No momento em que, sem
hesitações lhe espetaram o facalhão na garganta eu arrepiei-me, e, ainda que a
faca não tenha sido enfiada até ao cabo o sangue jorrava em golfadas, e
arrepiei-me de novo ao sentir rodarem a faca, como se fosse em mim que a forçavam, arrepiei-me uma terceira vez quando a faca, digo o facalhão, foi
retirado e atrás dele mais sangue jorrou ainda, esguichava-lhe e escorria-lhe
pelo pescoço quando o meu pai lhe procurou o buraco da primeira facada com os
dedos aí introduzindo outro facalhão, de lâmina brilhante e muito mais larga
que a primeira, havia que alargar o golpe e sangrá-la depressa.
A tudo isto eu assistia
encostado à parede, melhor, colado à parede, enquanto ela gemia, já só gemia,
estrebuchara imenso, mas dois homens fortes tinham-lhe colocado os joelhos na
barriga para se firmarem e agarraram-lhe com denodo os membros bem atados. O
pior tinha sido a atrapalhação do meu pai, mangas arregaçadas, o suor ensopando-lhe
a testa, fácies tenso deixando antever os dentes, pequeninos, as mãos pingando
sangue, escorrendo sangue, gritando aos homens, ordens curtas, precisas, um
último grunhido, minha mãe aparando o sangue num alguidar de barro, a avó
Inácia doseando o sal para que não coagulasse, coalhasse ou a rechina não
sairia boa, a tia Aia picando a salsa e os alhos para a parte destinada a
coalhar e a ser cortada em cubos miudinhos e transformada num petisco.
Homens acudiram à forquilha
e aos tojos que, ardendo musgariam a marrã a fim de, com raspadeiras
improvisadas lhe retirarem as cerdas, o lume foi chegado às patas e os cascos
arrancados fumegantes, eu e outros miúdos lutámos por eles para lhes roermos o
sabugo, a marrã inteiriçada, depois lavada até ficar luzidia, dependurada em
dois postes atados em X e aberta, os intestinos caindo no chão, as miudezas
aventadas para outro alguidar e
repentinamente perdem-se-me as recordações,
por que raio não sou capaz de lembrar quem eram os outros gaiatos se era com
eles que eu brincava, e tanto que eu brinquei, sumiram-se-me as lembranças, só as
recupero em casa, a salgadeira aberta, mantas de toucinho, a perna para
presunto pintada com pimentão e colorau, punhados de sal, cheiro a pimentão,
muito pimentão na carne, e lá vou eu com a tia Aia p’ra casa da avó Inácia pois
em dias assim só atrapalharia e nem vagar havia, nem vagar nem ninguém para
tomar conta de mim.
Um dia seria destemido como
o meu pai, destemido e convencido, o melhor e mais rápido a matar e abrir
porcos no Alentejo, onde por enquanto somente brincava mas a cuja magia me
estava habituando, descobrindo e deslumbrando, até com os mimos que me prodigalizavam todos quantos me rodeavam, especialmente a avó Inácia e a tia Aia.
Tantas vezes me disseram ser
o Alentejo impar que acabei acreditando, os pais, os avós, tias e tios, até a avó Inácia, com quem em miúdo passava longos períodos de férias na
aldeia. A tia Aia também me fizera acreditar em tal, e seria injusto
esquecê-la.
Sou extrovertido, e
confiante, diria que demasiado confiante (até há quem diga que sou um
convencido), talvez por ter nascido aqui, nesta terra de xisto e fragas
lascadas, de espaços abertos e campos extraordinariamente iluminados, amplos,
resplandecentes, melhor dizer reverberantes se quiser ser fiel à memória da tia Aia, ela chamava-lhe a marca da terra.
A tia Aia colocava marcas em
tudo, desconhecia a gramática, nunca ouvira falar de adjectivos, tinha contudo
um modo muito próprio de catalogar o mundo, eu, por exemplo, nunca fui só
Berto, eu era o Bertinho querido umas vezes e o Bertinho lindo outras, tal como
as flores das giestas no campo não eram somente bonitas, eram celestialmente
bonitas pois Deus decerto as quisera diferentes de todas as outras, e para
melhor.
Já provaram vocês o mel
alentejano de abelhas que sobretudo se alimentem destas flores de giesta e
esteva ? E já repararam como em relação aos demais o gosto é desigual, para
melhor ? Repararam como nem coalha no inverno ? O único que não coalha ? A tia
Aia tinha razão, Deus colocou uma marca no Alentejo, aliás várias marcas, até o
perfume dessa flor não se limitava a ser agradável, ele era, na tabela da tia
Aia, indelevelmente agradável e inesquecivelmente inolvidável.
Custa-nos crer como neste
cenário de horizontes largos o homem se deixou aprisionar durante séculos,
custa-me aceitar que não tenham partido daqui todas as revoluções, não aceito
que a submissão, que o cante alentejano tão bem exprime seja ainda hoje uma das
nossas marcas, porque aqui, nestes campos lindos e que, como adjectivaria a tia
Aia, luxuriantes, onde a ausência de solidariedade campeia, a única coisa que,
mau grado o paredão de Alqueva parece não se deixar submeter é a natureza, que,
alheia à luta dos homens se renova em cada primavera e, ao contrário de nós,
gente, humanos, prima por manter ainda a diferenciação do carácter das suas
estações bem marcado, ao invés do indígena, que aos poucos e em quarenta anos
se transformou num camaleão gelatinoso, ou, como diria a tia Aia, em
lindíssimos e gelatinosos camaleões, inda que sendo bichinhos que ela, que
jamais saíra daqui, vez alguma tivesse visto.
Visto ou ouvido, estas
vastas terras aplanam a alma e injectam nos seres vírus de bonomia, estado
anímico que a tia Aia, sempre mexendo, adjectivaria de letargia, no que
pacificamente lhe concedo toda a razão. Aqui o tempo não anda para a frente,
não avança, regride, olhemos as nossas vilas aldeias e cidades e comprovemo-lo,
um paraíso perdido, um vazio no tempo que nem Einstein previra mas que agora,
mentes brilhantes, vendem aos turistas em pacotinhos de fins de semana, disso
se encarregarão os operadores turísticos e para tal a GenuineLand preparou os
nativos alentejanos cujo céu, livre de poeiras e fumos, vendemos em
pastilhas de noites de breu com um sabor
estrelado através da Dark Sky Alqueva.
A novidade aqui passa só e
somente por essas adjectivadas e exageradas promoções, os publicitários sempre
foram excessivos, e não o foram ou são somente com este Alentejo, lugar onde procuram,
ou alguém força, estabelecer novas tradições com mais rapidez que aquela com
que enterram as velhas. Pôr em pé o misticismo Endovélico no Alandroal,
obrigar-nos a todos a olhar o balão como pategos no Dark Sky, ou tentar tapar o
buraco que a desertificação abriu na peneira com o projecto GenuineLand, embasbacando
perante as centenas de empregos, milhares de empregos que estas coisas geram, tá-se
mesmo vendo, é andar brincando com o Alentejo.
Brinca-se no Alentejo e no
país, agora até promovem e homenageiam quem mais brinca.
Brincalhões …
Foto 1 – A arma usada na matança.
Foto 2 – Monsaraz no horizonte.
Foto 3 - O horizonte visto de Monsaraz.
Foto 3 – Afloramentos de xisto perto da
ribeira de Lucefecit.