quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

9 - BAIXINHA ...




Ainda lembro esse dia de júbilo em que estalaram foguetes festivos, petardos, embora tenha sido a queda ocasional mas simultânea de estrelas cadentes que me fizeram pressentir, através do instinto, no momento em que a conheci, a iminência do destino impondo ao meu fado outros rumos, imprevisíveis, pois foi como se alguém tivesse acendido lustres no caminho que para casa piso, ou como se festejando estivesse toda a vila em que vivia.

 Tão intrigado fiquei quando ela se me revelou, que duvidei de uma linha nunca vista na palma da minha mão e, tantas vezes mesmo em sonhos ou através de uma simples imagem a contemplei, sem coragem para algo lhe pedir que, se me acabaram nesse instante os dias de apodrecida felicidade mas, foi particularmente ao ver as borboletas que acusam de provocar com um bater de asas furacões no outro lado do mundo que me senti como que invadido no meu ser, no meu intimo, tendo sido como entrar numa outra dimensão e ter ficado outro, fiquei outro.

Repetidamente e com prazer revivo esse momento único, contemplo de quando em vez o céu e acodem-me essas lembranças dela, em tantas das quais fui levado a pensar se não estaria perante uma visão de espanto, em que não mais o meu coração até aí aturdido e adormecido teve um instante de sossego, porque passei a cumprir um destino exclusivamente ditado pelo capricho da rosa-dos-ventos, diariamente dedicado à exaltação da sua glória e em que o silêncio passou a incomodar-me mais que o alvoroço em que dantes vivia.

Quantas vezes tropeço agora nas minhas palavras dantes tão ordeiras que me enleiam ou fizeram que a realidade se enredasse em mim, de tal modo que ouço gaitas trinando como celebrando esta minha alegria incessante e, não há dia sem que tempestades de flores me ensopem da cabeça aos pés, a mim que passei a ouvir as rosas abrindo silenciosamente pela manhã e a ver meninas virgens fazendo renda nas soleiras das portas quando marcho pelas mesmas ruas às quais dantes nem um minuto de atenção me prendia e agora até te lembro, formosa como sempre, num hábito de noviça do mais puro linho, tu oferecendo-te numa inimaginável cama cuidadosamente decorada para os desaforos do amor e, num gesto em que curiosamente jamais deixas de te persignar antes de para ela subir, razão pela qual deixei de suportar a nostalgia dos tempos passados, visto durante eles ter morrido em mim a razão última da minha ansiedade e hoje estar pronto a jurar e garantir que te quero tanto que morreria por ti.

Será caso para dizer andar-me o pensamento flutuando na luz cristalina da esperança e me perguntar se não será pequeno o mundo ?

É não é ? 

Ignoro se sempre assim foi, mas sei que é assim agora, assim o vejo neste instante e no meu constante fluir, tão manso quanto o pode ser um rio.

Compreenderão o facto de sentir em mim que o tempo foi todo ele transmutado se até o ar sinto menos pesado em virtude dessa mulher, baixinha sim, mas que eu decreto a mais bela do mundo e fez com que arrastasse comigo, e desde aí, um rasto de orações que de um momento para o outro me transtornaram, ao invés de me aclararem o discernimento, coisa que de todo pareço não dispensar nem precisar, tal a lucidez que me voga na alma, alma a que algo aguçou o instinto premonitório e faz com que nem deitado, abanando-me e abandonando-me debaixo das acácias durma, eu que das sestas era defensor e rei, e pasmo, pois já nem pensando entre os roseirais e os loureiros me deixa de seduzir a lembrança dessa mulher, a mais doce, carinhosa e meiga da terra que é como a vejo sempre, como uma imagem, um sonho, uma visão deslumbrante da mais bela do universo e, em simultâneo, Cupidos soltando balões coloridos como se com ela cada dia, todos os dias, fossem dias de festa. 

