quarta-feira, 28 de março de 2018

MÃE, MEMÓRIAS MANUSCRITAS DE UM SOLDADO DESCONHECIDO *

               

MÃE *


Sim era uma Berliet, perdida no Namibe,

entre Xangongo e Ondjiva, ou Ondijiva,

sim, estava ali o camião,

nem à tua nem à minha nem à nossa espera,

mas estava ali, jazia ali, parado, a jeito.

 

No ar areias rodopiavam

folhas, paus, pequenas pedras,

como bátegas de chuva fustigando-nos,

chicoteando-nos o rosto.

 

Semicerrei os olhos,

avancei às escuras, ás cegas,

o sol teimando, vencido,

acendendo chispas nesse névoa vermelha,

traiçoeira, arenosa.

 

Ondas de pressão cortando os sons e

no silêncio do tumulto,

gritos mudos de aflitos, ecos de trovoadas e

pairando sobre as nossas cabeças,

espadas,

empurrando-nos contra a parede.

 

Peguei em ti,

recostei-te contra o rodado da Berliet,

passei o braço pelos teus ombros,

reconfortei-te, enganei-te,

os teus últimos minutos foram mentira piedosa,

contigo gritando apavorado,

espantado com a brevidade da vida.

 

Bem clamaste por ela, e p’la mãezinha mas,

o inferno era ali e nem uma nem outra te atendeu,

nenhuma estava, estava eu, tu lembraste a Fátima,

e a mãezinha.

 

Sim, eu farei por ela, sim dir-lhe-ei quanto a amavas,

as amavas,

sossega,

sossegaste.

 

Arfavas ao  beijar-te a testa,

abracei-te, apertei-te contra mim,

o teu corpo de cera quente ainda,

lembrando-me promessas e velas num altar,

e enquanto o barulho surdo da refrega emudecia,

tu gelavas,

calavas-te e gelavas.

 

Depois fechei-te os olhos,

para que não visses a natureza do homem,

a Berliet tombada,

os destroços em redor,

o adeus dos camaradas,

e chorei…


Humberto Ventura Palma Baião in manuscrito de "MEMÓRIAS DE UM SOLDADO  DESCONHECIDO", Évora, 28 de Março do ano da graça de 2018                   

 








terça-feira, 27 de março de 2018

JOSÉ CARDOSO PIRES, A NEW SMALL STORY


JOSÉ CARDOSO PIRES, novamente ele. Já tínhamos de Vergílio Ferreira a “Conta Corrente”, a “Conta Corrente Nova Série” e os “Cadernos do Invisível”, ou de Saramago “Os Cadernos de Lanzarote”, obras indo além das suas, obras onde é possível, ou quase, dialogar com os autores, compreender melhor a sua obra, as suas razões, o seu caracter, a sua persona.

Era isso que não tínhamos de J. Cardoso Pires, mas a D. Quixote se encarregou de compilar. “Dispersos”, uma colectânea que se estenderá por uma ou duas dezenas de volumes e reunirá textos ou contribuições deste autor ao longo da sua vida, dados à estampa prefaciando obras de amigos, catálogos de exposições, textos dispersos por jornais, suplementos literários e revistas. Enfim, contributos vários de J. Cardoso Pires através dos quais melhor se nos dá a conhecer e que versarão sobre literatura, liberdade, ditadura, artes, desporto, contos, crónicas, cinema, reportagens, diversões e o que mais se verá.
  
O primeiro texto deste volume versará sobre literatura e intitula-se “A Outra Tendência”, datado de 1957 e publicado no Diário Ilustrado poderia ter sido escrito hoje mesmo… O segundo, “ A Estratégia do Requiem” é uma preciosidade que não quero tirar-vos da boca, leiam, comprem e confirmem por vós mesmos. Para os incondicionais do autor e da sua obra uma pérola, para os restantes filigrana de literatura do mestre, inda que duma forma avulsa. À incontornável Fonte de Letras,  * que me deu a conhecer esta obra e este projecto, o meu muito obrigado. 




segunda-feira, 26 de março de 2018

" SHALOM ", SMALL STORY, SHORT STORIES ...


Há horas de sorte, há horas de sorte, não se cansava de repetir o velho soldado por trás do balcão do quiosque agora restaurado, renovado, a que o restabelecimento da circulação ferroviária local e regional dera de novo vida. Mais uns anos e toda a Europa estaria novamente reconstruida.

