sexta-feira, 19 de junho de 2015

248 - CACHATRA EM S. VICENTE …………………


              Não me recordo já como era aquela canção do J.M. Branco, ou do Fausto... louco ou marinheiro... lólarélóli... Mas procurá-la-ei e colocarei aqui o link, fica jurado. Assim confuso me senti ante a restrita mas rica colecção de pinturas de José Cachatra (1933-1974), o esquecido, enlouquecido, extrovertido, exuberante, doutor, aviador e pintor José Carlos Cachatra,  de Borba mas eborense claro, o indizível, o maldito, o inexplicável, o inclassificável e, por acréscimo ou silenciamento, o inominável.

Já por três vezes visitei esta exposição, (no primeiro dia praticamente só metera o pé na porta) e nem me cansei, há pormenores que nos ocupam uma eternidade a entender. E será que os entendi ? No mínimo conjecturei, o que não deixa de ser uma prerrogativa ou intenção de qualquer artista ou autor, julgo.

Mas não nos afastemos do tema, e para rimar, é pena, é pena que as composições não estejam datadas, porque seria mais fácil entender, ou não, se os diferentes períodos da sua tão curta vida se reflectiram, e de que modo, na pintura e nas opções temáticas e cromáticas que fez. Aproveito porém para deixar eu também os meus agradecimentos aos proprietários das obras, e a todos aqueles que de alguma forma intervieram nesta linda exposição.

Uma coisa é certa, o tema Alentejo quase monopoliza as obras expostas, motivos, paisagens, gentes, e, segundo creio o grosso das obras conhecidas. O que sabemos é que o período vivido em Évora foi dos mais produtivos da sua curta mas profícua e atribulada carreira.

Atentei nos pormenores disse-vos há pouco, na firmeza e domínio do pincel, na inclinação progressão e certeza das pinceladas, em cuja direcção não vislumbrei a mínima hesitação. Casos há em que, ao invés de cerda, ou de espátula, se terá servido dos dedos, o que nos aparece nítido numa pequena composição (talvez 30X20cm, nº PP01 nas imagens que vos cedo) em que até a unha parece ter sido utilizada e, aqui sim, embora em pequeníssima dimensão, hipotéticamente com recurso a uma técnica de Pollock, designada "action painting". Sabe-se que Pollock executava obras gigantescas, saltando para o meio das telas e pintando do interior para o exterior, neste aspecto o catálogo da exposição apresenta alguma ligeireza, ao não ter sido dado a verificar ou rever por autoridade na matéria, induzindo em erro o visitante mais incauto ao comparar a técnica de Cachatra ao "dripping" de Pollock, o que constitui erro grosseiro, o "dripping" é uma técnica de gotejamento ou salpico da tela pelo pincel com a qual nenhuma obra nesta exposição de José Cachatra nos autoriza a fazer tal afirmação ou comparação.

Cachatra modernista ? Sim, claro, mas de um modernismo muito próprio, nele se nota abertamente uma aversão à tradição com a adopção clara de novas formas e fórmulas de expressão a que não terá sido alheia a extinta e brevíssima "Orpheu", (surgida em 1915 mas da qual só se publicaram 2 números), revista que subverteu e durante muito tempo influenciou artistas e autores portugueses em cujo círculo o nosso homem, embora arriscando afirmá-lo, decerto privou. 

           Quase sem excepção as suas figuras, os seus motivos, são fruto das novas correntes já firmadas na Europa, e desenvolvidos num traço estilizado mas nunca deixando de ser firme, o que nos prova uma mão segura, um domínio genuíno da arte e da palete, até naqueles quadros em que, não um "sfumato" mas uma indefinida penumbra anima os contornos. Expressão de estado de alma ? Embora artista seguro surgem-nos por vezes composições suas cujo jogo cromático nos apresenta propositadamente tons esbatidos, a par de outras em cores mais vivas, casos em que me atreveria mesmo a falar de cores limitada ou condicionadamente exuberantes, em Cachatra o deslumbramento nunca nos advém das cores, antes das formas, (exemplo de Flores, na minha designação).