Então, eu que nunca fora crente nem agnóstico, penduro ao peito fiadas de escapulários e sortilégios, temendo que de um momento para o outro se vá este encantamento no qual vivo e me dá vida, e me pergunto a toda a hora se será que vivemos em mundos separados ou dimensões diferentes somente ligadas por estreito e baixíssimo portal, mas sobretudo por que razão e por que raios só agora te encontrei e por que andaste tantos anos perdida de mim ?



              

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

8 - SIM, HÁ LONGE E HÁ DISTÂNCIA...


Um lago de um verde intenso, ladeado por carreiro salpicado de árvores frondosas e seculares…
Por baixo delas, como que salpicados e de quando em quando, uns bancos de madeira.
Um deles, onde costumo sentar-me, diria que onde costumo pensar-me.
O sol tímido, o céu azul ponteado por flocos de algodão aqui e ali, tu e eu, nesse meu banco preferido.
Tu sentada, eu deitado, a cabeça no teu colo, olhos fechados, só este momento existe.
Afagas-me o cabelo, enleio-te os caracóis, um a um, deliciado pela sua maciez, curvas-te para que lhes sinta o cheiro.
A respiração, quente, no meu rosto, enternece-me, olho-te fundo nos olhos, ofereço-te a boca, que se une à tua num longo beijo terno, doce.
Abandono-te os caracóis e divago … o sol brilha e aquece-nos, mansinho …… e … sabendo quanto de impossível nos separa, entreolhamo-nos cúmplices, sem que o digamos, trocamos essa realidade pelo sonho do momento.
A impossibilidade parece-nos um mito de que desdenhamos. Recusamos aceitar um mundo tão curto e simultaneamente tão extenso. Um mundo nem feito para nós nem à nossa imagem ou semelhança.
É agreste este mundo, cresta-nos toda uma vida, todo um futuro.
Nem é mundo que queiramos, nem vida que desejemos, sabemo-lo.
Tão bem o sabemos que tudo fazemos para o ignorar e, quanto mais nisso teimamos mais dele parece aproximarmo-nos. Ilusão.
Quão gritante e desesperante ilusão.
Estendemo-nos as mãos num gesto derradeiro que forças ocultas recusam que, até neste sonho, se concretize.
Frustrante, tão frustrante quanto o calor desse sol imaginário sob o qual buscamos comprazer-nos neste dia tímido de céu azul.
Nele não pontilham já flocos brancos, algodoados, antes castelos, brancos, negros, cúmulos, nimbos, e prenúncios exasperantes de dias jamais cumpridos.
Não sonhes, não sonhemos, recusemos sonhos, ilusões, devaneios.
Cada um de nós tem um caminho a seguir, um silício, cumpramo-lo, que se cumpra na dureza dos dias, do tempo e vida que nos resta, que o soframos na mesma coragem intimidade e segredo com que guardamos para nós, e aceitemo-lo sob a força desta frondosa árvore cuja sombra os nossos sonhos acoita e, porque embora o não queiramos, sim, aceitemos que afinal há longe e há distancia, reconheçamos quanto de impossível nos separa.
Aceitemos este mundo curto e extenso, nem feito para nós nem com espaço para que nos cumpramos.
Sonhemo-nos como quando a tua respiração quente no meu rosto tanto me enternece, me leva a olhar-te no fundo dos olhos, beijar-te terna e docemente, e, num longo e aconchegado abraço, chegar a mim o teu peito arfando, no qual me perco e afogo enquanto as mãos me vogam pelas tuas coxas quentes e sedosas, as quais apertas como quem prende o futuro e o desejo numa avidez não saciada, exasperante, e me solicita que avance e te descubra.
E é quando te soltas e me aceitas que me perco deslumbrado, extasiado na premência de ti e de mim, te percorro suavemente as curvas dessa imagem que me tolhe, me tolda os sentidos, e te sinto acariciando-me o peito, a tua boca sugando-me num ímpeto que me esforço por devolver-te, tremendo de emoção ao afagar-te, sôfrego, os seios repentinamente endurecidos, cujo odor adivinho enquanto dos meus dedos por ti passeados colho o cheiro inebriante da tua oferenda, qual dádiva sacrificial de quantas promessas juraste e jamais cumpriremos, porque afinal, e por muito que o neguemos, há longe e há distancia.
Refreemos sonhos e desejos, ilusões, sentidos e emoções, travemos promessas e esperanças, e, sabendo quanto de impossível nos separa, recusemos cumplicidades, reneguemos o momento e sonhemos a realidade.
Cada um de nós tem um caminho a seguir, sigamo-lo nesta ilusória intimidade por partilhar e cumprir, conscientes de que o pouco que de inolvidável possuímos jamais poderá ser esquecido por tudo a quanto platónicamente aspiramos.

