falo da ética, a ética não passa duma prédica, não passa disso mesmo, e ninguém grita. 

           Já não se ouvem gritos como antigamente, agora distribuem-se pelas escolas e alarvemente, do básico ao secundário, gratuitamente, camisinhas de vénus. É foder a rego cheio garotada, quem é que, no seu perfeito juizo, se vai lembrar de belas artes, ou ao menos de gritar, quanto mais de pintar…

Isto é liberdade a mais, é libertinagem, é castrar as crianças, capar-lhes a beleza da descoberta, da imaginação, da criatividade, é uma moral de aberração com o aval do ministério da educação. E quando as Lolitas começarem a aparecer prenhas nas escolas ? Expulsá-las-ão ? A sina está traçada, lavar escadas, pedir sopa nos quartéis ou recolher a um dos muitos bordéis clandestinos ou legais que há por essa Europa fora e gritar, quero dizer chupar, e gramar, aguentar, crer, acreditar, ter fé e rezar.

- Berto, quando vieres para dentro traz dois raminhos de hortelã se faz favor amor, tens os olhos vermelhos, lacrimosos, alergia ?

Os bastardos ? Ponham de novo a Roda dos Expostos ou dos Enjeitados a funcionar, em asilos e conventos, restaurem a tradição, fazei workshops, convénios, conferências e outros eventos, candidatem a tradição a Património Imaterial da Humanidade junto da ONU, com o Guterres não deve ser difícil, só não sei se imaterial se material, com tanto testemunho, tanta prova… Verdade que a tradição já nem é o que era, nem a tradição nem a erudição, não nos serviram para nada elites e vanguardas, o charco alarga-se e já nos dá a água p’las canelas, daqui a pouco pelos joelhos, beijando os calções, e quando chegar … chegou onde sabemos, então o grito, raios, coriscos e trovões !

- Não, não é alergia nenhuma querida, antes fosse.

Não é o degelo que nos ameaça, é o desnatar, o desnatar de um certo orgulho e preconceito que se vai perdendo, vogando ao Deus dará num juízo de valor sem qualquer fundamento, é nisso que nos estamos a tornar, num inautêntico tormento.

- Então foi da gritaria querido, ouviste há pouco o grito ?

Mas o grito ouvido, este, tremi quando o ouvi, era aterrador, durou apenas umas décimas de segundo mas deu para notar quanta angústia encerrava, o sangue gelou-se-me nas veias e pousei o regador tentando descortinar por sobre a sebe de piricanta de onde soara aquele grito de desespero que tudo gelara pois no bairro nada se mexia. Recolhi a casa, era sol-posto, arrefecera, chutei as luvas da monda e as ferramentas de jardineiro para onde ninguém as pisasse e porventura se aleijasse e fui direito à salinha onde tenho por mero acaso uma pequena reprodução do “Grito” de Munch, talvez 20X12, uma pequena pagela de altíssima qualidade, oferta, há uns anos atrás, duma parelha de Testemunhas de Jeová a quem eu não abrira a porta. Cortara-lhes a fé pela raiz e à pagela o palavreado da base, uma tira para aí com um dedo de largura sem pés nem cabeça, depois mandara amoldurá-la, à pagela claro.

- Não amor, não foi do grito, foi da poesia …

Pela primeira vez na vida olhei tentando ver para além dele, do grito, tentando alcançar a razão pela qual uma pintura expressionista, talvez a mais valiosa do mundo, tanto nos impressiona, agora que também eu me arrepiara com o grito lancinante que acabara de ouvir e tentei perceber esse grito que me estourara aos ouvidos. Pousei o regador, abandonei os lírios e as tão mimadas Dálias, Coroas Imperiais e Gladíolos à sua sorte e meti-me a ajuizar onde estariam agora os vasos da salsa, do poejo e da hortelã. As mulheres gerem-nos em parceria, e mudam-nos de sítio constantemente, ou acompanhando a sombra ou fugindo da geada, só me apetece gritar-lhes.