Embora vasta, à volta de cinquenta quadros expostos, acredito que a ausência de muitas obras por dispersão ou desconhecimento delas, não nos permitem que, exclusivamente com base nestas, possamos classificar ou catalogar levianamente o autor. As "poucas" obras expostas mostram-nos uma amplitude temática rica, de onde sobressaem grupos que pela sua afinidade estilística ou cromática, ou técnica, se isolam dos demais, ou antes sobressaem dos demais, já que algumas telas não fazem de modo algum jus à personalidade conhecida do pintor, reservada, e, segundo se conhece, de um dramatismo que o conhecimento precoce e interiorizado de uma morte prematura acelerou, pois a doença e a instabilidade, sabemo-lo, foi uma sua constante e cruz.

Cachatra reproduz Picasso (1881-1973) e o cubismo, com os seus Palhaços Músicos, e Les demoiselles d'Avignon e os seus nus, ou Paul Cézanne (1839-1906) e Les Grands Baigneuses, Cachatra foi um modernista, viveu como um modernista, conviveu com modernistas na sua fase Lisboeta, e eu apostaria ter frequentado tertúlias e partilhado a companhia de outros modernistas portugueses hoje muito conhecidos. A sua pintura no-lo diz, que inclusive muito se assemelha à de alguns pintores europeus, especialmentes franceses, que por pouco não foram também seus contemporâneos.

O nosso homem foi estudante de Belas Artes, foi estudante trabalhador, boémio, professor, oficial da Força Aérea, pintor... Cachatra terá sido, a crer nalgumas telas mais exuberantes, um "bon vivant", um "play boy", um homem com a vida cheia, preenchida, até de problemas creio, a sua saída tumultuosa do liceu de Évora, em confronto com o reitor (homem do regime), faz com que o considere um inadaptado à bonomia e pasmaceira do Alentejo, mais concretamente de Évora, cidade onde, parafraseando salvo erro Vergílio Ferreira, quem tivesse menos de quatrocentos porcos ou mais que a quarta classe não seria gente fiável nem para levar a sério. Sabemos que Vergílio Ferreira deu por essa época aulas no mesmo liceu, mas penso que Cachatra terá leccionado entre 63 e 65, Vergílio Ferreira andara por aqui somente meia dúzia de anos antes, entre 45 e 48. Teria sido engraçada a sua simultaneidade e convívio, que temas lhes teriam açambarcado as conversas e a camaradagem ?

Foi por esses anos que Cachatra recusou ser reintegrado como tenente na Força Aérea, coarctando a continuidade ou curso de uma carreira militar que interrompera, porquê ? Inconformismo e recusa do regime Salazarista ? A guerra ultramarina irrompera feroz em 61...

Não esqueçamos que Humberto Delgado, general nomeado em 59 Director-Geral da Aeronáutica, posteriormente oposicionista, fora perseguido, em 59 exilado, e posteriormente assassinado a 13 de Fevereiro desse ano de 65. A atitude de Cachatra teria sido de insurgência ? Subversão ? Recordemos a veia "modernista" e por acréscimo "futurista" de José Cachatra, e os aviões, os quais eram nesse período histórico as máquinas futuristas por excelência, que o terá levado a abandoná-las ?  Igualmente por esses anos Henrique Galvão, mais precisamente em 1961, organizara e comandara o assalto ao paquete Santa Maria, numa tentativa de provocar uma crise política contra o regime de Salazar e desse modo acicatando os meios oposicionistas, onde decerto Cachatra se moveria, e então efervescentes.

São estes episódios de rebeldia que me autorizam a arriscar afirmar que muito singelamente poderão testemunhá-lo, ou pelo menos assim nos autorizam, a inscreve-lo como um independente, ou portador de um pensamento libertário, ou mais que isso, um independentista formado e empedernido, um sólido ponto referencial de coerência na aparente volatilidade da sua agitada vida.

