Depois do esfuziante cumprimento
sentou-se só e calmamente naquela mesa que ali vedes. Sorumbático frente ao
café que arrefecia, hirto que nem uma estátua, mirei-o então de alto a baixo não sem alguma acrimónia.
Os mesmos olhos acutilantes e vivaços. A
mesma cara abolachada, o nariz adunco denunciando provável sangue judeu, a
mesma boca sempre sorridente, trocista, zombeteira.
Somente o cabelo, todo branco, nele
apelava ao respeito pela idade, de resto nem um pé de galinha nos cantos dos
olhos, nem uma comissura na boca, nem uma ruga, ninguém nos diria praticamente
da mesma idade, nós, que brincáramos juntos.
Há muito que o não via, talvez desde os
nossos “ dix-huit “.
Ele fugira do mau estudante que era e do
pai, que o quisera obrigar a pastorear vacas e alma de uma pequena empresa familiar, leitaria e queijaria …
coisa que decerto nem lhe preencheria os sonhos nem
estaria nos seus horizontes.
E o café arrefeceu à mesma velocidade e
têmpera que a vida lhe correria no cérebro. Ali quedado, ali parado, ali
sozinho.
Estive décadas sem novas dele, somente
há um ano ou pouco mais reatáramos.
Fizera-se no fim da fuga marinheiro e,
nesse mar calcorreara calçadas e subira degrau a degrau uma escada que não se
abre a todos nem a qualquer um.
Soube-o uma vez em Bissau a bordo do NRP
Cmt. João Belo. Mas depois de um mês inteirinho no mato, ao chegar apenas duas
garrafas de visqui e um cartão de visita: Do 2º sargento artilheiro Carvalho
Araújo, com um abraço.
Bebi-as nessa noite com a preta que me
lavava a roupa, e por ela soube que o Carvalho se guindara a cabo, assentara
âncora como sargento, e se preparava, coisa inédita, a ingressar na Escola de
Oficiais. Para um mau estudante não estava nada mal, e o 25 de Abril, soube-o
mais tarde, abrira aos sargentos as portas da Academia Naval, até aí exclusivas
de uma casta de classe superior, diziam-se.
Apesar das limitações da época, da falta
de internet, somente inventada muitas décadas depois, as pretas da base e de Bissau
eram tão eficientes quanto hoje o é o Gmail, a informação circulava veloz em
circuitos privilegiados e tudo se sabia, fosse na província fosse na metrópole.
Mais das vezes o Carvalho nem forçara nada, limitara-se a aceitar convites dos diversos comandos onde estava para
frequentar a especialidade, a Escola de Sargentos, a Academia Naval. Cumprindo
ordens superiores arrastara-se enganando o tempo que lhe sobrava e cujo desfastio havia que
alimentar.
Como artilheiro, artilheiro-mor, oficial
artilheiro e Capitão-tenente, correu este mundo e o outro. Em cada porto uma
namorada, em cada banco uma conta. Contou-me ele, não invento. Bom vencimento,
bons subsídios, majorados se embarcado, mais majorados ainda se em porto
estranja. Cama mesa e roupa lavada. Ganhava mais que gastava, aliás nem tempo
tinha, infelizmente, onde gastar a soldada.
Há uns anitos perdera-se de amores por
uma lisboeta, e andar embarcado começara a doer-lhe. Uma mulher em cada porto é
frase feita e bonita. Conhecia realmente muitas mulheres, mas na verdade
dera-se conta de que conhecer mesmo não conhecia verdadeiramente nenhuma.
As universidades portuguesas reservam,
por lei, percentagens para alunos dos PALOP, mas também para militares, que
aliás desfrutam nelas de outras incomparáveis vantagens.
Uma vez mais o comando solicitava aos
homens que avançassem preenchendo as vagas de lei. Carvalho, desejoso de se
fixar em Lisboa, deu um passo em frente. Ganhou a inscrição e mais uma promessa de promoção.
Segredara-me que tanto privilégio
começara a aborrecê-lo, mas, havia que aguentar, em nome da nação.
Assim foi que por desenfado, passados
anos se licenciou em Geografia, coisa mais indicada para um marinheiro dos sete
mares nem havia, atirou-me irónico.
O namoro com a dita e alfacinha senhora
foi correndo ao ritmo da licenciatura, melhor esta que aquele e, no fim, da
licenciatura, não do namoro, nova imposição do comando, nova inscrição, desta
vez um mestrado em SIG, Sistema de Informação Geográfica, (Geographic
Information System), e, antes que desse pela maré estava arvorado em
Capitão-de-fragata.
Foi só então que se quedou pensando nos dias alvoroçados
entre a monarquia e a 1ª República, no “foge cão que te fazem barão ! fugir para onde
? se me fazem visconde ? “.
Tantos galões assustaram a senhora D.
Mónica que, não acreditando nas boas intenções de tão prendado marujo, antes
crendo ser mais um entre tantos por todo o mundo, lhe calçou uns patins, que é
como quem diz o colocou à vela e ao largo.
Assim o meu amigo Carvalho Araújo se viu
oficial artilheiro de armas tão tecnológicamente avançadas que delas somente
ouviu falar, sabendo-as sem paralelo com os exemplares museológicos que equipam
as fragatas em que navegou.
Pensou, pensou, e se bem o pensou melhor
o fez, antes que o promovessem a Capitão-de-mar-e-guerra e o prendessem ao
ministério e a estratégias e tácticas navais, cousa a que o alto oficialato
adora brincar, ele que sempre fora homem de espaços largos, quer nos oceanos
quer atrás das vacas, deu de frosques.
Num ápice se inteirou da reforma e rumou
a cinquenta nós e levado por ventos favoráveis, à terra que o viu nascer.
Decididamente não estava preparado para
a reforma. Nem para o país ou a província, muito menos para a aldeia que Évora
é.
Net’s, telemóveis e hotmail’s não lhe
encurtam nem aproximaram os amigos. Depois de meia dúzia de chamadas ou
mensagens, olá como vais então isso como tá a correr etc. e tal, a realidade
impôs-se.
Está a milhas, terrestres ou marítimas
dos amigos mais chegados, em contrapartida a solidão cai-lhe em cima sem contemplação e com o peso
de um iceberg…
Foi ao banco, sacou umas massas de uma
das contas adquiriu uma quinta em crise e investiu em bovinos, holandeses, raça
leiteira de primeira, quase cem cabeças.
Agora, chova ou faça sol é vê-lo todos
os dias desbobinando memórias e pastoreando as vacas…
Ninguém diga desta água não beberei…