sexta-feira, 5 de abril de 2019

593 - O PORTINHO DO CANAL , by Luísa Baião *


Portugal afundar-se-á um dia dizem-no agora os números que há muito o bom senso conhecia. Há tanto quantos os anos que Milfontes eu não via e, enquanto a água para o mar corria, floresceu esta vila de tal maneira que se tornou um espanto. E tão harmoniosamente cresceu que vila já não me pareceu, antes trabalho laborioso bordado por cerzideira abnegada, animada e esperançada em mil amores.

Não é um malmequer que se nos oferece à chegada, antes um roseiral onde qualquer de nós se perderá endiabrada no meio de mil casinhas perfumadas, por caprichoso beiral rematadas e onde o desacerto dos homens ou bolsa endinheirada não logrou ainda erguer aos céus a sua ânsia ávida que, por todo o litoral se ergue como hirto falo da ganância.

Linda é ainda essa vila de mil fontes salpicada. E para tesouro lhe chamarmos só falta mesmo uma outra estrada que a ela nos conduza, que sereias cantem uma Ode a quem Mira sua beleza, a quem não escusa suas águas pois não são só elas que ao partir nos deixam mágoas.

Nem tão pouco as fráguas que delas afloram, tornando mais belas as viagens que nos oferecem miragens de corpos em oferenda a hélio, ilusão de verão de resultado méleo, fruto dos modernos valores que a muitas toldam a razão. Há bem mais de vinte anos que a ninguém lembra cuidar dum regaço de areal entre a marginal e a orla espumante, onde nem o suave rebentamento das ondas o pensamento nos salpica. Espaço de ciganos e ciganas, espaço nosso, fugitivas da rotina e dos enganos, espaço que a preguiça estica em evasivas de avestruz não consentidas. Que alguém a esse palmo de terra faça jus.

Frui esses curtos dias, vi fitas, ouvi melodias mil e mil frutos do mar quis devorar. E foi pelo pecado da gula que, não encontrando na vila onde me saciar, gentios astutos me alvitraram rumar ao Portinho do Canal. Descontente com esse tacanho modo de servir ou entender que felizmente já poucos teimam em manter, enfunei as velas e rumei ao sítio onde todas, mas todas, aconselho, desde o primeiro dia devem ir.

Uma cozinha com brio que nunca ofereceu fastio, suporta típica balaustrada sobre um mar onde nem uma barquinha se sentirá abandonada. Para as acolher o canal, para nos acolher esse beiral gastronómico, sem baixela de cristal mas com um menu em estrela e de sabor astronómico. E, enquanto em aleivosia as ondas da maresia formavam castelos de espuma, coisa alguma atormentava os meus manjares de rainha, inda que uma Tv em ladainha omnipresente, teimasse moer a gente.

 Num hemiciclo homens falavam, repetindo à exaustão um pesadelo, um quinhão que há muito a todos cansava, enquanto ali mais ao lado a serra ardia sem apelo. Há muito deixei de os ouvir, não vale a pena o flagelo. Será mais fácil um camelo carpir com desvelo sentido a perda de um qualquer bandido, que ouvir esses sonantes falar sem que nos tenham mentido.

Virei o olhar para o mar, onde reflexos raiados na crista de ondas montados lembravam lindas estrelícias, enquanto suave ondular trazia até mim sonhando, blandícias de encantar que me deixaram cismando.

Quão mais olhava e cismava melhor via sobre as águas, jardins, canteiros e arranjos, como se todos os arcanjos se tivessem combinado p'ra tornar o mar matizado de odores brejeiros emanados de jasmins nele bordados.

Barcos de todas as cores desfraldavam as bandeiras c’os nomes dos seus amores em cores azul-turquesa e rubi de amoras copiados, misturando corações em framboesa pintados, dando alma a cada mestre e a cada leme plantado. Dois cães, dois amores-perfeitos em correria por ali rematavam este quadro que vos conto porque vi, não por estar em esquadro armado ou cavalete empoleirado.

Vá ao Portinho por mim, que deixo recomendado, é apontar ao Cercal, o resto é caminho andado.
  

* By Maria Luísa Baião, texto inédito, escrito às 16:25 h duma sexta-feira, ‎22‎ de ‎Julho‎ de ‎2009 em Vila Nova de Mil Fontes, ‏‎após lauto almoço comigo, seu marido, e o nosso comum amigo Francisco Pândega, precisamente nesse restaurante.  



quinta-feira, 4 de abril de 2019

592 - ESPERANÇA NAS ESTRELAS ! texto inédito, by Luísa Baião, quarta-feira, 9 de Setembro de ‎2004 *

                



Quem sou eu que neste canto nasci, menina e moça me tornei, aqui cresci, meditei, sofri e deambulei. Me fiz mulher me fiz mãe, me impus um querer, e medrei ?