Seria o antinacionalismo dele, ou nele, que talvez expliquem a sua faceta irreverente, ou anárquica, demolidora de cânones, é sabido que as correntes neo-realistas nasceram daí, da recusa da sobranceria e da exploração ou escravização do homem. O neo-realismo de Cachatra é sobretudo alentejano, pois noutras suas composições não é visível esta corrente, nessas outras está bem vincado o tal impressionismo e proto cubismo órfico que a brochura bem cita, o abstraccionismo e o expressionismo, tudo movimentos, tendências e correntes que nitidamente grassaram igualmente entre outros que lhe foram contemporâneos e com quem terá sido impossível não se ter cruzado em tertúlias e debates.

José Carlos Cachatra dar-me-ia, se o quisesse, pano para mangas, e torna-se tentador um seu estudo sincrónico / diacrónico abrangendo contemporaneidades suas como Almada Negreiros (1893-1970), Júlio Pomar (1926 -…), Júlio Resende (1917-2011), Fausto Sampaio (1893-1956), Dordio Gomes (1890-1976), Manuel Cargaleiro (1927-…), Nadir Afonso (1920-2013), Helena Vieira da Silva (1908-1992), António Charrua (1925-2008), António Palolo (1946-2000) e Paulino Ramos (1923-1999) os dois últimos autodidactas,  e muitos outros, todos eles imbuídos desse espirito de uma época que tudo revolucionara e até já enterrara muitos dos seus principais debutantes e intervenientes, quer a nível europeu quer mundial.

Contudo todavia mas porém a vidinha está má, difícil, e nem me pagam para isso, portanto deixo a oportunidade a quem queira desenvolver sobre o tema quaisquer teses de mestrado ou doutoramento, a gente nova e cheia de garra, acreditem que não brinco.

Infelizmente Cachatra morreu meia dúzia de dias antes do bambúrrio de 25 de Abril de 74, deve ter sido homem de esperanças, felizmente para ele morreu com elas, nós certamente morreremos desiludidos. 

P.S. – Deixo uma nota breve, o desejo que daqui a 50 anos não estejamos de igual forma a tentar adivinhar, ou compor, a vida e percurso de Marcelino Bravo, é eborense, e ainda é vivo).
                                                         PP 01
                                                      FLORES
                                             PALHAÇOS MÚSICOS
                                             




                                                        ÉVORA

terça-feira, 16 de junho de 2015

247 - A PARÓDIA DOS 460 ..........................................

     Eu já esquecera a coisa, mas as circunstâncias encarregaram-se das trazer de volta à minha memória. Ao arrumar e dar uma limpeza na garagem achei uma caixa de velhas cassetes, uma delas, cópia de excertos de várias reportagens que para a RDP fizera em directo e debaixo de fogo no longínquo ano de 2003.

Muitos amigos e colegas, após o meu regresso, se riram comigo e eu com eles, relembrando a panorâmica de 460º que eu afirmara ter a partir da localização onde me encontrava observando e vivendo os acontecimentos. Rimos que nos fartámos, e já bebemos e brindámos à pala disso umas centenas de vezes. O que muita gente não conhece, porque fora desse exclusivo e restrito grupo, são as circunstâncias especiais em que os relatos decorreram, particularmente esse.

Esclareçam-se as coisas, quer esse quer os outros foram feitos em directo, todos eles, o que aliás se perceberá pelo ruído de fundo, não poucas vezes rebentamentos próximos e fogo de retaliação, de artilharia ou de antiaéreas disparando ao acaso contra um inimigo invisível, ao acaso até serem detectadas e pronta e sistematicamente silenciadas. Passados dias coube-me ver a parafernália defensiva montada em camiões que se deslocavam, céleres, após cada disparo, mas convém admitir que essa estratégia foi gizada tarde demais e nada ter adiantado.

A conquista da cidade processara-se com o cronos decorrendo intensamente, e o que era compreensível ou aceitável ou lógico pela manhã poderia estar absurdamente subvertido à tarde, e fazia das tropas defensivas autênticas baratas tontas sucumbindo paulatinamente ao avanço do agente DUM DUM. Algumas eram literalmente pulverizadas.