Aceitemo-nos, cumpramo-nos na certeza do que somos e temos, porque ainda que somente em sonhos, nos pertencemos.


domingo, 30 de janeiro de 2011

7 - SOMENTE OS OLHOS...

Olhos vermelhos, carregados, inchados, só o cansaço te foi visível ?
E o peso acumulado de sonhos desfeitos ? Traídos ?
De frustrações assumidas? O cansaço de tantos fardos carregados…
Não lograste alcançar ? 

E os meus olhos ?
Mais é o que escondem que aquilo que mostram não é ?

Mas tu não sabes, e por eles tentas descortinar-me a idade ?
Olhando-os ? Medindo o grau da cor que carregam, como quem, numa feira, esquadrinha cautelosamente os dentes de uma mula que qualquer cigano venda ?

E eu feliz, escondido nestas olheiras mas feliz, rindo do mundo, desse mundo que aprendi a não tomar a serio mas para o qual me faço parecer, ou… não me perdoariam a ousadia, sei-o, não me perdoarão o desprendimento das coisas terrenas, o alheamento aos pormenores comezinhos que prendem, prendem ?

Vidas vulgares, fúteis, cheias de nada, impantes de vazio !

E eu sorrindo para mim mesmo apesar das desilusões, também as tenho, mas saboreando a vida, ainda que esta tenha duas faces, como qualquer moeda, sabendo que sem uma a outra nada vale, é falsa, por isso sei dar valor a cada momento, a cada minuto, como se único, e fruí-lo, porque será pago, ser-me-á cobrado, como tudo na vida, o reverso, a outra face, e só quem está para se dar receberá, apesar dos custos, da cobrança, da hora do acerto, por isso este coração enorme, devastado, devassado, ferido, cicatrizado, contudo cada vez maior, cada vez mais dado, oferecido, e quanto mais oferecido e dado mais se agiganta, feliz, contente, jamais saciado mas permanentemente em paz, em dádiva, em oferenda.

E
é pelos olhos que me perscrutas ?

Que coisa mais tola, abre-me antes o peito, olha-me, vê como sou, ficarás maravilhada, assombrada, talvez siderada.

Não presa, não estupefacta por bater ainda neste ritmo certo, rimado, mas surpreendida com a sua grandeza, generosidade, porque apesar dos remendos, o seu acolhimento, magnanimidade, a sua invariável batida, o modo repentino como bateu acelerado ao teu olhar, ao teu toque, á tua observação.

E, fora as marcas que observaste, não recordo já os maus momentos, nem recordo esquecer os bons por um segundo que seja.
E vivo sem tormentos, uma vida plena, feliz, cheia, preenchida, uma vida !

Eu tenho uma vida sabes ?

E adoro-a, e adoro-me, e desmesurada esta auto-confiança, este amor-próprio, esta auto-estima, e o ego inflado quanto baste, e nem um bar a mais, e nem um grama a mais, e tanto que me falta, e tanto que não tenho, nem invejo, nem procuro.

Espartano no ter, estóico no ser, vivo feliz, saciado, tenho uma vida sabes,? Vivo !

E não me chega o tempo, e sobra-me disponibilidade, como o Cristo-Rei, braços abertos, sim, sou eu !

Verdade que sempre cicatrizando feridas, verdade que sempre sorrindo á vida, e os olhos ?