 Passei as passas dos infernos, praguejei contra os Invernos, nasci com a vida torta em casa de estreita porta, valeu-me uma alma rebelde e uma vontade indomável de endireitar esta vara cuja alma Deus alara.

 Passei essa estreita porta que alguém me quisera impor, como fluído em retorta, sublimei e, sem desdém, caminho altiva sem receio que em meu redor qualquer actor minimize o papel que com amor desempenhei, qual invectiva defensiva de quaisquer censores mundanos, contra labor que abracei com o furor de um marçano jurando morrer gerente e disso fazendo lei.

 Sem causar dano, só bem, também luto com primor e contra o mundo me bato, qual pretor que, com rigor, impõe a si mesma a grei, e, ao cabo dos trabalhos ainda me resta frescor, levo a vida com humor e, creiam-me, apesar do tanto que corro, não será disto que morro.

 Roguei pragas, rezei preces, sarei chagas. Lambi as benesses do meu ser exangue, sou hoje o resto do que paguei em sangue, em suor, em lágrimas de dor. E perguntarão vocês a que propósito hiperbólico vem esta história cismada, pois que se saiba trabalho não significa delito ou enxovalho, ainda que, sabem-no bem não é profecia, por vezes p'ra mais não chegue que barrigadas de nada. E não sendo assombradiça ou na magia fiando, revoltando-me ser submissa, resta-me no vaivém da vida esforçar-me por me ir lembrando de quem comigo porfia.

 Mania minha, dirão, fervor de crente alinhavo, pois não será qualquer paspalho que atrás desta orelhinha me jogará o cangalho. Meu amigo é quem me ajuda, quem me acode se sisuda nem me aceita carrancuda, aos outros direi – caluda ! - Só escutarei quem partilhar este meu porto de abrigo, inda que seja um mendigo.

 Alguém um dia pintou estrelas no firmamento, alguém deu asas ao vento, libertou o pensamento. Alguém agora impulsionou vendavais que, como novos ideais, inspiram arraiais e mobilizam no cogito forças tais que nem cem, mil, carnavais igualam. Ideais que já foram, que de novo cavalgam o nosso agir, pois há que assegurar o porvir, assinalar o devir. São velhos novos ideais, velhos novos faróis, sóis...

 Acendamos novamente esses faróis, esses modos de pensar, esses catassóis, altares, esses mares por explorar, que são vera protecção contra o calcanhar de Aquiles do egoísmo, do individualismo, esses tumores ablativos a expurgar. Ergamos alto um farol claríssimo, na claridade apostando, exigindo reflexão, no rigor teimando e da crítica e autocrítica religião fazendo.

 Quem foi que manifestou uma flagrante actualidade de pensamento, quem foi que nos deu forças para novo impulso ? Quem foi que nos lembrou a hipótese de negar o patíbulo ? O tormento ? Quem defendeu essa tese ? Quem foi o mandante ? Quem foi o caminhante ? Quem disse e redisse que o caminho se fará caminhando ? O aprender, fazendo ? O querer querendo ? Quem foi que ousou ?

 Quem plantou as estrelas no céu ? Quem foi que nos deu a esperança ? Quem foi que disse ser possível o pensar autónomo, o pensar por nós mesmas, não como autómato ? Quem foi que disse ?

 Por isso afirmo e reitero que se todas aqui estamos gozando da mesma esperança, em vez desta contradança a que o fado nos conduz, se com agrado e com esmero eu achasse quem um bolero lhe cantasse, sem exagero vos diria valer a pena a franquia e dar por bem gasto o dia.


 Imagem relacionada

  

* By Maria Luísa Baião, escrito quarta-feira, 9 de Setembro de ‎2004, ‏‎‏‎pelas 21:42h e somente publicado no Facebook em 10 de Outubro de 2011.  

quarta-feira, 3 de abril de 2019

591 - TUDO TEM UM FIM, By Maria Luísa Baião *

 

            Quando esta crónica vir a luz do dia serão vésperas do momento de reflexão que antecederá as eleições para a Presidência da República. Espero sinceramente que os portugueses não se demitam das suas responsabilidades e compareçam em força no dia das urnas, debitando o seu precioso voto nas mãos do candidato que melhor preencher as suas aspirações.

