domingo, 21 de dezembro de 2014

215 - UM CAFÉ, UMA MESA, UMA ESPLANADA...

                                        

Enquanto mirei e remirei as páginas da revista o Sezídio confirmou-me que sim, tinham reduzido o tamanho das letras, e sem óculos já lá não iria. A Dolores ofereceu-me prontamente os dela mas recusei, um homem deve resguardar o orgulho, fosse eu visto com aquelas armações cor de rosa cheias de brilhantes e teria pela frente dois ou mais anos de luta para restabelecer a auto-estima. 
     
Maldissemos o economicismo exagerado dos nossos dias e desenterrámos Gutenberg (1398-1468) e o dia em que colocou os olhos numa velha prensa de esmagar uvas, pois não lhe terá ocorrido o rol de transformações que a sua atitude induziria e o mundo sofreria mor dessa sua idéia maluca. A prova ? Ali estava eu enrascado e lendo só os títulos…

A Cármen aproveitou e desatou a língua, que até aí os livros, lindos mas raros, manuscritos, iluminados ou animados por belas ilustrações, eram coisa rara de se ver e fora do alcance do comum mortal. Ele, Gutenberg, fora claramente o percursor, ou seja, foi quem no-lo deu, ou libertou, todo este mar de informação em que soçobramos. Disse ela aproveitando o ensejo, era bibliotecária na universidade e passavam-se semanas sem que lhe ouvíssemos um suspiro que fosse.

Criou os tipos e os caracteres, alinhou-os, entalou-os e pressionou-os contra uma folha de papel, espremeu-os com a velha prensa do lagar das uvas e obteve num só mês, mais livros do que aqueles que os monges tinham copiado nos últimos duzentos anos. Afirmou ela abrindo os braços solenemente e sorrindo. Tinha bons dentes e ninguém diria já ter festejado os cinquenta.

Logo o Couto, que trabalhava numa gráfica nos adiantou que aquela iluminada ideia acarretara um mar doutros problemas, que a racionalização do tamanho da folha de papel e o seu aproveitamento ditaram letras cada vez menores, que os padres e frades de cada paróquia, por norma gente entradota, sofreram as primeiras vicissitudes às mãos da miopia. Contudo, atalhou o Neves, de pronto e como os de Olhão, os vidreiros da ilha de Murano, em Veneza, há muito conhecedores das propriedades das lentes logo ali viram, disseminado entre os milhares de religiosos e velhos da Europa, um mercado nada despiciendo e vá de produzirem em profusão umas meias esferas de vidro, a modos de meias lentes, que deslocadas ou arrastadas por cima das pequenas letrinhas as ampliavam até atingirem a dimensão de um rato fareleiro se necessário fosse. Uma espécie de lupa primitiva e sem cabo.

O Francisco atalhou, aflito e temendo que se lhe acabasse o tempo, quase sem voz, quase incapaz de respirar, vá lá, adivinhem, sim, trabalha aqui no bairro, na Óptica Marilux, atalhou ele que, apercebendo-se desse facto, os italianos, golpistas e oportunistas desde a Roma antiga, como sempre, aproveitaram para inventar ou criar os primeiros óculos, industria que ainda hoje dominam a nível mundial, confirmando que as descobertas são como as cerejas ou como as conversas, atrás de uma vem sempre outra melhor ainda.

- É ou não é Rui ?

E puxando da bomba da asma inspirou fundo, fechou os olhos e recostou-se. Bem, o Rui, tal como eu, pasmava de ouvi-los.

Terá sido pouco tempo depois que um holandês, melhor será dizer flamengo (nessa altura ainda não havia Holanda, confirmou o Bastos) um flamengo experiente fabricante de lentes, apresentou a descoberta casual, acidental ou estudada, desculpem mas não sei explicar-vos os pormenores, do primeiro microscópio de que reza a história. Na verdade sei somente que se tratou de uma casa reputada no ramo das lentes havia muitos anos, e onde, colocando uma lente à frente de outra, fazendo-as convergir ou divergir, no essencial constataram o aumento exponencial das coisas mais ínfimas, mostrando na ocasião ao mundo um outro mundo, micro, até aí ocultado ao ser humano que pela primeira vez viu e se espantou com o universo das bactérias e micróbios. E nisto olhou com olhos de carneiro mal morto a Cármen, como que pedindo a anuência dela ao que dissera. Cá para mim não restavam dúvidas, aqueles dois andavam enrolados era o que era.  Vendo-a sorrir o Bastos continuou.

Desconheço ter este flamengo alinhado as lentes de modo convexo côncavo, convexo convexo, côncavo convexo ou côncavo côncavo, sei que as alinhou e que ganhou com isso rios de dinheiro. Todavia decerto não foi esse o incentivo que, anos mais tarde, levou um outro italiano a dar-lhes alinhamento tão diferente que longe de ter visto bactérias lobrigou Marte, Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno, e nem imagino que mais terá conseguido ! Imaginem as voltas que a partir daqui não terão dado a óptica a biologia, a microbiologia e a astronomia ! Ah ! E também o fabrico de papel.