“Casa Francesa”, assim se podia ler numa tabuleta manual amorosamente pintada e colocada sobre a última prateleira. Tabacos, cigarrilhas, cachimbos, quinquilharia diversa, almanaques, magazines, rebuçados de menta, chupa chupas de açúcar e mel, revistas, jornais, maçãs caramelizadas, amendoins, tremoços, gelados, brinquedos, canetas, óculos de sol, isqueiros e lotarias.

- Sorte na vida, azar no jogo, está em branco meu caro amigo, lixo ?

e ainda não acabara a frase e já a cautela, amarrotada entre as mãos era chutada ao cesto com indisfarçada displicência como coisa inútil.

- Shalom para si ! Nem a terminação ?

- Shalom ! Nem a terminação meu caro amigo, tente de novo esta semana, faça favor de escolher um número.

- É sempre o mesmo, levo o mesmo.

E lá abalou o judeu, apressado e direitinho à Gare de L’Orient após guardar ciosamente a nova cautela na carteira.

De um dia para o outro a vida do velho soldado deu uma volta de cento e oitenta graus, derrubou o quiosque e no seu lugar construiu uma vivenda de dois andares, loja por baixo, a nova “Casa Francesa”. Os miúdos, ranhosos, passaram a ter ama, a andar bem vestidos e apresentáveis, madame Amélie passou a ter criada, o bem-estar da família Poulain melhorava na razão directa das dificuldades atravessadas pelos Aharon Cohen, mau grado toda a recuperação do pós guerra.

À medida que os três filhos do velho soldado Poulain atingiam a maioridade a cada um deles montara um negócio, ao último foi dada a “Casa Francesa”, agora remodelada, maior, mais ampla, muito mais apresentável, confortável e rentável. Constou que o velho Poulain teria tido a sorte d acertar na lotaria, ele que a vendia e nela também jogava. Dizia-se. Soava-se.

A verdade porém era bem mais prosaica e, umas cinco décadas depois, num dia em que os velhos se juntaram ao sol no “Jardin du Paradis” atrevi-me, antes de avançar com a dama no xadrez do tabuleiro, a perguntar ao judeu Aharon se ele sempre tinha jogado na lotaria com o mesmo número, como me queria parecer.

- E ainda jogo, toda a vida tenho jogado. Respondeu-me ele sem tirar o olho das pedras.

- Não era o 0260601915 ? Não é esse ?

- É precisamente esse ! Como é que o meu amigo sabe ?

- Fácil, tirando os zeros é exactamente a data de nascimento do meu saudoso pai, além disso é o número que há uns anos trouxe a sorte ao Poulain, portanto foi fácil decorá-lo.

O judeu levantou-se de um salto e saiu fungando.

Nem Shalom me disse.



quarta-feira, 14 de março de 2018

494 - O MARMITA JORNALISTA E O BEM MAIOR


Em volta da mesa comentávamos uma entrevista dada por alguém sob o tema “O Alqueva corre o sério risco de não ser utilizável já a partir de 2019” * em que o empresário José Roquette acusava os partidos de estarem como sempre estiveram em relação a tudo, num estado de negação sobre a seca em Portugal. “E nem falam da única solução: ir buscar água ao mar” acrescentava ele.

O amigo Marmita, sempre mui sério e distinto, cofiou a barbicha afirmando tratar-se esta entrevista dum alerta bem atento, lúcido e a ter em conta pelas implicações que no Alentejo terá o agravar da situação, com reflexos negativos no abastecimento público, na viabilidade dos investimentos e na atracção turística, agricultura em geral com destaques para a vitivinicultura e pecuária.

           O homem sabe da enxertia, exclamei para o Marmita. 