É que a nossa democracia não pode contar com mais ninguém que nós próprios, e se é verdade que através do voto elegemos os nossos representantes, é também verdade que não o fazemos para que eles venham a votar por nós. Não devemos aceitar ter passado cinquenta anos a exigir eleições livres para que agora nos venhamos a dar ao luxo de as menosprezar, Salazar daria certamente duas voltas na cova, morreria mesmo de riso se não estivesse já morto, ao constatar que afinal ele é que tinha razão e conhecia os portugueses melhor que qualquer um.

Abominemos portanto a abstenção, utilizemos o voto, que é a arma do povo, castiguemos com mão pesada todo o político que nos mereça indiferença, mas por amor de Deus não brinquemos ás democracias ! A menos que a nossa revolta seja tão grande e a indignação tão profunda que só pela força nos possamos ressarcir da desconsideração sofrida. Mas aí atenção, teremos que trilhar caminhos mais duros, porventura mais trabalhosos que o simples acto de votar, caminhos que nos poderão tragar, caminhos de revolta, de revolução, e é por demais sabido que os primeiros que uma revolução devora serão sempre os seus filhos mais dilectos.

Mas se não é esse o caminho escolhido, se a ETA ou o IRA, (para não citar outras fontes de luta e sublevação violenta) não seduzem, então leitora ou leitor aproveite, dê um passeio com o seu marido ou esposa, leve as crianças ao parque ou ao jardim, beba uma bica, converse com os amigos, e de caminho dê um saltinho ao local habitual e vote. Lá encontrará outras amigas e amigos com quem poderá carpir as mágoas desta tão pesarosa democracia. No entretanto terá cumprido o seu dever de eleitora, ou eleitor, terá colocado um ponto final nas suas apreensões, por agora o seu dever cívico está cumprido, não esgotado, tudo tem um fim, por esta vez a tarefa estará terminada. E bem vistas as coisas não custou nada e até foi agradável não foi ?

Na realidade tudo tem um fim, também irá deixar de contar com estas minhas crónicas que semana a semana tanto prazer me têm dado. Como bastas vezes afirmei, elas são, foram, o meu modo de estar consigo, de privar consigo, de superarmos o tempo que não temos para que possamos, pudéssemos desfrutar de alguns momentos de conversa, de intimidade, que em especial a mim tanta satisfação têm dado. Outros compromissos me obrigam a esta atitude, ponderada, reflectida, difícil, mas inadiável. A todas as leitoras e leitores deixo a minha consideração e o meu agradecimento pelo carinho e compreensão que sempre me demonstraram, creiam que não vos esquecerei.

A este semanário, que de forma tão desinteressada me abriu as suas portas muito tenho a agradecer, da disponibilidade à aceitação incondicional dos meus escritos, que nunca foram objecto da mais pequena observação, critica ou censura, até a alguma notoriedade e reconhecimento público que o IMENSO SUL me permitiu, tudo isso lhe devo, e respeitosamente agradeço.

Nunca esquecerei terem sido aqui as minhas iniciação e exposição pública de quanto de íntimo me ía na alma, uma aventura que se transformou numa necessidade e mais tarde num vício do qual tiro o maior prazer, o prazer de poder estar com todos vós. A este semanário, a todos os seus elementos e colaboradores, deixo o meu muito obrigado e os votos das maiores felicidades. O IMENSO SUL será para mim eternamente um ponto de referência, que, como habitualmente, não deixarei de acompanhar como leitora todas as sextas-feiras.

A todos vós um grande xi coração.


* By Luísa Baião, escrito domingo, ‎7‎ de ‎Janeiro‎ de ‎2001, pelas 22:22h e a última publicação no semanário IMENSO SUL, ‏‎ tida lugar a 12 desse mês.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

590 - O REVIRALHO ... by Maria Luísa Baião*****


O meu avô Zé, por quem sempre nutri enorme carinho, contava-me, sentando-me quando menina nos seus joelhos, histórias da República que eu então não entendia, mas cuja sonoridade me tolhia, me prendia a atenção, curiosa dos finalmentes, sempre imbuídos de uma sabedoria que apurara no decurso da sua longa vida.

Recordo uma das suas histórias a propósito de um “cavalheiro de infantaria”, homem com longa experiência da derrota mas com um profundo conhecimento deste povo, o que lhe permitiu ver o que ninguém queria ver; que mais ninguém que não ele iria ganhar aquela prova. Só ele acreditava numa tão evidente verdade, tão evidente que nenhum outro nela queria acreditar.

De tão incrédula  essa verdade tornara-se absurda, pelo que enquanto uns esperavam que a vida passasse sentados nas soleiras das portas, outros entretinham-se perseguindo ilusões e ideias disparatadas.