Ah,! Os olhos,! São tudo para ti os olhos ?

Mas nada mais para mim que não um espelho opaco desta alma em permanente agitação. Vivo de agitação, vivo para a agitação, não consigo viver sem ela! Sabias ?

E nada viste,? Ao menos a cor,? A pupila dilatada,? Retraída,? E nada mais viste,? Que pena, que lamento, que ironia estas janelas do mundo se fecharem quando as olhas !

Mas viste o cansaço,? Notaste o cansaço,? Bastou-te ?

E então,? Contente,? Feliz,? Bastou-te,? E conclusões ? 
Posso sabê-las ?
Saber quanto ficaste longe da verdade, saber quão afastada estás da roda da vida…

Ah,! E que dizes da sobriedade,? Do tino,? Do juízo ?

E de tantas dessas merdas com que durante anos te encheram a cabeça !

Aposto as não viste nos meus olhos pois não ?

Ah! Ah! Ah! Há quantos anos alijei essa carga !

E crê em mim, só então o sol !

A luz !

A claridade !

A vida !

A plenitude !
Eu!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

VOAR PARA SUL, DE LUANDA A XANGONGO ...

Noratlas da FAP numa operação logistica. 


Apesar de saturados devido a tantas horas de voo encerrados dentro do Noratlas da FAP* o moral era elevado, constituíamos um grupo coeso de instrutores, formadores e conselheiros militares em diversas áreas e acreditávamos piamente estar contribuindo para o nascer e fortalecer duma nova e grande nação, com a qual repartiríamos a história. Com origem em Luanda o voo não seguiu a rota normal, aquele voo pretendia-se inexistente, estaria no segredo dos deuses e toda a gente o desmentirá ainda hoje. Os problemas começaram ao levantar voo com dificuldade em Luanda, a aeronave carregava além de nós, bidons de combustível, mantimentos, medicamentos, munições, armamento diverso, explosivos, etc, por isso após cada escala e descarga o espaço a percorrer para a lenta aeronave se erguer nos ares encurtava, sobrando espaço para distendermos as pernas.

Evitámos o rumo e a rede de aeródromos já construídos por razões lógicas e rumámos a Bimbe no Huambo, saltámos dali para Benguela, seguidamente para Lubango, no Huíla, e muitíssimas horas depois aterrámos finalmente numa pista improvisada em Xangongo uma vilazita junto ao Cunene e que vinha sendo flagelada a partir do sul. Ao invés do rumo normal, mais rápido e mais directo Luanda, Ngunza, Benguela e finalmente Lubango junto a Lobito, zonas já servidas de aeródromos, ainda que com piso de terra mas permanentemente observadas por pisteiros, batedores, espiões e traidores de toda a índole, ziguezaguámos pelos céus afim de despistar olhares excessivamente curiosos. Valeu a todos o Noratlas ser o jeep dos ares e aterrar em qualquer lugar sem dificuldade, nesse aspecto aquele avião era pior que uma cabra. *

Éramos jovens, idealistas, e enquanto o dinheiro nos deslumbrasse e fosse caindo o trabalhinho não ficaria por fazer, podiam confiar em nós, eramos gente de bem e doravante, p’la primeira vez e solenemente empenhados em defender os pobres, os fracos e oprimidos das garras afiadas do capitalismo mundial, com assinatura em contrato, especialmente agora que também na metrópole o capitalismo e o fascismo tinham sido eliminados, precisamente por nós, os militares.

De Indiana Jones a Rambo ** todos os espíritos nos animavam, havia em nós uma sede de acção e uma sede de justiça, todos se sentiam o Super-homem, contudo não demorou que esse estado de espírito iniciasse um processo de acumulação de dúvidas, dívidas nunca tivemos e nunca ninguém as teve para connosco embora por vezes a burocracia ditasse períodos de meses, ou até um ano em que o pré não caía nas contas, ou em que nenhuma possibilidade tínhamos de tal confirmar e, não fosse a preocupação diária em mantermo-nos vivos num vespeiro cada vez pior e tal teria bastado para nos tirar o dormir ou democraticamente termos declarado uma greve. 
Noratlas da FAP aguardando abastecimentos.