Eu, como sabem farto de os aturar a todos, contrapus terem sido os ceguetas dos presidentes das câmaras da zona do perímetro da barragem quem, por mais que uma vez tornou a legislação reguladora da zona ribeirinha somente acessível a milagreiros ou a amigos. Alguns desses ignorantes e incompetentes foram promovidos a deputados, como o de Portel. Quando a comunicação social não cumpre o seu papel a tempo e horas é o que acontece... Ninguém fez perguntas, ninguém levantou questões, tudo se agachou ante os barões... Agora chupem... Naturalmente a piada era para o Marmita, ele é que se arroga de jornalista. Mas o amigo Marmita acusando a cotovelada respondeu-me, manhoso:

- Amigo tu que és uma pessoa inteligente e sem compromissos partidários, percebes que isto é uma manobra que interessa a muitos, para dividir o Alentejo, colocando Beja contra Évora. O Alqueva foi a salvação do Alentejo e estas teorias catastróficas só ajudam ao descrédito do nosso território e das nossas gentes. Tu sabes bem como é difícil conseguir realizar qualquer projecto aqui no Alentejo. Infelizmente há sempre alguém disposto a fazer falhar ou desistir. Por vezes há que fechar os olhos a pequenas tricas locais em nome do bem maior que é o Alentejo.

Eu naturalmente retorqui, até porque quem não sente nem é filho de boa gente;

- Primeiro toma nota desta ó Marmita, antes de mais nada o Alqueva foi a salvação do PS, foi feito por haver uma necessidade enorme de ganhar votos para o PS e depois o que não ajuda nada é um povo amorfo, e menos ainda que alguma comunicação social o mantenha ignorante das realidades da terra, eu gosto de jogar aos dados e às cartas, mas com dados de seis faces, ou baralhos com as cartas todas. É difícil fazer qualquer coisa aqui porque em vez de derrubarmos barreiras as erguemos, e por serem os partidos e os seus interesses pessoais e mesquinhos quem cria as dificuldades... No Alentejo ou no país, e quando não vamos a jeito somos acusados de bota abaixo... De não estarmos a contribuir para o bem maior, pois isso ... E digo-te mais ó Marmita, alguém que não eu tem o dever de saber quais os responsáveis pela legislação reguladora da zona ribeirinha do grande lago e conhecer o modo como essa legislação foi criada, modificada, recriada e as razões pelas quais continua sem surtir efeitos práticos...


Disse-o, disse isto numa clara alusão ao papel do Marmita, o jornalista e quem deveria conhecer e mostrar todo o baralho ao invés de o esconder, como ele dizia em nome dum bem maior… Foi o suficiente para se pôr nas putas que é como quem diz dar de frosques, abalar, tanto melhor, eu e o Olavo daríamos conta do almoço.

O bem maior, o que é o bem maior ? Achei graça a essa de ser confrontado com tal teoria, empírica, esdrúxula, ilógica, pragmática, estúpida, do bem maior. O melhor é eu contar como acabou a coisa.

Quem não achou graça a nada do que se passou foi o meu amigo Joaquim pois deve ter ficando a pensar qual e quando será que um destes caramelos, ou os dois adianto eu, lhe aparecerá porta dentro pagando os almoços já que não tendo havido unanimidade quanto ao livre arbítrio ou arbitragem do bem maior eu e o Olavo, de Bensafrim, é lá de xima não pode ser bom, nos levantámos de rompante tendo abalado, um para cada lado e deixado a conta por pagar. Da última vez, e já la vão uma boa dúzia de anos, voltámos passadas duas semanas, dessa ficou o senhor Joaquim a ganhar, pagámos dois almoços cada um, ele servira dois, mas mais tarde alegou juros de mora e prejuízo na expectativa de rendimento, logo justo motivo para indemnização, e fechou-se em copas, aquilo não era a A.R. resmungou, nem ele era a S.S. alvitrou …

Engolimos em seco e calámo-nos, afinal a atenção e os mimos com que nos serve valem muito mais do que estava em causa. Adiante, ou em frente que atrás vem gente como costuma dizer uma amiga minha, por acaso igualmente galega.


A discussão começara logo na definição do que seja o bem maior, teria que ser uma coisa de força, de peso, eu puxara da artilharia que me acudira ao espírito, as lições da Dr.ª Escária Santos, ou da Rosa Silva, já não lembro qual delas, são coisas com quarenta anos, mais, eram assuntos que, tirando Ferrel, a Tv ou a imprensa, nunca ninguém abordava nem aborda, mas lembro-me bem das lições do peso, da densidade, do peso específico, do quilograma padrão, do peso atómico e da massa atómica, a qual ela fazia questão de nos frisar serem coisas bem diferentes, e depois avançava por aí não havendo quem quisesse perder uma aula sua, sua dela, nem quando comecei namoriscando a Luisinha perdia uma aula dela, ou delas, Einstein, E=mc2, a fórmula que mais vezes verão e ouvirão na vida, toda ela ligada ao peso específico, ou atómico, E, energia, é igual ao produto, produto enquanto resultado produzido, da massa ou matéria utilizada multiplicada pela velocidade da luz, qualquer coisa como trezentos mil quilómetros por segundo, portanto meus meninos, se pegarem num berlinde e o atirarem a essa velocidade ao chão deste laboratório originarão uma explosão da qual resultará uma libertação de energia suficiente para rebentar com toda a escola,