- E evidentemente as tintas os lápis e as canetas borrachas etc. etc. e tal … Atirei eu que ainda tinha que cuidar de comprar pão e com pena minha teria que ir-me embora, de modo que balbuciei, como que introduzindo o fim à conversa:

- Uma mente preparada vê antecipadamente o passo seguinte e desbrava o futuro dando que fazer ao presente pessoal. Improvisar é aqui, neste cantinho à beira mar plantado. Por isso mesmo, nessa sequência lógica outros surgiram posteriormente nessa esteira, Nicolau Copérnico por exemplo, (1473-1543), cuja teoria lançou com base em observações suas e em muito matutar de cabeça que os descobrimentos portugueses despoletaram por todo o mundo, e mundo nessa altura era quase só a Europa, mas sem provas que fundamentassem o seu modelo do universo. (Heliocêntrico, teorizava o Sol no centro do sistema solar).

      Copérnico somente aprofundou essa visão como a mais susceptível de verdadeira se comparada com o clássico modelo Ptolemaico que defendia o modelo Geocêntrico. (A terra no centro). Quisesse ele mais e teria que fazer como os portugueses, esses sim, mudavam o mundo do avesso mas davam provas do que diziam com o seu experiencialismo. Foi ou não foi rapaziada ? 

- Tinhas que vir ao de cima com a tua mania que és esperto e sabichão. Bem malta vou almoçar, ou vamos almoçar que pelo menos eu não estou para aturar o Umberto, este gajo é uma seca.

- E não é que se foram todos ?


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

214 - MARGARIDA A ESTRELA VOADORA...


Claro !
É Ela !
Era trapezista no circo Shen !
Mas como é que demorei a reconhecê-la ?
Está tão diferente !
Foi isso.

Não que não continue linda, entendam-me, talvez até mais linda agora mulher madura, as feições melhor definidas, uma beleza natural e muito longe do excesso de maquilhagem com que subia aos trapézios.

Isso e o ter a cara permanentemente escondida atrás de uns óculos de sol enormes ludibriaram-me durante algum tempo, até àquela foto sorrindo em que a comissura dos lábios me chamou a atenção.

Era ela. Tinha que ser ela. Quantas vezes no passado lhe mordiscara aquela comissura quando, perdidos um pelo outro, nas tardes sem matiné e sem treinos nos espojávamos na roulotte dos bastidores, perdidos de loucos, perdidos de paixão, perdidos por cem, perdidos por mil...

Quantas vezes ? Nem já imagino quantas. Muitas. E depois, repentinamente desaparecera, deixando-me tal mágoa e crise no âmago que custei a debelá-la. Ainda hoje sinto horror a tudo que seja cutelaria, a qualquer uma por mais pequena que seja, mesmo a de cozinha. Foi trauma ou feitiço que se apoderou de mim.

Revivo quando sustinha a respiração e até o olhar, temente que o mínimo movimento desviasse a trajectória certeira daquela dúzia de facas uma só que fosse e que ele, de olhos vendados e surdo ao clamor assustado da multidão nas bancadas, atirava certeiro, infalível, à roda louca em que tu, que te não limitavas aos trapézios, te deixaras prender pelos pulsos e tornozelos desafiando a lei das probabilidades e o bom senso, fazendo-me suar, mão na boca, aflito, até que o girar da roda parasse e te soltasses sorridente para, numa vénia estudada, agradeceres à chusma a suspensão do respirar que te permitira superior concentração e arrojo e, dissimuladamente me atirasses com as pontas dos dedos um beijo. Só então me atrevendo a limpar o suor da testa e a abandonar as cortinas do camarim onde embevecido me ocultava p'ra te olhar durante uns deslumbrantes cinco anos, todas as noites exactamente pelas vinte e duas e trinta e também aos sábados e domingos, meticulosamente às dezoito e quarenta e cinco. Jamais esquecerei.

Sim, recordo como hoje aquela tarde em que, respondendo a um anúncio me apresentei como candidato a tratador de tigres e leões, vendo-me antecipadamente como um famoso domador e sim, o lugar foi meu e admitido logo no dia seguinte, o que fez com que me exaltasse de tal modo que logo ali dei início à celebração do novo mister, antevendo uma carreira coroada de sucessos e glória. Tomei então consciência de quanto tinha pesado e sido preponderante a minha experiência anterior, de que estava farto e há muito abjurara, especialmente saturado do oficio de magarefe carniceiro no talho da Manutenção Militar que, por ignorância, abraçara aos dezassete anos de idade.

Hoje tenho a certeza, teres sido tu e os teus superlativos elogios à minha destreza e rapidez a esquartejar bodes velhos, badanas, burros mancos e tudo quanto me traziam afim de alimentar os tigres e leões que conquistaste a minha atenção primeiro, a devoção depois e esta assolapada paixão que então desassombradamente me fizeste viver desde esse primeiro momento de retoiça quanto o desaforo e a coragem com que, a trinta metros de altura, saltavas de um trapézio para outro, olhos vendados, as lantejoulas do fato cuspindo reflexos debaixo dos holofotes rasgando a escuridão e o silêncio, para no fim nem esperares pelas palmas, e nos sumirmos enrolados por trás dos panejões, tu refulgindo tal qual um peixe de escamas doiradas chispando no azul marinho de um mar solarengo, eu de torso salpicado por goticulas de sangue fresco do jantar das feras e que, excitada, lambias e sorvias sofregamente como se a salvação se encontrasse na perdição a que nos entregávamos e eu fosse a tua redenção.