A democracia é para todos, e como por cá se dizia e diz, “ou há moralidade ou comem todos” ou então uma versão mais popularucha, “ou todos direitos ou todos marrecos” os angolanos lutavam pelos seus direitos, nós pelos nossos e cedo aprendemos haver direitos que só à força se adquiriam, todavia armas e munições era coisa que não nos faltava, embora nunca tivesse sido necessário resolver qualquer destas situações que se metiam insidiosamente entre nós a tiro.

A população do sul de Angola era em simultâneo a menos politizada, menos arrebanhada para as hostes partidárias das várias guerrilhas ou facções, movimentos que se congregariam em volta dos partidos, sendo também a menos culta, com pouca ou até nenhuma escolaridade, o que muito havia de dificultar o nosso trabalho dado nos calhar ser também a mais heterogénea que imaginar possamos, cada um dos formandos com seu dialecto, nem entre eles mesmos por vezes se entendendo. Portanto poderão imaginar, e aquilatar quão difícil se tornava transmitir-lhes ensinamentos teóricos, quer técnicos quer práticos.

O nosso vocabulário teria que ser mínimo e descer a um nível mais baixo que o deles se nos queríamos fazer entender. O português falado era uma espécie de resíduo assente nos cérebros ao longo de quinhentos anos de colonização, incipiente, arcaico, prenhe de deformações, pelo que seria inútil socorrermo-nos dele, como inútil era o uso de palavras caras como circunspecto, inferir, inerente, deduzir, e de vocábulos de idêntica índole, mais valeria falar-lhes chinês numa data em que nem os chineses sonhavam ainda sequer o papel que viriam a ter em Angola.

Esta limitação imposta pela linguagem, estendia-se em menor grau à formação prática, ao manejo e compreensão das armas e da complexa mecânica a elas associada não lhes colocando problemas, nem tão pouco a compreensão do arco balístico descrito pela granada do morteiro, arma em que poucos deles não seriam peritos, e de um modo inato que nos surpreenderia. Muitas vezes discutimos entre nós se essa facilidade de entendimento não derivaria do uso indígena do arco e flecha e da lança, armas em que de modo empírico digamos, os obrigava desde cedo a compreender e aprender a relação entre a distância ao alvo e o arco descrito pelo projéctil, flecha ou lança. Era inegável ter que haver ali uma relação de causa efeito, os pretinhos não nasciam com pré-disposição para o manejo do morteiro, ninguém nasce. 

Esquadrilha de Noratlas sobrevoando o Cunene perto da foz.

Aos poucos fomos ganhando a sua confiança, aos poucos fomos ganhando o conhecimento dos seus dialectos e eles o domínio do português, aos poucos as barreiras entre nós foram-se esbatendo, então, e só então arriscámos as aulas práticas e o que isso implicava, sair para o mato, ler pistas, perseguir inimigos, enfrentá-los investindo ou sustendo os seus avanços, usando e aplicando as teorias aprendidas e socorrendo-se do conhecimento adquirido nas aulas, flagelando-o e evitando que nos fustigasse, sendo neste momento que duas verdades indesmentíveis e incontornáveis nos assolaram a nós, instrutores, a nós parte neutra, a nós advogados do diabo.

Contrabalançando os problemas de linguagem e de comunicação apontados, e nada despiciendos se nos lembrarmos como a comunicação é vital debaixo de fogo, ou numa ofensiva silenciosa e concertada contra o inimigo, estou a lembrar-vos que as nossa vidas e as vidas dos demais dependiam disso, de nos entendermos e fazermos compreender, sem o que nada mais restaria que confusão, asneiradas, gritaria, caos e mortes. Mas, adiantava eu que contrabalançámos essa nada insignificante desvantagem com a habituação prática à linguagem gestual, linguagem esta que desenvolvemos até à exaustão em combate e quase nos permitia trocar impressões, dar e receber ordens e actuar sem um pio, sem abrir a boca, sendo esta mímica o corolário da camuflagem perfeita e que nos colocava próximos da invisibilidade, tornámo-nos quase invisiveis e infalíveis e, quando em grupo actuávamos na prática como um homem só mas potencialmente perigoso, destruidor e letal.