- Férias! Eram férias pa todos sôtora !

se ficasse alguém vivo volvia ela, e continuava, agora imaginem que em vez de um berlinde de vidro o seria de algodão, puf, um fiasco, o mesmo não diríamos de um berlinde de urânio, mais “pesado” que o chumbo, pois mandaria Évora e todo o distrito desta para melhor,

- Ohhhhhhhhhhhhhhh, exclamámos todos à vez.

só quero que entendam o valor do peso atómico, as diferenças de peso específico, massa atómica, que entendam que o petróleo, a gasolina, o gasóleo são leves, o produto da sua combustão faz muito mas seriam precisos dois milhões de camiões cisterna explodindo em simultâneo para libertarem a mesma energia libertada em Hiroxima,

- Professora tome esta rosa, é a Rosa de Hiroshima **

- Caluda, não estamos brincando, estou vendo se vocês não ficam estúpidos, estou cuidando se aprendem alguma coisa.


- E a ver se não ficamos como o Relvas ou o PPC sussurrei eu ao Olavo, meu colega de carteira que almoçava ali a meu lado sob o olhar cuidado e atento do senhor Joaquim.

atenção, todos atentos, portanto e recapitulando, é importante o peso, a massa, o peso atómico quando se trata de obter resultados do produto pela velocidade daí que, olhem ali naquele quadro a Tábua dos Elementos, o maior produto se obtenha dos elementos mais pesados como o urânio, o qual tem um potencial de força enorme e cujos segredos estamos agora começando a dominar como se viu em Nagasaki, Olavo guarda a tua rosa, e como se vê pela proliferação de centrais nucleares por todo o mundo as quais, se não bem controladas, pum, ou pim, ou como diria a Sandra plim plim acabou-se chegou ao fim, kabummmm !

- Tás a ver Olavo, A tal teoria do bem maior é uma cagada como foi Chernobil pá,

e foi mais ou menos isso que nos incompatibilizou, ele não gostou da palavra, ou do exemplo escolhido, foi o primeiro a levantar-se, agarrou no telemóvel e abalou, eu segui-lhe o exemplo, o senhor Joaquim ficou ardendo e olhando, feito cara de parvo, pensando de si para si, soubemo-lo mais tarde, estes cabrões deviam ter ido para Fukushima ou para a puta que os pariu.
A verdade é que o Olavo foi sempre um esquerdista pouco democrata, ou por outra, democrata desde que todos fizessem o que ele desejava no que não era muito diferente do bochechas, tudo bem desde que façam o que ele manda, e eu não lhe estava a ir ao jeito pois a teoria está enferma de inúmeras incongruências;

O que poderemos considerar ser o bem maior ?
Quem decide o que é o bem maior ?
Decidem os eleitos ? Um eleito em especial ?
Porquê esse eleito ?
Que tem ele a mais que outros ?
Quem lhe outorgou autoridade para tal ?
E o povo ? E os representantes na AR, toda a AR ?
Porquê esconder / ignorar algo em nome do bem maior ?
O escondido ou ignorado não poderá ser um bem maior ?
E a democracia ?
E a transparência ? 

Será que não temos direito à verdade ? Porque é então o Alentejo a região mais atrasada do país mais atrasado da Europa ? Será isto o bem maior a que temos direito ? Teremos nós os piores políticos ? A julgar pelo estado do país e do Alentejo é justo que assim pensemos mas o Olavo já se pirara, e o Marmita muito antes dele, e muito antes porque arrasta um peso enorme na consciência, como se arrastasse umas grilhetas de bola de ferro, um problema de incompatibilidades, logo de transparência, é que o nosso amigo Marmita, dito, referido e conhecido como "jornalista", mantinha na sua página duma rede social alusões a uma sua ligação a determinada instituição, alusões que em 8 de Setembro tinham sido retiradas, contudo, uma análise actual à secção "sobre" deixa ainda ver essa alusão, agora referida como uma ligação "anterior" todavia, anterior ou não, existiu, portanto ele pecou.