Adiante-se que quer a minha calma quer a minha coragem eram igualmente aparentes. A calma decorria do facto de ter interiorizado (de bombardeamentos anteriores, aquele não era nem de longe o primeiro) processarem-se os mesmos cirurgicamente, e não ver qual o interesse que poderia haver em atirar o Sheraton abaixo. Tínhamos sido mudados do famoso Palestina para este, cuja construção, mais recente, já obedecia a directrizes de Saddam, (abrigos nas caves), situado em frente e na mesma rua. Acrescia o facto de eu não ter então, ou ainda, conhecimento de danos colaterais sofridos algures, o que também contribuía para a minha calma. A coragem advinha-me de me negar a gorar o prazer aos ouvintes que em directo seguissem as peripécias daquela guerra, da circunstância do edifício abanar mas dificilmente cair, e de me encontrar havia vários dias ensopado de adrenalina.

Por duas ou três vezes apostara comigo mesmo que alvo se seguiria de quantos se encontravam ao alcance da minha visão, e ter ganho essas apostas. Mas a minha recusa decorria também da pouca disposição para descer (e posteriormente ter que subir) quinze andares de escadas, pois a energia passava a maior parte do dia ausente e sem ela colapsavam elevadores e aumentava exponencialmente o perigo de um incêndio em qualquer andar do hotel, onde tudo funcionava à luz das velas.


Foi por essa a razão que, quando os simpáticos encarregados árabes da segurança do hotel me apareceram intimando-me a descer aos abrigos das caves eu me recusara terminantemente a ponto de lhes responder, ou gritar, no fear, no fear, NO FEAR ! numa linguagem que sabia entenderem (que se ouve na gravação). A minha táctica não surtiu contudo efeito, acabariam por levar-me quase à força, não sem que antes acabasse o meu relato, em boa hora, pois que os bombardeamentos se aproximavam a cada minuto e numa linha recta na qual o Sheraton se inseria de modo nítido. 

Evidentemente as minhas calma e coragem eram mais aparentes que outra coisa e encontravam-se até muito longe de dominadas ou controladas por mim, se estar às voltas no carrocel do Alverca já nos inebria, imaginem-me, um pacato alentejano naquela situação. A primeira ameaça residia nos vidros das janelas, se se estilhaçassem seriam arremessados contra mim deixando-me que nem um passador… A segunda ameaça consistia, citava-se por todo o lado, no perigo da forte deslocação de ar provocada pelos rebentamentos estar a arrancar as cabeças do lugar a muita boa gente, mesmo que afastada do epicentro das mesmas, isto para não falar de um impacto directo em que pura e simplesmente reduzisse a pó ou provocasse a derrocada do hotel de 20 ou mais andares.

Confesso ter sentido um fascínio inexplicável em toda aquela situação, o tremer do prédio, que contagiava as minhas pernas com um tremor que se apossou de todo o meu corpo, e o espectáculo de luz e som em que inconscientemente olvidamos quem ou quantos o alimentam, isto é, nele perecem. É um festival de luz cor e som inimitável, um cheiro a pólvora que inebria, e em que uma falsa sensação de segurança prodigiosa nos cola agarra e fixa ao lugar, em que um misterioso encantamento nos torna admiradores inconfessáveis do homem e da técnica ou os extremos a que a aliança deles nos conduziu, como é possível tanta maravilha ?

- Tanta precisão, tanta pontaria
- Tanta capacidade, tanta destruição
- Tanta indiferença, tanta intenção
- Tamanho absurdo, tal maldição ?

Não foi portanto o maravilhoso mistério da criação que me tomou, antes o deslumbramento da perdição e, por momentos fui cúmplice do diabo e exultei, teimei mesmo nele durante o meu relato e foi esse deslumbramento, colado nessa frase, que inda hoje de vez em quando os amigos me soletram aos ouvidos rindo.