Outro aspecto que ajudou imenso a contrariar as dificuldades de linguagem e comunicação apontados foi sem dúvida nenhuma a disposição inata desses jovens indígenas para a luta, caçadores exímios, peritos na camuflagem e na furtividade, muito nós instrutores aprendemos com eles, em especial no tocante à leitura de pistas e tudo que fizesse parte da especialidade de batedor. Eram incríveis os seus dotes, o que os seus olhos viam, e mais incrível demonstrou ainda ser a explicação dada ou formada a partir de sinais ou pistas por eles observadas. Eram pisteiros incríveis, um cão não faria melhor e sabemos como os cães e o seu apuradíssimo faro são eficientes em qualquer busca, análise ou detecção. Eram absolutamente surpreendentes.  
Noratlas parqueado num aerodromo do sul de Angola. 

A par dessas qualidades guerreiras, eram motivados e aguerridos, sim, como se inda acreditassem que bala de branco não mata preto, ou bala de preto fossa não matasse preto bom. Eram voluntariosos, perspicazes, inovadores, empreendedores e eficazes em tudo quanto a guerrear respeitasse, incluindo as mulheres. Diga-se em seu abono muitas delas não ficarem devendo nada aos homens, tendo vindo uma dúzia e meia delas a ocupar lugares chave ou mesmo a comandar mais tarde destacamentos autónomos que atingiram um grau de operacionalidade e eficácia de fazer inveja a muita gente. Guerrilheiras houve que a história de Angola forçosamente terá que respeitar. 

        Verdade não possuírem, nem elas nem eles consciência ética ou moral idêntica à nossa, eram gente duma cultura diferente, sobretudo de umna cultura submetida a esta guerra havia demasiado tempo o que simplesmente atropelava os valores mais sensiveis devido à premência de sobrevivência. Enquanto a nossa cultura/civilização era balizada por preceitos civilizacionais de séculos, ou milénios, de que a Convenção de Genebra era o vértice, a sua ética ou moral estavam fortemente condicionadas pela sobrevivência, para a pátria mãe, mui viradas para a mãe terra, a mãe natureza, e do ponto de vista ambiental respeitavam-na como ninguém mais, porém eram pouco mais que insensíveis pois estariam mais perto do apelo da selva caso se vissem envolvidos em combate ou numa guerra, áreas em que eram sumamente eficazes, ou, caso se tratasse de enfrentar um inimigo, situação em que seriam implacáveis, irredutíveis e impiedosos, a tal ponto que, gradualmente, fomos obrigados a incutir-lhes respeito pela vida humana, fosse ela de amigo ou de inimigo, vida aliás nascida em África como reza a história, tendo-nos valido o facto de, a par de toda esta "selvajaria" em que nasciam e viviam, serem igual e excessivamente submissos aos poder, aos poderes, aos poderosos, ao branco e ao seu saber, ao branco e ao seu poder. (Continua).



** Rambo é o personagem do romance "First Blood", escrito por David Morrell em 1972 e posteriormente adaptado ao cinema. The Young Indiana Jones Chronicles, narram as aventuras desse personagem durante sua juventude ao lado de seu pai. A saga foi editada pela Marvel Comics que já a havia publicado numa série em quadrinhos, BD, muito antes de em 1983 ter vendido a sua adaptação ao cinema


Nota: Este texto foi extraído de uma tese de mestrado que o processo de Bolonha tornou inútil e portanto abandonada e transformada em memórias de guerra. Faz agora parte de um todo muito maior, procura retratar a realidade, não está sujeito às vicissitudes do politicamente correcto, narra factos, não faz juízos de valor nem alimenta preconceitos. Branco é branco, preto é preto, negro é negro, black é black, selvagem é selvagem, cada vocábulo será utilizado pura e simplesmente de acordo com o narrador e a sua exclusiva opinião quanto à situação em que melhor se insira no texto.

