Mal o astro despontava e lá estava ele nos degraus
colhendo-o, o calor enxugando-lhe o mijado nas calças de saragoça, amareladas da
urina, do sol e do tempo
eu nas férias e a manhã soalheira ainda, com a
figueira grande lá em baixo depois do quinchoso, onde o sol nos apanhou pendurados dos
figos, eu, o cianito, o telmo o xico, o zé, talvez o humberto o meu padrinho e acho que também o fernando, a
memória não me é nítida já
ainda lá mais em baixo o roxo, lavadeiras e roupa estendida sobre as flores que atapetavam os campos e a
corar
tremia e babava-se aquecendo-se ao sol, não naquela
altura, mas hoje pressinto-o como um trambolho para a família, pois nem uma
criança exigiria tanto trabalho ou atenção
chegada de itália a tia paquita, os chocolates todos
derretidos num saco, o sol abrasando.
transladaram o avô palma para a sombra.
nem sei como cabiam todos, tantos, naquele carrinho onde o meu tio seisdedos custava a entrar.
- Para onde me fui ?
perguntava ele, atarantado do avc, atropelando as
sílabas e agarrando-se ferozmente ao cajado polido pelos anos, arrastando a
perna inerte
- Para onde me fui vocêses ?
o nero abanando a cauda e erguendo-se a custo, seguindo-o fielmente numa
preguiça de pasmar
pasmava-se de vê-los, o burro branco trotando chapada
acima, o zé de equilibrista em cima dele fazendo de cristo-rei, os pés
fincados em cima da albarda como os pés das bailarinas de cisne
- Olhem p’ra mim ! hão-de ver se fazem igual ! é o
fazem !
quando vinham à aldeia as trupes de saltimbancos
esses sim faziam, faziam maravilhas de equilibrismo no arame
abalei dali a correr, porque não aguentei ver aquilo, e
o que me horrorizava era ver os cágados sem patas esperneando no alguidar, quando voltei aquilo eram o xico peixeiro mais o tio seisdedos e uns quantos alarvemente em redor do petisco das patas dos cágados que o pescador trouxera
da ribeira da guadiana
para onde fui depois nem eu sei, porque a manhã estava a
meio e nuvens carregadas naufragaram o radioso do dia que na Arreigota era de ceifa,
e onde o meu pai aflito e minha mãe aflita, e o meu pai
- Fica aí enchendo este balde de espigas e não saias
daí que já venho, o pai não está longe
e antes do pai vir um choro, um choro fininho que era um
choro de criança e o bebé, acabadinho de nascer, ficou a chamar-se meu mano e só
me lembro dos três, os quatro agora, a caminho da vila, de mim da mãe e do meu
mano novinho em folha todos no burro, o meu pai com pressa, de arreata retesada, e do
tecto da casa maduro de melões dependurados de redes de ráfia, e no chão melancias, caiadas de branco para durarem até janeiro sem chocarem
só passados muitos anos fui capaz de ver a imagem
que o futurismo me gravara na mente, um emblema dourado no cilindro verde que
espalmava a estrada preta e dizia "Coolfield Road Roller", gravado no flanco do
monstro que bufava e gemia sempre que lograva mexer-se, e que do alto da vila eu
contemplava dia a dia na estrada em recta que se estendia a perder de vista pelo
mar da planície em que a aldeia era navio e, quando crescido, e grande, e na marinha,
decifrei finalmente as bandeiras que nela arvoravam quando em festa, e as cores
de uma diziam comandante a bordo, de outra perigo, por em festas haver pólvora
nos paióis destinada ao fogo preso
nesse ano de festas deixei de ver a estreia de easy rider por toda a família estar lá embarcada já e me esperar, eu na carreira até às
terras d’el-rei, dali em diante à boleia num velho ford que não passava dos
setenta e me deixou a uma légua do telheiro, pelo que meti a direito, subi a
encosta e quando finalmente na vila apelava a banda à morte do touro na arena, já tal nem me impressionou como os cágados sem pernas esperneando no alguidar e cheirando tão mal depois de mortos que os cães não se acercavam, e, talvez
porque eu já grande nunca mais me lembrei do
- Para onde me fui vocêses ?
talvez o avô tenha morrido enquanto eu na caça com o pai, talvez tenha morrido quando morreu a violeta, eu com a dor nunca mais a
esqueci, nem sei se ele o avô palma, como aconteceu com ela, foi enterrado numa encosta solarenga junto
com um ramo de flores silvestres
não voltei a vê-lo nos degraus onde eu brincava ao
sol e ele enxugava as calças de saragoça coçadas, porque depois de crescido a
saragoça nunca mais, e a bombazina sim, ele eram tudo calças de bombazina que vinham de contrabando de espanha
cresci muito nessas férias em que o fogo de
artificio estoirou mais forte que em qualquer outra aldeia em redor, e em que
conheci a gafanhota, a minha primeira paixão, que havia de suscitar em mim mais interrogações
que as que tivera atrás do monte de molhes de feno no lugar da arreigota, em que
enchi o alguidar esperando o meu mano novinho em folha, e mais que em todas as minhas
vidas anteriores, tantas, tantas que esqueci o
- Para onde me fui vocêses ?
e folheando um velho álbum lá estamos, ao centro o meu
mano manel da arreigota, novinho em folha, e que mais parece uma menina, tais os
caracóis, à esquerda a prima luísa maria palma e à direita eu, com um brinquedo de
lata na mão, os três em pose frente a uma manta de quadrados estendida de
improviso p'las tias aia e joaquina na entrada do tugúrio do xico peixeiro, na minha mão a camioneta da
carreira em que a mãezinha, muito branca, chegou vinda da operação ao coração,
em coimbra, e sim mãezinha tive saudades, e medo, sim mãezinha eras linda como
até hoje não vi, e de ti recordo-me, não me recordo é do
- Para onde me fui vocêses ?
mas a ti recordo, e do cabelo ondulado, negro, e lindo como tu, e como tu até hoje só vi numa mulher única, e mãe há só uma, sim, não
te esquecerei jamais, nem de quando enfiava os dedos em pente nos teus cabelos
e te dizia são lindos, amo-te, pareces uma espanhola, e agora nesta eu em pequeno na
varanda da casa da vila que dava para a rua do forno, com o zé e o meu mano
novinho em folha, nesta foto ainda se vislumbra o teu braço, a tua mão, cuidando
de nós, como sempre fizeste, como sempre te lembro, e recordo-me agora, nesse
dia mijei em arco para cima da laje do murete da varanda, ficou uma poça que o
sol secou, como secava as calças de saragoça do avô palma nos degraus onde se
esteirava e eu brincava, e juro mãezinha que quando te lembrar de novo te
escrevo outra vez e beijinhosssssssss
Foto: da esquerda para a direita, José Baião, Manuel Baião
e eu Humberto Baião, na varanda da casa dando para a rua do forno.
Foto: eu Humberto Baião, o meu
mano mais novo Manuel Baião e a minha prima Luísa Palma, que vive em Reguengos, tirada à porta da “casa da inquisição” onde morava o ti Xico Peixeiro.
Foto: Lugar do poço da Arreigota, onde nasceu o meu irmão mais novo Manuel Baião.