Digo-vos isto para que saibam que eu não minto, nem tão pouco brinco em serviço, conto-vos para que também se riam, se riam e vejam até que ponto estamos necessitados de coerência, os que a devem praticar e os que a devem exigir, porque ambos parecem ter esquecido o seu papel, o papel de cada um. Ainda não vivemos no reino da Dinamarca e até um velho jornal, tem que ser respeitável e renegar a desfaçatez. Um jornal deve respeitar o público leitor a que se destina e albergar gente respeitável. Mas não senhor, um dia destes dei com a pérola que vos acabei de contar, um dos subdirectores ou vice-directores, é, em simultâneo e sem que isso o incomode minimamente, vogal de uma instituição privada, propriedade de figura pública cuja filiação partidária é sobejamente conhecida de todos e que, comummente surge reportada (por tudo e por nada) nas páginas do dito diário.

Que tal desrespeito não incomode os leitores é o que me incomoda a mim, a mim que sou uma besta, até embirrante, isto para não vos dar conta de ápodos piores. São 17:37h de quarta-feira 14 de Março, acabei de confirmar a pagina pessoal do amigo Marmita, “jornalista”, onde ainda persiste essa alusão à entidade a que o liguei e à qual por dever de isenção e de ofício nunca se devia ter submetido. Que dirá acerca disto a lei de imprensa que tanto gostam ele e o seu jornal de invocar ?

Coerência e integridade precisam-se...

Coloquem anúncio… Encontrem-na…


Já no que concerne à tal entidade, não percam tempo, nem um nome lá aparece apesar dos mui vastos e certamente “mui dignos” corpos sociais daquilo tudo tresandarem a transparência…

É preciso coerência, é preciso que não haja contradições entre as palavras e os actos, até eu levo isso a sério neste blogue onde, por princípio brinco, mas com respeito, respeitando-vos até quando mando alguém à merda, o respeito acima de tudo.

Reclamar ?

Que reclamem, mas não é a mim que devem apresentar ou fazer as vossas exigências.






ROSA DE HIROSHIMA

Canta Ney Matogrosso, compositor: Vinícius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexactas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas

Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioactiva

Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atómica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada.


sábado, 10 de março de 2018

IMAGINEM, NEM OS ÓCULOS SE PARTIRAM …



Aproveitei o interesse de todos pelos óculos, em especial a curiosidade dele, por mim usada como manobra de distracção. A dissensão estava a subir de tom, e o orgulho não me permitia aturar-lhe as provocações sem as castigar, sem lhas fazer engolir. Medi-o bem, era deveras mais alto, entroncado e pesado que eu, a coisa pedia uma estratégia adequada e rápida, quanto mais tempo passasse mais riscos correria, mais enxovalhados ficaríamos, ele e eu, trocando impropérios e provocações como duas varinas. Eu sou mais de acção que de conversa e o interesse dele e de todos nos óculos deu resposta às minhas preces.

Eram uns Ray-Ban que trouxera de Durban, de onde chegara nem haveria meia dúzia de dias, uns Ray-Ban modelo aviador que, segundo me apercebi estariam na moda por todo o mundo. Já os vira na montra da Casa Havaneza, caríssimos, quase dez vezes mais do que me tinha custado por isso não me custou sacrificá-los, tirei-os da cara, não fosse alguém julgar estar a esconder-me cobardemente atrás deles para evitar a luta. Nem me lembro bem do motivo mas tornara-se claro que a luta era inevitável e só um cobarde viraria costas. 

           Eu estava na tropa, estava de licença, já era homem, ele seria da minha idade, quando muito haveria entre nós a mais ou a menos, dois a três anos de diferença, para mais velho ele talvez, e mais corpulento e alto, era bem mais alto que eu. Escrever esta história não é nada de que me orgulhe, eu estava na tropa, tinha boa preparação física, tinha chegado de Durban em férias, ele estava claramente a ofender a minha honra, de homem e de militar, tornara-se óbvio estar a pedi-las, e a luta inevitável, só um cobarde viraria costas. Embora também ele fosse militar, também ele soubesse tão bem quanto eu que devíamos evitar este tipo de confrontações, pois seriam as nossas armas a sair chamuscadas com este tipo de comportamento. Mais a mais as nossas especialidades no caso de sermos levados à barra da justiça só nos trariam agravantes. 