A ANGÚSTIA DO GUARDA - REDES ANTES DO FIM DO JOGO ...


Foram momentos únicos e o culminar de meses de receios fundados ou imaginados, pelo que quando a enfermeira mo mostrou sorri, ali estava o fruto da tanta preocupação, dias, semanas, meses, sem um defeito, todo escuro e narigudo como o avô paterno, uns pés enormes, já não mo trocariam, fui descansar de semestre e meio de apreensões, sim, que outro nome dar-lhes ?

Preocupações, vagos receios, pressentimentos ? Durante meses o Toninho não me saíra da cabeça, um primo nado deficiente profundo, daí o alívio agora sentido. Porém passadas duas décadas voltaram a assaltar-me as mesmas borboletas no estômago, não, não eram paixões, eram borboletas mesmo, apertos, o estômago contraindo-se em si, enovelando-se. Dizer-vos quando terá sido que ela me deslumbrou pela primeira vez é-me impossível, pois não recordo dia algum que não me tenha surgido como sempre, como uma aparição, e agora isto. Fora essa impressão incomum que me cativara primeiro e depois encantara para sempre.

Por isso agora esta dor, esta desorientação dos olhos que falam, que interrogam, que apoiam mas já não prometem por não o poderem fazer, só Deus poderá julgar, e submeter ou libertar. Foram essas as janelas da alma a que nos debruçámos ignorantes do porquê do devir, da sina, do fado, ignorantes do caminho a seguir, ignorando as borboletas, os apertos no estômago, eu esquecido daquilo em que me viciara, dos seus carinhos que não dispensava, antes procurava e alimentava como coisa natural e simultaneamente fulcral ao nosso sustento e agora isto, por esta é que eu não esperava.

Recordo que quando o mundo me assustava ela ali estava, inamovível, indispensável, imperecível, nutrindo as minhas esperanças, diluindo-me as dores, sossegando-me, falando-me, e o que ela adorava falar, falar de história, mas poderia ser qualquer outra coisa, sei lá, matemática, economia, física, ou geografia… eu desta vez fingindo ouvi-la, escondendo o embaraço, a dor, escondendo esta como escondera a precedente, camuflando o lamento, eu em conflito com a lógica a razão e a realidade, enganando a formalidade que a minha exposição e transparência denunciavam. 

Eu pressentindo aproximar-se o momento nunca pensado e sempre temido do fim desta história a dois que nos tem animado e fundido num só espírito, num só desejo, numa só vontade. Sinto-o sempre que à noite te abraço e o teu respirar cansado me assusta, pressinto-o quando te noto acordada rebobinando o passado, sinto-o porque voltaste a caber folgada no meu abraço, sinto-o por não te sentir preencher como dantes a conchinha do meu regaço, sinto-o porque as tuas coxas não comprimem já a minha mão como de antanho ou porque te tornaste leve no meu colo.

Verdade que nunca te prestara tanta atenção como agora, é do choque, é a reacção digo eu. E recordo como vivias, como falavas, tentando monopolizar tudo, aludindo às mais-valias, cotações e outras equações ligadas à economia, o câmbio, as acções, os discursos, as vontades. Por vezes nem te ouvia, tal seria naufragar no teu encanto de sereia, precisamente o que eu não queria. Porém, o que eu gostava ouvir-te falar de economia … ou qualquer outra coisa, história, matemática, física ou geografia… Estirado, pés fora da cama, inalando indolentemente um cigarro, debaixo duma manta curta, destapando ora os pés ora os ombros. 