Eras tu. Agora já não tenho qualquer dúvida. És tu, a Guidinha, a quem jamais perdoei ter fugido com o atirador de facas e que agora, perturbado pela tua beleza e descoberta, melhor dizer redescoberta, me vejo incapaz de te odiar como odiei nestes últimos dez anos, vividos como um silício em permanente azedume, ora toldado ante a tua imagem e perfeição, ora esperançado numa anunciação de paz celestial que me redimisse do inferno a que condenaras o meu viver, porque sim, és tu, ou tu ou tão sublime encarnação que bastaram dois segundos para que todo eu tivesse mudado e me sinta de novo apaixonado como na primeira hora, buscando as camisolas de manga cava que juraria ter guardado nesta gaveta e afinal nem nesta nem nas outras, recuso-me assumir tê-las sumido na raiva que de mim se apoderou quando me trocaste por aquele atirador das facas, aquele reles e sonso faquir, abandonando-me cego de fúria e de ódio.

Naquele dia numa perseguição inconsequente, procurei-o de cutelo na mão, sorte a dele não o ter encontrado ou as feras teriam tido nessa noite rancho melhorado. Não imaginas Margarida do que era capaz desvairado por tamanho choque e alucinado por tamanhos ciúmes, sorte tua também não ter atinado com o teu paradeiro naquele dia minha grande puta, minha cabra, meu amor, minha querida, minha vida, perdoa-me, não sabia o que fazia.

Calmo como estou agora, reconsiderando ante ti, penitencio-me roído de culpas e remorsos, e juro-te meu amor, uma só palavra tua e a minha alma será salva, estala os dedos e num ápice ter-me-às arrojado a teus pés, coberto de sangue a fim de saciares a tua sede, mas deixa que te diga meu amor, minha paixão, minha kerida, minha vida, não tentes fazer-me o mesmo porque não terei contemplações, afianço-te que submergirás ao meu abraço e a minha mão enrolará em duas voltas esses lindos cabelos em que tantas vezes e tão loucamente me enleei, e no primeiro golpe atirarei ao teu pescoço, garanto-te que ainda manejo o cutelo com a destreza de antanho e te degolarei à primeira, sem arrependimento nem dor, sabes que seria incapaz de te magoar ou fazer sofrer minha kerida, a minha paixão é a mesma coração, somente o meu amor por ti se agigantou.

Por isso minha querida, meu amor, nem tentes, nem sequer penses, nem te atrevas a voltar a abandonar-me meu sonho. Lembras-te do Pasha e do Zulu sempre com o pelo tão luzidio Guidinha ? Lembras-te como só sossegavam à hora de serem alimentados quando era eu a fazê-lo amor ? Lembras-te do palhaço Rikinho que desapareceu de um dia para o outro e nunca mais voltou nem foi visto em lado algum coração ? Recordas o engolidor de espadas ucraniano que nem o arsenal de punhais levou e a quem nunca mais ninguém conseguiu pôr a vista e cima minha doce paixão ?

Não te quero perder de novo minha queridinha, estive dez anos sem ti e não quero voltar a perder-te meu amor, espero sinceramente que o teu regresso tenha sido por mim meu sonho. Aguardarei mais uns dias Guidinha, vou vigiar-te de perto, vou rever polir e afiar a cutelaria, estou um pouco destreinado é certo, mas ainda serei capaz de dar conta de qualquer recado em meia hora e continuo a ser o melhor com o cutelo.

Adoro-te filha, amo-te minha filhinha, e Deus é grande, pensa bem amor, faz por ti Margarida.....



terça-feira, 9 de dezembro de 2014

213 - MATAR O PAI ... FREUD EXPLICARIA ...



                   Breve nota prévia: atendendo ao estado do país e inerente qualidade de vida dos seus cidadãos, e não tendo sido o reino governado por cubanos ou kozovares, naturalmente caberão aos pais da pátria e inclita geração de descendentes quaisquer agradecimentos que lhes queiramos deixar.

                Fez agora noventa anos, e comemorou-os com uma festa intimista que juntou duzentas e cinquenta pessoas. Parece que há dez anos, quando da passagem dos oitenta, teriam sido duas mil, segundo afirma a comunicação social. Não me revejo entre os que sentem dever alguma coisa a este avôzinho e, colocando-me no lugar dele, não me orgulharia nada destas liberdade e democracia que, segundo alguns, lhe devemos.

Um dos nossos grandes males enquanto povo é nunca exigirmos escolher o menú, comemos o que quer que nos ponham em frente e no prato. O avôzinho (e como tive largas oportunidades de verificar todo e qualquer apaniguado, que de o ser se preze, e detenha poder), respira vive e transpira democracia, desde que todos façamos o que ele (s) quer (em) e ordena (am). Não sei se o avôzinho será mais padrasto que pai da nossa democracia. Que muito a terá condicionado não restam duvidas, que ela (democracia) seja esta desgraça que ora vemos e vivemos lamento-o pesarosamente.

O pior é que com ou sem avôzinho os apaniguados parecem padecer de um sentimento de infantilidade, insegurança, atrever-me-ia a dizer orfandade. Freud explicaria certamente a coisa como falta de maturidade, o que nada me admira pois que, cada vez que o poder lhes cai nas mãos se portam como crianças alvitrando uma bola. Primeiro uma birra por não a terem, para depois de a conseguirem nem saberem o que fazer com ela.

Se uma democracia como a que defendem fosse um “produto”, as leis do marketing há muito a teriam chumbado, senão reparem, em quarenta anos não conseguiu implantar-se no “mercado”, continua, de forma instável, insegura e incerta a bater-se com a concorrência por uma quota de mercado que há muito devia estar plenamente assegurada, não raras vezes oferecendo gato por lebre  e levando a uma oscilação de fidelidade e abandono por parte dos consumidores, não sendo uma marca que garanta nem a qualidade nem a coerência e sobretudo a constância das suas próprias especificações. Submetida às rigorosas normas ISO 9000 soçobraria.