Bem mas voltando aos óculos, peguei-lhes nas hastes, rodei-os frente aos olhos de todos, por fim frente aos dele:

- Não são só bonitos, também são inquebráveis, reparem !

e mal acabara o reparem atirei com os óculos ao ar, bem alto, e eles lá foram subindo, rodopiando e subindo às cambalhotas, às voltas, o pessoal expectante, olhando-os, aguardando que a trajectória se invertesse , eles começassem a descer a descer até se estilhaçarem nas lajes de granito do passeio onde a maralha fizera roda.

Aproveitei esses segundos de expectativa e distração para lhe assentar um certeiro pontapé nos tomates e, ainda ele nem tivera tempo de se encolher enfiei-lhe dois ou três murros na cara, olhos e nariz, para o cegar e meter a sangrar abrindo-lhe uma torneira que o assustasse e desorientasse, a fim de o arrumar depressa e com pouco esforço. Tinha-o atirado ao chão com uma bateria de murros bem dados e melhor apontados e um simples pontapé, que porém me deixou a canela a doer como o caraças, tudo em menos de um minuto, sem estrilho, sem barulho e sem alarde.                                                                                                         
Depois baixei-me para o ajudar a levantar-se e foi aí que ele agiu, eu dera a luta por terminada e nisso fui parvo claro, a luta parara ? Já tocara o gongo ? Ou continuava ? Para ele continuava, eu dera-o por satisfeito com a pancada que levara e afinal não ficara, ele não ficara nada satisfeito, ficara envergonhado e agiu para tentar ganhar a luta e salvar a honra e, quando me baixei para o ajudar a levantar do chão agarrou-me pelas abas do blusão ergueu-se e deu-me uma tão inesperada quão valente cabeçada. Meteu-me os dentes para dentro. Rasgou a testa claro, verdade, sovei-o bem, levou-as, mas ele também me deu, nem nos podíamos ver quando brigámos, nem antes nem depois, como vos disse nem me lembro bem do motivo mas ele estava a pedi-las e não levei nada a mal, só fiquei sem dentes, nem os óculos se partiram, nada de que me orgulhe.

Naquelas alturas a gente age até sem pensar, não houve cobardia, ele levou e também quis dar, também deu, armámos uma cena à porta do Café Portugal, tudo cheio de gente, e ele tinha que salvar a honra porque a vergonha já ninguém lha tirava de cima. Meteu-me os dentes para dentro, salvou a honra, que caraças se não nos tivessem separado não sei como acabaria, ele também era rijo. Acabámos os dois metidos na mesma ambulância dos bombeiros que entretanto alguém chamara, ambos sabíamos, o melhor seria pirar dali, a bófia não demoraria a chegar, nenhum de nós tinha explicações a dar nem as quereria dar. Acabámos tendo que dá-las à má fila ao agente de serviço na urgência, mas dias mais tarde quando convocados a comparecer no posto já nenhum de nós estava em Évora, quer dizer eu estava mas alguém telefonou a dizer que voltara para a Africa do sul, ele era alfacinha e voltara a Lisboa, pelo menos assim me contaram posteriormente.

Foi a ele que surpreendido vi há dias estacionando nas cercanias do café que frequento, arrastando os pés, parecendo ter o dobro da minha idade, ambos nos olhámos e hesitámos, depois estendemos a mão um para o outro mas não chegámos a apertá-las, abraçámo-nos. Sempre era verdade, vive em lisboa, tem problemas renais e faz hemodiálise coitado, convidei-o, que não que não podia beber, ia ali à clinica dos bancários ter com um nefrologista de primeira para uma consulta, falámos um pouco, acompanhei-o, rimos com o acontecido há quase quarenta anos, que sim, mal saíra do hospital rumara a Lisboa para evitar chatices e dali para a Guiné, ele, eu ainda voltei para Durban durante dez meses, depois regressei definitivamente. 

          E os óculos Baião, não caíram no chão, alguém meteu o pé e os aparou, com a confusão nas urgências entregaram-mos a mim, fiz por eles, usei-os uma boa catrefa de anos até se partirem de velhos, obrigado, cá o amigo agradece.

Voltámos a rir-nos, abraçámo-nos de novo e despedimo-nos, mas trocámos contactos, não ficaremos outros trinta e muitos anos sem nos vermos.