Agora ambos sabemos e estamos cônscios serem os últimos tempos, dias, semanas ou meses quem nos porá à prova extraordinariamente apesar das borboletas no estômago, não são paixões, são borboletas mesmo, apertos, o estômago enrolando-se. O medo de fazer as malas, arrumar a vida, abalar, reclama o melhor de nós, quer sejamos o passageiro ou o bagageiro. Foi assim naquele dia, meticulosamente, como sempre fizeras com tudo arrumavas a vida afim de não deixar assuntos pendentes. A desorganização exaspera-te, a incapacidade do país aflige-te, a superficialidade das pessoas consterna-te. Questões de princípio em ti inculcadas há muito e agora, alheia a tudo que não seja pensado e ponderado ao pormenor, detestas ainda mais o improviso e como tal acautelas cenários possíveis, buscas soluções e fazes-me recomendações, a mim, que tudo faço para me subtrair à alçada da razão retinindo-me na consciência como uma campainha e alertando-me para a ameaça da mortalidade ou emergência que receio, temo, e atentamente vigio por paradoxalmente me parecer desta vez a ceifeira não admitir contradição.

Tenho medo, sinto medo, não irei contar-te de mim, nem tão pouco falar-te de mim, muito menos queixar-me, sei quão detestas lamúrias, não fazem parte do teu feitio, nem do meu, como tu interrogo-me, quem, quem irá depois cuidar de mim ? Será isto egoísmo ? Pela primeira vez na vida forço-me a esconder de ti estes olhos gotejando lágrimas mas a verdade é que me sinto abafado, e só a ideia de perder-te me provoca uma insegurança que esta falta de humor tão imprópria de mim não consegue disfarçar nem esconder por mais que eu tente.

Sim, é ressentimento e dor, por não conseguir esquecer-te quando tu falavas e eu ouvia, fosse história, ou geografia o que tu dizias à pressa, como sempre, como tudo, como se o tempo pudesse acabar-se-te, ou partisse eu, a quem a tua conversa seduzia como feitiço sobre mim caindo e revolvendo numa inquietação obscena. Nem sei quanto nem quantas vezes te relembro focando a geografia, contando-me dos lugares exóticos onde em puritanos sonhos tu nos vias, eu ouvindo e sorrindo nostálgico numa ternura impaciente. Temo sinceramente jamais te ouvir falar de geografia… ou d’outra coisa, sei lá, geometria, economia, álgebra, trigonometria …

O futuro ficou repentinamente d’uma estreiteza aflitiva e opressora, e qualquer contrariedade despoleta em mim uma onda de ansiedade e tristeza cuja emoção me fragmenta os sentidos e o ego. Tento não sucumbir à percepção paranóica das coisas e das pessoas, agora parecendo-me perigos reais ou situações a temer e, inda que saiba quão circunstanciais e imaginárias são essas temidas sensações de sufocamento, o peito apertado, a insegurança vívida, a falta de humor, a revolta e os ressentimentos, não é por isso que subjugo a dor, iludo a solidão e recuso a tua morte. 

Quantas noites e estremecimentos padeço só eu sei, quanta inquietude apreensão suporto veremos, quanto martírio me torturará ainda não recusarei, tudo que seja aflição, agonia, tormento e tribulação colocarei na conta do deve e haver desta catarse que abnegadamente aceitei mas pela qual ergo os punhos ao céu. Sim eu sei, é o preço da minha condenação à liberdade, como homem estou condenado a ser livre, vivo e respiro o livre arbítrio, sei-o agora, conheci agora o seu preço, o preço ou o valor desta condenação irrevogável à liberdade que todo o homem paga por ser condenado a ficar livre.

Munida de meras palavras, falaste-me um dia da eutanásia, do livre arbítrio, do conflito entre o Id o Ego e o Superego, da necessidade que tinhas desse equilíbrio entre o sujeito que eras e o social em que te movias, lembro-me como se fosse agora, lembro-me que nunca mais no meu espírito houve paz, condescendi e calei-me, disseste-me com um sorriso:

- A vida é um palco, sê.

Tornei-me egoísta,

e desde aí vivo no medo, de ficar só, de perder-te.