Se a Mercedes, a W ou a BMW ou quaisquer uma de muitas outras marcas de renome que conhecemos vivesse debaixo de tais atributos, duvido que tivessem conseguido a fidelidade e confiança que os consumidores lhes atribuem. Talvez eu exagere, afinal os grandes partidos sofrem do mesmo mal, talvez a excepção sejam somente os mais pequenos, que conseguem manter estabilizadas percentagens e eleitores, mas com os quais afinal também ninguém irá a lado algum.

Se nos faltam leis contra a corrupção, contra o enriquecimento ilicito, e tantas outras, em especial as estruturais, essencialmente aos dois grandes partidos do “centrão” o devemos. Sobretudo o avôzinho, fez da politica uma visão e uma causa suas, não a visão ou a causa de todo o país. Demorei quarenta anos a perceber isto, mas mais vale tarde que nunca.

Guterres foi o último politico a quem bati palmas, passado pouco tempo senti-me traído. Afundado nas autárquicas dos finais de 2001 e olhando o país Guterres viu um pântano, mas em vez de combatê-lo demitiu-se. Perdeu-se uma das últimas oportunidades para, sem dor, colocar Portugal nos eixos, e ao invés disso continuou a varrer-se o lixo para debaixo da carpete, quem diz o lixo diz o défice. Enganaram-nos, mentiram-nos deliberada  e premeditadamente. 

Sucedeu-lhe Barroso, o tal que não descansaria enquanto no país houvesse uma criança com fome. (já então as cantinas escolares matavam a fome a imensa gente). Também Durão Barroso teve uma epifania e viu-nos todos de tanga, decerto num pântano e de tanga, e que fez ? Arregaçou as mangas e encetou as reformas que Guterres não implementara ? Não.  Arranjou um bom emprego e atirou com a água do banho e o bébé para o colo do “menino guerreiro”, o resto desta triste história todos nós a sabemos. Quanto às tais crianças a que Durão Barroso se referia, soube-se há dias que pela porta do cavalo meteu o filho no Banco de Portugal. Não salvou as criancinhas todas, mas salvou ao menos uma. Porreiro pá ! Como ele diria... A transparência e o mérito acima de tudo...

Mas este sentimento de orfandade de que enfermam os acólitos do avôzinho não é exclusivo seu. A morte de Sá Carneiro deixou igualmente orfãos os nossos laranjinhas. Aliás Cavaco só ganhou o partido porque tropeçou no palco da Figueira da Foz, a que apontara no intuito de fazer a rodagem do carro, um Citroen BX, palco onde subira para arengar haver mais vida para além de Camarate, que ainda não deixaram de chorar, e já vamos na décima comissão de inquérito. Orfãos de pai, mal viram Cavaco no palco fizeram-lhe como ao velho sargento pára-quedista na II GG, que foi coroado como herói.

Conta-se que um velho e sabido sargento se viu enrascado quando, na madrugada do dia D, foi largado sobre os campos de França. Ninguém negou, aliás todos o viram gritando ordens ao batalhão em plena queda livre. O que nem todos sabiam era que o pára quedas não abrira, e o nosso homem vociferava contra tudo e contra todos maldizendo a sorte que lhe calhara. Ou a falta dela.

Mas quis Deus que tivesse “aterrado” em cima de enorme meda de feno, e, quando não se refizera ainda nem do susto nem da surpresa por estar vivo viu-se rodeado de alemães dispostos a fazer cumprir a sina que o destino lhe não quizera cobrar. Sacou da metralhadora e rátátá rátátá, defendeu o coiro, gritou, gesticulou, vociferou e os restantes homens do batalhão, vendo que nunca perdera o controle nem o ânimo, seguiram-no com igual entusiasmo e esforçaram-se por igualar tão grande exemplo de dedicação e coragem.

Só ele sabe quanto ficou a dever a um casal de velhos normandos que, esperançados na liberdade que lhes trazia, lhe permitiram mudar ou lavar as cuecas e as calças visto que se tinha cagado de medo. (já lá vão quase 70 anos e a memória atraiçoa-me). Grande sargento esse. Hoje tem o nome numa ponte da estrada entre Caen e Rouen, a primeira uma cidade eternamente em dívida e onde lhe foi erguida uma estátua em tamanho natural, em bronze, como a que agora o escultor Leonel Moura pretende, não decerto inocentemente, oferecer ao avôzinho.

Assim se deve ter sentido o nosso heróico Cavaco quando o desceram em ombros do tal palco, inicialmente um debutante economista desejoso de perceber de economia, e depois PR, fazendo as vazas de caixeiro viajante das arábias e publicitando e vendendo vacas risonhas, cagarras selvagens, cavalos, as nossas empresas e o nosso país, o mesmo país ao qual, suprema ironia, enquanto couteiro-mor matou a economia, as pescas, a agricultura, a indústria, que num arrobo de visão premonitória trocou por trinta dinheiros. Ora não tivesse sido esse sentimento de orfandade e jamais os portugueses lhe teriam dado dez anos de prime minister e outros tantos de président....

