A semana tinha sido
exaltada e prenhe de apreensão. Choveria? Não choveria ? E tanta coisa pendente
disso ! No sábado aprazado entre as sete e as oito da manhã, três ou quatro
vezes tirei a moto da garagem e a voltei a guardar. Finalmente, pelas oito e
pouco uma aberta prometeu um dia lindo ! Não hesitei ! Mota fora ! Aí vamos nós
! Quando cheguei ao ponto de encontro estavam lá vinte ou trinta resistentes
como eu. Pelas nove e já com sol, estavam reunidas perto de sessenta motos e
mais de noventa amigos ! Partimos rumo a Alter do Chão, às coudelarias reais !
Pelo sim pelo não todo
mundo tinha envergado os fatos anti chuva, não fosse o diabo tecê-las. E não
foi que teceu mesmo ! Desde a saída de Évora, pelo Frei-Aleixo e até Estremoz
foi uma prova de resistência em que ninguém foi abaixo. O passeio prometia. GNR
na frente e atrás p’ra não deixar ninguém sair dos eixos, a estrada molhada fazendo
com que nas curvas o esfíncter se contraísse. Uma neblina de sonho solta pelos
pneus das motos pisando no molhado tudo toldava, enquanto os escapes abertos
provocavam um silêncio ruidoso e ensurdecedor de que me fui alheando, propiciando a que deixasse a moto deslizar e os sonhos divagar.
É preciso saber sonhar
sabem ? Deixar espaço ao sonho… A mim faz-me sentir bem, é um estímulo cada um
destes passeios, um período consagrado à divagação em que a sensibilidade é
levada ao ponto de exaustão. Ao extremo.
Na orla do ângulo de
visão permitido pelo capacete divisava os raios de sol desenhando na neblina
grinaldas com mais cores que uma palete e eu, acelerando num ritmo certo
deixava o imaginário ir fluindo, acompanhando a estrada que não via já, toda
ela um carreiro de amor, as motas como um rebanho criado pela minha pródiga
imaginação. Os traços descontínuos da via bruxuleavam ante os meus olhos
soltando reflexos doirados e coloridos quando o sol batia na estrada, no
espelho da estrada molhada, desenhando vitrais góticos cujas cores não
encerravam figuras mas lembranças e sim, lembrei-te em baixo-relevo enquanto,
delineando as curvas, fiz todas sem que por uma sequer tivesse dado, sem que
uma vez tivesse pisado o traço, e, em cada curva tu, e eu, perdido em carícias
ingénuas, nem ciúmes nem saudades, somente o coração batendo placidamente, o
motor ronronando, a estrada fugindo, eu sonhando e uma 125 azul
surpreendentemente, acompanhando-nos. *
No peito uma chama de
desejo, lume ardendo nos sentidos, volúpia que meu corpo sublima bamboleando
nas curvas. Não chove já, acelero de novo, acompanho-os sem dar por eles, as
curvas repetem-se, cada vez mais perto de ti, não sei já em quais delas penso,
se nas que molhadas são um perigo se nas tuas, cuja silhueta mentalmente desenho
preenchendo-me com desenhos que me toldam e tornam lascivos os sentidos,
enquanto desprendido de tudo, tramo mergulhar em pecado na boémia, ébrio do teu
odor, do odor libertado pelos prados que a estrada ladeavam e a primavera
confirmava. Confundido rendi-me a mim mesmo e curvei sem dar por tal ou pela
estrada, há muito que não chovia e o sol afagava-nos com os seus raios,
espraiei os olhos pela paisagem e foi a ti que vi como se tingida na retina,
beijando-me em lírica e serena ausência mas prenhe de promessas e delírios
sabendo-me presa fácil de paixões e carências.
Chegados apenas os
cavalos me seduziram pelas possibilidades de montar um deles, preferencialmente
alado que, por milagre, minha alma levasse mergulhando-a em céus de esplendor
num gesto delicado que, tocando a abóbada celeste, te envolvesse neste anseio
conquistando-te o corpo quando eu, de ouvidos tilintando embriagados, vendo em
meu redor flâmulas e pendões multicores rodeando um mar de rosas entre nós e o
céu, só tivesse dado acordo de mim quando as trombetas me solicitaram para o
festim do almoço.
Restaurante abarrotando,
mesas sobrelotadas, toda a gente quer ficar perto de toda a gente mas não te
alvitro entre os demais, enquanto isso o espírito de camaradagem e de festa
divaga sobre nós abençoando-nos, retribuímos não desdenhando do cozido nem do
tinto ou da cerveja que pródigos pajens e arlequins nos colocaram à disposição.
Confesso não ver já quem está à minha direita, à esquerda ou em frente, que
interessa isso se somos como irmãos de velha e honrosa irmandade?
E não me sais da ideia,
lembro ter afivelado um sorriso que me durou toda a tarde e não perdi, antes
guardei, não fosse caso que, na prova de vinhos em Estremoz, te perdesse do
pensamento sob influência de tais éteres pois só vê-los bastava para nos toldar
a razão. Mas não estive com cuidados, minha alma vagabunda tanto navega neste
mundo como caminha sobre o mar, pois não sou de nenhum lugar, nem me acho louco
por ser assim, vos garanto porém embora não lembre já o opíparo jantar, ter
sido um dia tão feliz, tão feliz que somente no dia seguinte dei por mim e,
como sempre lá estavas, não sei se à minha esquerda se à minha direita, acho
que à direita, não fosse a bainha da espada enredar-se na roda do teu
vestido...
** Devo esclarecer que esta linda cavalgada teve lugar em 2009, foi promovida pelo grupo de amigos das motas da empresa Estradas de Portugal EP, belissímo passeio que me esquecera da publicar.... Aproveitei agora a oportunidade... Bom jantar para todos e todas, boas curvas, Bom Natal, bons passeios e um abraço... :)