Entre estas duas posições, tão opostas quanto antagónicas, flutuava no centro um numeroso e volúvel grupo de indecisos, sonhando carreiras e contando cadeiras para curar insónias, gente a quem o mau dormir aconselhava esperar um messias que se perfilasse no horizonte como vencedor, para nele então votarem.

Alguém gritou que como de outras vezes as eleições seriam uma palhaçada e qualquer que fosse o palhaço o circo seria sempre o mesmo. Uns não quiseram acreditar, outros houve que não acreditaram porque não quiseram, sendo que os mais cépticos logo trataram provar através de dogmas e axiomas quanta mentira havia escondida em tamanha verdade.

Pelo sim pelo não e não fosse a verdade provar estar errada, mandaram-se vir da estranja especialistas solenemente importados com esse fim, e que projectaram metódica e arbitrariamente os ganhos e as derrotas de cada parte para gáudio dos incréus.

Assim, enquanto uns se posicionavam à direita e outros à esquerda, os crentes na vitória de que todos duvidavam, foram, por razões que só a eles convinham advertindo o povinho e o povão do caos em que a Pátria cairia no caso de outros triunfarem, pelo que o seu próprio triunfo se celebrou com semanas de antecedência. Contudo, e porque no fundo nem eles acreditavam na verdade com que nos mentiam, foi consultado um oráculo, figura que não tendo vingado no caldo das meias verdades, se vingou tornando-se vidente, evidente que se tornou não ser sua especialidade a isenção, nem ser essa a intenção. Ditando pragas do alto do pedestal ajudou a cerzir o destino que é de todos nós, coisa que todavia muitos só iriam descobrir mais tarde. Adiantando-se dessa forma ao triunfo logo ali quebrou o jejum e o luto por vitória a que nunca conhecera o sabor, mas que reconhecia noutros a quem recomendava como quem receita um sonífero.

 Uma vez solta aos quatro ventos a profecia uns morreram logo ali, outros quedaram-se estáticos frente aos televisores fingindo uma surpresa que já não o era e tentando com esforço e gestos desesperados afastar de si o céu que lhe caíra em cima. Tal desiderato foi, para a menor maioria que a história alguma vez registou, um alívio. Para quem esperava se perdesse ser mandado para a Sibéria despojado dos bens ou despedaçado pelos esquerdistas, foi na realidade o acordar de um pesadelo que os atormentava.

Assim se salvou a Pátria, assim se evitou que os bancos fossem assaltados por avaros receosos que lhes confiscassem o dinheiro, e mesmo sem fronteiras, terminou para muitos a trabalheira de colocarem o dito a bom recato lá fora. Os aeroportos não se lotaram de fugitivos tementes pela própria vida. O país estava salvo, não houve necessidade de jantares secretos, de reuniões politicas nem do traçar de planos de desestabilização económica ou derrube de governos.

Não deixaram de fazer o habitual e patriótico brinde pela esperança na nação, aliviados que ficaram todos por não terem que empenhar os seus pecúlios p’la restauração da ordem e da autoridade. Um último recurso, em que até mesmo os vencedores tinham pensado num assomo de coragem, o golpe militar, estava literalmente de parte por desnecessário e fora de moda.

Haviam conseguido o que eles mesmos julgavam impossível, levar a esquerda a morrer por ela própria enredada em atribulações e questiúnculas de quem não tem grandes interesses a defender nem rasgos de inspiração ou imaginação quando no poder.

A sua ambição era grande, já possuíam os meios de comunicação mas faltava-lhes o que agora obtiveram, poder. O meu avô Zé não conheceu Andy Arnhol, a quem teria dado razão, provou-se mais uma vez que até o mais desvalido tem na vida os seus cinco minutos de fama. 


‎***** By Maria Luísa Baião,‎ publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" a 22-03-2002. Alusão à vitória de Durão Barroso nas eleições de 2002 após a fuga de António Guterres que abdicara.  

589 - VISADO PELA CENSURA by Luísa Baião *


Naquela manhã cinzenta que o nevoeiro teimou em colocar-me à frente, outra opção não tive que contrariando-o, virar à esquerda e enfrentar recordações que fizera há muito por esquecer mas que não deixam de estar entre as mais marcantes dos meus tempos de menina e moça.

Virei à esquerda para Sines, terra ditosa que há mais de trinta anos colocara fora dos meus roteiros, terra que me traíra na sua caminhada cega para o progresso. Sines foi sempre para mim a cidade mártir das incongruentes e inconsequentes políticas do estado novo, foi de todas a que maior descaracterização sofreu às mãos de uma oligarquia perdida no tempo e no espaço, cujos sonhos labregos de grandeza vieram a fazer dela o maior dos nossos elefantes brancos.