Já o manhoso do avôzinho sempre deu barraca, mas sobretudo depois de velho. Noutro extremo o palerma do caixeiro viajante não acerta uma e não perde a oportunidade de se ridicularizar aos olhos da maioria deste bom e matreiro povo. E entre estes dois padrastos, entre estes dois marretas tão diferentes anda chutada de um lado para o outro a nossa democracia, se, como diz Rui Rio, será por votarmos de vez em quando que ainda é uma democracia... ? Porque quanto ao resto...

Se nunca foi encontrado um meio termo entre estes dois polos tão opostos não temos que nos queixar. Aujourd'hui sont Sócrates et son ami Passos Coelho... Nunca passaram de dois peões menores nesta disputa de quarenta anos. Ainda hoje não sei qual deles será pior nem qual deles o mais parvo, sei que nenhum ficará na história, um porque devido à xico espertice não a apanhou quando devia e a teve no apeadeiro, outro porque a pontapeou para longe por ignorância desmedida.

                O Avôzinho ? O Cavaquinho ? Nem um nem outro preparou o país para mais que a satisfação dos seus pessoais ou particulares interesses e jogadas. Nada, não temos nada. Nem reguladores, nem leis quadro capazes, nem presente nem futuro. Nem tacto, nem ao menos bom senso. Caminhamos a galope para o quarto ou quinto mundo sem que tal desassossegue algum deles, ou alguém. Costa anui que sim, que errámos, (no tempo de Sócrates) “mas que estávamos no bom caminho” ... Pela minha lógica tal significa que poderemos continuar a errar.... 
                                                                   Oremos...http://www.dinheirovivo.pt/economia/interior.aspx?content_id=4284320&page=-1

O investimento directo estrangeiro cai há mais de dez anos, o público é quase residual, carece de dinheiro que o concretize e sem dinheiro nada feito. Estamos aviados. Continuem a brincar ao pai da pátria. Aos pais da pátria. Ou à democracia, enquanto a fome chacina, a desigualdade grassa e os donos disto tudo se riem de tanta irresponsabilidade, ingenuidade, cegueira e leviandade. E querem que me orgulhe desta democracia e dos seus pais ? Com tanto protocolo que se assina todos os dias não podiam reestabelecer um que houve com Cabo Verde ? Está na hora de recuperar as virtualidades do Tarrafal....

           Pois se até já surgiu quem defenda que o PR deve ser eleito pelas instituições...  (http://observador.pt/2014/12/06/dirigente-ps-defende-fim-da-eleicao-direta-presidente/ ) Mais uma idéia peregrina, como tantas outras que há quarenta anos bolsam....

 Salve-se o sistema, que se lixem os portugueses, que se lixe a nação...                         Que emigrem...


 

                                                                       

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

212 - QUARENTA E QUATRO 44 r/c ...............


Trabalhar para quê e para quem ? Nao sendo transcendente a questão que Margarido colocava era pertinente e, ora porque não tivessem argumentos para a rebater ora por não quererem alimentar polémicas com o personagem, mor das vezes deixavam Margarido com a pergunta no ar, sem resposta, e até sem conversa, simplesmente não lhe aparavam as jogadas por estar sempre do contra ou usualmente rebuscar uma qualquer perspectiva que regra geral nem lembraria ao diabo.

Razão tinha-a ele de sobra, e o que sobejava (desculpem a redundância) era mais que suficiente para se tornar incómodo para qualquer um, com elas não, porque elas pareciam ter mais paciência para o tolerar sendo até mais abertas e dispostas a contra argumentar, todavia, o facto de noventa e nove vezes em cem ele ter razão, perdia-o. Ninguém estava para o aturar. A verdade, como todos sabem, incomoda muito, a razão incomoda muito mais.

E a verdade é que durante quarenta anos este bom povo se tinha esmifrado, e suado, para construir grandes empresas, nas comunicações, nos transportes, nos seguros, nas energias, na saúde, na banca, e agora, nem em meia dúzia de anos, de uma penada e por tuta e meia passavam para mãos estranhas. Logo agora, que estavam maduras e eram rentáveis é que eram passadas por meia duzia de patacos mal contados. Outros lhes sugariam o tutano, cabendo-nos a nós continuar a dobrar a espinha, a amouchar e calar.

Margarido tinha razão, alguma coisa falhara e não fora ele, que além do amor pátrio e do prestigio nacional nada mais perdera, pois nunca trabalhara, (ver texto nº 208 – ATIREI O PAU AO GATO...) e agora muito menos contassem com ele porque nunca se sentira com vocação, costela de colaboracionista ou traidor. E, como não se cansava de dizer, ainda por cima trabalhar para pretos ou chinocas como estava a acontecer em grande escala, para nosso desprimor.

Ali onde o viam todos os dias, na linda esplanada do 44 r/c, na Pastelaria Alegria, à praça do Imaginário, ele meramente assistia e esperava o dia em que tudo desse um grande estouro e um maior espectaculo. Tal como ele, julgo ser pacífico para toda a gente que nos estampámos. Um autocarro conduz-se agarrando o volante com unhas e dentes, um avião pilota-se sobretudo acrescentando miolos, um país dirige-se a partir do gabinete do primeiro ministro e dos ministérios das finanças e economia. É obvio que nos últimos quarenta anos esses lugares estiveram desocupados, ou pelo menos não o foram por gente capaz de os exercer. Da AR já nem ele falava, duzentos e trinta inúteis abanando a cabeça em assentimento e fazendo pela vidinha em permanência.

Se ao menos a administração pública funcionasse exemplarmente, ia perorando, mas nem nisso tivémos sorte, pejada que estaria de quadros médios e superiores que nem faziam uma idéia pequena que fosse do que era chefiar, comandar ou administrar. Falta-nos, como na tradição francesa, uma escola superior de administração pública o que, aliado ao mau hábito de atribuir lugares de responsabilidade a politicos irresponsáveis, incultos, incapazes e videirinhos, tem feito de nós a nação que somos, exangue, exausta e exaurida.

A nossa longa história, de quase novecentos anos (isto aprendeu o Margarido comigo) bem nos tem demonstrado que só evoluimos quando debaixo de poderes coesos, unos e fortes, razão tinha Manuela Ferreira Leite, mas não necessitamos somente de seis meses, nem sessenta, mas de outros quarenta e oito anos. Afonso Henriques, D. Dinis, o Infante D. Henrique, D. Manuel, Fontes Pereira de Melo, Salazar, a história é testemunho de que democracia e paninhos quentes nunca nos levaram a lado nenhum. A primeira república foi um regabofe em que os dois principais partidos deixaram resvalar a situação para além dos limites do aceitável, tal qual como agora. Em 1926 os militares, descontentes com a corrupção desenfreada e tementes que lhes faltasse o pré, tomaram nas mãos o poder que os democratas tinham sugado até ao tutano e convidaram Salazar a endireitar esta merda. (sic, palavras ouvidas ao Margarido) Quem teremos que convidar desta vez ? Quem nos salvará agora desta mortífera democracia ?

Desgraçadamente o Portugal de 1910 – 1926 tal como o de 1974 – 2014, só serviu para enriquecer não se sabe bem como, meia dúzia de democratas bem instalados. Em simultãneo o país regride, o povo é explorado e vilipendiado, a suspeição envolve a maioria das gradas figuras nacionais que, quanto mais sobem mais se lembram de si mesmas e melhor se amanham, sendo que democracia acaba por ser sinónimo de oportunismo, amiguismo, compadrio, partidarismo, falta de isenção e de transparência, o oposto do que devia ter sido, e ser.

A impreparação e inconsciência de muitas chefias da nossa administração pública é gritante, e a ignorância acerca do mundo em que se inserem e movimentam confrangedoura. Não duvido que arvorem altos diplomas, em economia, gestão de empresas, arquitectura ou engenharia, mas do ponto de vista social e humano algumas são verdadeiras nódoas e do ponto de vista cívico e político um zero à esquerda, não enxergam mais que uma Capivara (estou a lembrar um dito do meu amigo Carlos C.).

Após o términus das licenciaturas, muitos deles (e delas) deveriam ser obrigados a frequentar qualquer curso de administração pública (e estes obrigados a existir) afim de tomarem conhecimento e consciência do reflexo das suas atitudes e posturas a montante e a jusante das decisões que, tantas vezes (demasiadas) cega e impensadamente tomam.

Portugal não está assim exclusivamente devido aos péssimos politicos que elegemos, as decisões do dia a dia a nivel micro também contam. É certo ser a força da gravidade o sustentáculo do universo infinito, a nível macro, mas ao nível do ínfimo, entre electrões e protões que rodeiam o átomo encontramos a mesma e misteriosa força aglutinadora. Temos a nível macro um PR, um PM, governo, ministros e secretários de estado, mas a nível micro os concelhos, as freguesias, os seus representantes eleitos, e também os chefes de repartições, de serviços, de secções, de departamentos, enfim uma miríade de decisores, de fautores e de gente cuja opinião é ouvida, partilhada e seguida, gente que falhou rotundamente. E não me venham dizer o contrário, porque o país é efectivamente um buraco sem fundo, e isso vê-se ao longe, até um cego repara, tal a dimensão da tragédia.

Jamais haverá impostos que cheguem para sustentar esta desgraça, a única saída é o crescimento, a produção, a criação de empresas e emprego, de riqueza. Facturar, facturar, facturar vai ter que ser o nosso alfa e ómega. Sem isso todas as soluções serão estéreis e inúteis ou demagógicas e é bom que todos, repito todos, nos consciencializemos disso e comecemos desde já a colaborar uns com os outros, ao nível macro e sobretudo micro, pois que ninguém que não nós virá em nosso auxílio, quando muito emprestará dinheiro a juros de agiota para que nos endireitemos, mas seremos sempre nós quem terá que se endireitar, seremos sempre nós quem terá que fazer pela vidinha. Será assim tão dificil de perceber ?

As nossas posturas reactivas estão a empobrecer-nos, somos nós quem se empobrece uns aos outros. Não culpem a Merkel, não culpem a Troika, saberá você que me lê haver milhares de projectos parados em ministérios, comissões de coordenação, direcções gerais, câmaras municipais, há dez, quinze, vinte ou mais anos aguardando deferimento ? Inviabilizamo-nos, destruimo-nos, combatemo-nos.

A nossa postura para com quem nos procura ou ante quem atendemos terá que passar a proactiva, teremos que deixar de nos escudar em burocracias ou excessivos e artificiosos legalismos e ajudar o “outro” a encontrar a solução para o problema que o trouxe até nós, a ajudá-lo a superar as dificuldades e a concretizar os seus desígnios ou sonhos, que também terão que passar a ser nossos, que gerarão empregos, induzirão outras soluções, pagarão impostos que nos suportarão e contribuirão para pagar a saúde, o ensino, a defesa, o bem estar de todos... O montante e o jusante são uma mesma realidade, nossa, são duas caras da mesma moeda, indivisíveis, tocam-nos no âmago, teremos que ultrapassar a demagogia, preconceitos, os juizos de valor e até as melhores boas intenções...