De qualquer modo não me intimidou aquele nevoeiro, nevoeiro que, sabem-no os deuses, tantas e tão gratas recordações esconde no seu seio. Rapariga, maria-rapaz, ali passei imensas vezes as minhas férias cujas manhãs nebuladas aproveitava para tudo que não fossem os mergulhos regulamentares e a que as educadoras nos obrigavam pacientemente.

Era pois nessas manhãs que me escapulia, que nos escapulia-mos para a lota, ver o pescado e a faina tão diferentes das ceifas e debulhas do nosso Alentejo interior, ou para a “praia do norte” e para o Farol, revolvendo as rochas na mira das conchas esféricas de ouriços-do-mar mortos ou de estrelas-do-mar que depois colocávamos a secar até perderem o cheiro nauseabundo e ficarem duras, hirtas, braços bem separados, que trazíamos como recordação para este mar seco da terra em que vivemos.


No regresso sempre em cima da hora do almoço, buscávamos ainda à pressa, descortinar o invisível campo de nudistas que se dizia haver na praia do norte, reservado exclusivamente a estrangeiros mas com o qual nunca fomos capazes de dar, como se o mesmo envolto na bruma, com ela se dissipasse como se dissipavam os nossos desejos de espreitar os nus, acelerando o passo, por vezes carregadas de conchas e conchinhas com que teceríamos os colares de pérolas da nossa imaginação.

Adorei Sines, também porque gostava de cavalgar pelas ameias do castelo sobranceiro à praia e depois descer correndo em tropelia e desafio o labirinto que era aquela estrada com curvas e contra-curvas levando-nos da vila à marginal a perder de vista a qual, bordejando o mar dava ao lugar toda a intimidade e aconchego que noutras praias nunca senti. Hoje nada disso é visível, a praia deformou-se, a montanha que a aconchegava a sul dando-lhe aquela característica de anfiteatro virado ao mar desapareceu há muito devido às obras do porto, como desapareceram os cruzeiros que víamos passar ao longe na linha do horizonte e cujas rotas mentalmente acompanhávamos em jogos de geografia e fantasia a que nunca faltou um príncipe encantado.


Hoje damos de caras com petroleiros enormes, usurpando cenários que lhes não pertencem, dilatando a afectividade do lugar até ao impossível, conspurcando as águas com a sua baba de crude. E se voltarmos a cara num repente, enojadas, revoltadas ou desiludidas, damos de caras com centrais termoeléctricas e fumarentas, pirâmides de carvão com toneladas, dúzias de depósitos de refinados e sobretudo com um nevoeiro ácido, proveniente de nuvens filhas de chaminés violando tudo, até a nossa memória.

Adorei Sines porque maria-rapaz podia dar-me ao luxo de escolher um dos dois cinemas que ela tinha, um salão e uma esplanada, esplanada que aos fins-de-semana se transformava em alegre lugar de baile e fantasia, onde despedacei corações ao mesmo ritmo com que me calhava chorar baba e ranho. Ali encontrei os meus primeiros amores, esquecidos uns, inesquecíveis outros.

Sines a terra do Gama, já não cheira a peixe e a mar, mas sim a bóstia de alcatrão, sendo que a dor e o sangue estão também gravados na recordação que dela tenho. Corria Agosto do ano anterior àquele em que máquinas medonhas transformariam a paisagem naquilo que ela é agora. Era o mês da procissão que eu vira tantas e tantas vezes e que percorria não a terra mas o mar, benzendo barco atrás de barco até nenhum ficar esquecido e a Senhora pisar terra, no que era acompanhada por foguetes. Nesse ano não se ouviram foguetes mas tiros, pescadores foram sovados na praia, pisados por cavalos e mordidos por cães para tal treinados, o vermelho das colchas foi trocado pelo vermelho do sangue, e tudo tão só porque as bandeiras que os pescadores ousaram erguer nesse dia eram negras.

Ninguém soube, ninguém mais que aqueles que nesse domingo faziam praia. Nem jornais, rádio ou televisão deram notícia dos factos, o poder calava-se, e enquanto se calava eu abria os olhos. Hoje, por cá, também o poder se cala como se não nos devesse satisfação alguma, como pensam vocês que me sinto ?

‎* By Maria Luísa Baião,‎ escrito segunda-feira, ‎6‎ de ‎agosto‎ de ‎2001, ‏‎pelas 20:09h 
e publicado no Diário do Sul, rubrica "KOTA DE MULHER" nos dias seguintes.