Quando das eleições autárquicas de Setembro de 2013 todos os municípios alardearam num clamor gritante o seu interesse, defesa e protecção do investidor, do empreendedor, do inovador, do promotor. Há poucos dias, por razões que não interessam agora ao caso, dei uma volta pelos sites dos municípios do Alentejo e verifiquei com tristeza que tudo aquilo não passara de paroli paroli paroli... Contam-se pelos dedos de uma mão, e não a esgotam, os que, depois de tanta conversa fiada alojam no site uma página que seja, ou até um mero apêndice dedicado à temática, tal comportamento não nos diz tudo, mas diz-nos muito mais que mil discursos ou boas intenções...


sexta-feira, 28 de novembro de 2014

000 211 - CANTE ALENTEJANO, O QUE DE ESSENCIAL DEVEMOS SABER SOBRE ELE ... *

Pintura - trabalho do artista eborense José da Fonseca -  sprays s/k-line, 70x100cm



Alguns amigos fizeram chegar até mim o eco da sua incompreensão, o seu desagrado e até o seu protesto pela minha aparente falta de jubilo e solidariedade para com o cante alentejano, que ora foi considerado pela ONU património cultural imaterial da humanidade a nível mundial.

Pois bem, deixai que vos esclareça, porque na realidade só aparentemente tal desiderato não me sensibilizou, aliás se não tivesse sensibilizado nem me teria sequer pronunciado, o que fiz, e que justificou as vossas apreensões e repreensões.

Evidentemente, como alentejano que sou (e nem conseguiria deixar de o ser mesmo que quisesse) todo o meu orgulho vai para esse facto, sejam ou não alentejanos todos os que o festejam e comemoram. Na verdade o cante nem é a única expressão musical tradicional no Alentejo, aliás é mais genuína do Baixo Alentejo que do Central ou do Alto. Coexistiram sempre outros géneros e outras adaptações entre nós. Mas o cante tem uma característica repetitiva e um andamento lento e pejado de abundantes pausas que caracterizam e identificam a sua natureza monótona, e isso é exclusivo e peculiar ao nosso cante.

Na essência não posso deixar de me orgulhar, o cante é sobretudo tradição, e sendo tradição é memória, e sendo memória é testemunho, e sendo testemunho é história, e a história faz-se com fontes, de que o cante é ampla e vera prova. Sendo precisamente a história a minha primeira licenciatura, terão que anuir existir motivo justo e forte para que na essência eu esteja de alma e coração com o “cante”, ele é transmissão do sentir do povo alentejano desde muito antes da reconquista cristã, há quem o situe na era recuada dos mercadores gregos e fenícios, ou com a presença romana neste canto da península, ou o ligue à proverbial indolência dos árabes que daqui corremos. 

        Com a reconquista cristã e as vastas terras ou propriedades dadas em aforamento, foral ou enfiteuse, os coutos de homiziados, as doações a ordens religioso militares, todos estes processos jurídicos geraram grandes, extensas e vastas propriedades, ou herdades, como as que por aqui abundam e tão contestadas foram quando do 25 de Abril de 74. (poderão googlar todas estas expressões, eu estou a citar de cabeça e não dou explicações à borla)

O cante é sobretudo o sentir de um povo subjugado à terra e aos senhores dela, um povo servo da gleba, e que encontrou no lamento que o cante expia a fórmula para a sublimação da sua raiva e submissão, o cante é o deixar cair dos braços, é a recusa à luta, o cante mais não é que a expressão da frustração de um povo e da dor do seu martírio, da sua exploração, do seu jugo (ver “jugada” no Google) e dessa aceitação calada e conformada.

O cante é portanto mais que um lamento e muito mais que uma mera cantata nostálgica, o cante é sentimento, é resignação, o cante é geografia peninsular, é sociologia, psicologia, economia, história. Mas reviremos ligeiramente o prisma e vejamos a questão de outros ângulos ou perspectivas, comecemos por quem se outorga poder, autoridade para conceder tais bulas, a ONU.


     Este organismo, cuja fundação foi altamente meritória, tem vindo paulatina e essencialmente nas últimas décadas a perder tanto prestígio e autoridade quanta burocracia tem chamado a si. Abarca vários campos e toca variadíssimos instrumentos, parecendo por vezes ter esquecido o seu papel primordial, aquele que precisamente presidira à sua fundação.

Na ânsia de protagonismo nem o “imaterial” escapa à sanha açambarcadora da ONU, tal significa também mais postos de trabalho, mais emprego, em primeiríssimo lugar para burocratas carecidos de objecto justificativo dos chorudos vencimentos, despesas de representação e de custos, e outras que nunca deixam de se atribuir a si mesmos. (um pouco à imagem da UE).

Mas, e o cante ? Voltemos de novo a ele, será que antes de toda esta caricata nomeação era mal aceite ? Mal visto ? Mal divulgado ? Mal protegido ? Não me parece, e a marosca mais me soa a homenagem que os seus defensores lograram atribuir aos próprios. O cante não tinha nem tem mais nem menos valor por isso, o cante nunca esteve proibido de exibição, adoração ou exploração comercial, (agora a propósito das casas de cante à imagem das casas de fado, e cuja demora não entendo, deviam ter sido criadas há trinta anos ou mais) o cante é o mesmo e é igual, diferente somente a perspectiva sob a qual muitos de nós o olham agora, agora que galardoado e guindado a património mundial e nos parecerá edifício majestático que urge abençoar, das fundações aos píncaros.

Sucede que eu já reconhecia o valor intrínseco do cante, muito antes desta reverência inusitada (e incompreensível para mim) que nos últimos dias lhe tem sido atribuída, mas com a qual contudo me solidarizo.

As manifestações de que o cante tem sido alvo roçam o oportunismo, e temo até que o seu uso, que já era exagerado e despropositado tantas vezes, se torne agora um recurso a que deitar mão de forma insidiosa. Por dá cá aquela palha e ao mais pequeno descuido, ou motivo, tomem lá com um grupo, tomem lá mais uma sessão de cante, trate-se de visita de um embaixador, da inauguração de uma escola ou da comemoração de quaisquer efemérides. É que já há muito município que o faz, já o fazia e crescerá a tendência a fazê-lo agora reiteradamente “já que nos está proporcionar um momento de reconhecida cultura”… mais que certo irem fazer do cante pau para toda a obra.

Meus queridos amigos, talvez comecem finalmente a perceber a razão pela qual pareço não morrer de amores pelo cante, sim, estou já saturado, para além de ser um individuo extrovertido e conciliar-me mal com o carácter tímido, intimista ou fechado do cante. Na realidade o cante é tudo que eu não sou, daí que reconheça o seu valor mas não me identifique minimamente com o fenómeno.

O cante é lamúria, queixume, é submissão, é aceitação, julgo que já o dissera aqui. O cante não é um hino à luta, o cante não é protesto, o cante é testemunho de muito mais que oitocentos anos de sofrimento. Outros povos já se teriam erguido e lutado, o alentejano não, e factos como o de Catarina Eufémia são heróicos mas são pontuais, são aventuras, nem uma batalha são quanto mais uma luta, uma guerra, nem mudaram nada. Esperarem que morra de amores por este cante é manifestamente exagerado para mim, jamais seria capaz.

Este cante é sinónimo de solidariedade na resignação, não é nem nunca foi um grito de Ipiranga (vai ver ao Google). O cante tautológico que a esquerda nos oferece é o ideal de subjugação que o capitalismo idealizou, apreciou e com que sempre sonhou, talvez por isso no Alentejo não sejamos capazes de modificar a situação, talvez nunca tenhamos lutado por outros objectivos com o fervor depositado agora em conseguir este desiderato imaterial, talvez nunca tenhamos sido tão solidários uns para os outros, ou para outros fins igualmente comuns, talvez só agora que se tratou de louvar tamanha tontice, mas enfim, depois de ver isto já estou preparado para o pior… não se terá perdido tudo…

Se estou com o cante ? Oh ! Sim ! Com certeza ! Mas que fique no seu cantinho, como tem estado, e onde tem estado, prefiro outros hinos, outros cantes, de exaltação à luta e à vitória, de glória e advento da justiça sobre injustiças de séculos… Foi esta atitude conformada que o cante testemunha e transmite que a ONU distinguiu e reconheceu, e os mídia se esfalfaram a transmitir, contudo não tive o prazer de ver escrita nem uma palavra sobre o significado profundo do cante, ou seja, rejubilam-se e levam a que os outros rejubilem também, mas sem que saibam bem do quê, o rebanho seguirá a cabeça da manada…

Detenhamo-nos nalgumas pérolas da nossa imprensa :

Estamos em festa
Salvaguardámos a tradição
Reconhecimento importantíssimo
Garantido o nosso património imaterial
Estamos de parabéns
Grande alegria da população
Grande motivo de orgulho
Tornámo-nos dignos da maior apreciação
O mundo orgulha-se de nós
Emocionante para os alentejanos
Um dos maiores ganhos…
Visibilidade internacional
Reforço de identidade
Ligação à comunidade

Oitenta por cento dos alentejanos nem saberão alinhavar três palavras sobre a génese e história do cante, mas garantidamente foram preparados para emprenhar pelos ouvidos…. Uma tristeza…


Enorme vitória, grande vitória
Glorificação de um sonho, de uma utopia
Conseguimos

Eu diria que só não conseguimos tirar o Alentejo do mapa da região mais pobre e desertificada de Portugal. Francamente é pouco, francamente é triste.

Contudo faço minhas as palavras e os desejos do Turismo do Alentejo, assim Deus as ouça…


* NOTA IMPORTANTE: Este texto é uma súmula bem resumida e espremida, retirada de uma tese elaborada por mim em colaboração ou parceria com a minha saudosa colega e esposa, Maria Luísa Baião, no terceiro semestre da cadeira de Antropologia sob a batuta do falecido Dr. Francisco Ramos. Corria o ano de 1983 e o tema deste texto, o Cante Alentejano, veio a ser considerado pela ONU Património da Humanidade no dia 27 de Novembro de 2014, o texto tem a data de 28 do mesmo mês e ano. Teria sido impossível “despachá-lo” tão depressa não me tivesse eu (a responsabilidade do texto é portanto só minha) socorrido da extensa, profunda e trabalhosa tese a que aludi. Estou-vos falamndo de qualquer coisa como muito mais de 100 páginas dactilografadas, incluindo a transcrição de dez cassetes áudio, cada uma delas referente ao estudo de um dos principais grupos de Cante entre os muitos que povoam o(s) Alentejo(s), tese que foi merecedora da elevada classificação do dezoito valores (18).



                                                 Immanuel Kant da Silva - Beringel 1724 - 1804