- Da janela deste 15º andar do Sheraton desfruto de uma panorâmica de 460º bla bla bla, tudo isto seria cómico se não tivesse sido trágico e, soube-o depois, choque e pavor premeditados numa operação destinada a subjugar um ditador mas também uma nação, um povo.

Claro que fiz prognósticos, quem os não fazia por aquele dias ? A diferença é que os meus foram passados a livro, estão lá, estão plasmados ali para que quem se dignar os avalie, infelizmente não falhei um dos muitos e muitos que formulei.

O ISIS, o porquê do Isis ? Está lá o prognóstico, ele e a resposta. O país, o seu futuro, as várias confissões religiosas, a dificuldade ou impossibilidade da reconstrução, está lá tudo, preto no branco, e temo, sim temo, não que o futuro me desminta mas antes que me ultrapasse, que vá ainda mais longe no absurdo do que alguma vez julguei ser possível, ou até inimaginável.

Irei editar em CD essa famosa e divertida gravação (e que Deus me perdoe), colar-lhe-ei algumas fotos desses momentos traumáticos para aquela que era uma grande e linda cidade, desde já me comprometo  colocar, acrescentar,  o link neste texto, os primeiros contactos com o técnico de som e vídeo estão feitos, vamos esperar que ele goze o S. João, como me prometeu. 

                  https://youtu.be/E1EazTwjCcU



quarta-feira, 10 de junho de 2015

246 - PUDICÍCIA E PUNDONOR ................................

                          

          Mal me reconheceu corou. Não que lhe tivesse alguma vez dado razões para isso. Aliás nem a via vai para mais de vinte anos, muito mais. Éramos ambos muito jovens, à época ela pregava ou leccionava Religião e Moral, ou algo parecido, numa das primeiras escolas onde eu fora colocado e onde desde o primeiro momento chocámos.

Eu, já por esses tempos efusivo e extrovertido ao máximo, ela, introvertida compulsiva e sempre distante, sempre recolhida, (em recolhimento) ainda por cima uma fraca figura, (nem cu tinha), seca de carnes, olhos fundos e mortiços, uma boca sem lábios que nunca sorria, e num pregador o eterno símbolo da cruz, num broche ao peito, e num pendente de fino fio de ouro. Segurando-o eternamente nas mãos magras cujos dedos, finos, esguios, nunca se afadigavam de ir passando as contas ao rosário, um vistoso terço. Certo dia vislumbrei-lhe os brincos sob o cabelo curto, de onde pendiam naturalmente mais cruzes e com os quais brinquei, talvez por isso nunca mais os tivesse voltado a usar. Enfim, obedecia a todos os quesitos para que não se gostasse dela, parecendo até primar por isso.

Fora essas divergências, e nem eram poucas, partilhávamos o mesmo dia de anos, o mês, logo o mesmo signo, o mesmo gosto pela leitura, ela era também a responsável pela biblioteca da escola e eu conservo ainda uma Bíblia luxuosamente encadernada, oferta dela há uns trinta anos, trinta e muitos. Divergíamos solenemente num aspecto crucial, enquanto eu partilhava vera afeição pela astronomia e pela ciência, ela era dada à astrologia, às coisas de Deus e do oculto, persignando-se sempre que alguma coisa ou alguém pudessem, ainda que remotamente, inscrever-se no agrado do maligno.

A passagem do cometa Halley junto à Terra em 9 de Fevereiro de 1986 colocara em alvoroço jornais, revistas e televisões, que não largavam o caso, e foi precisamente nesse ambiente que ela me surpreendeu com a oferta de uma carta astral. Como se fosse hoje relembro-a:

- Acreditas no destino Baião ?

Mas só quando ela abriu a carta, tamanho A4, e vi o meu nome e o dela traçados a par das órbitas de Saturno, Júpiter e Marte entendi todo o alcance da pergunta, fazer-me acreditar no destino traçado na leitura do imponderável mundo da sua carta astrológica, aliás da minha, de mim, eu, que no alinhamento traçado pelos planetas era Marte e colidia inequivocamente com Vénus, cujo choque se inscreveria no abraço inexorável de Saturno, o meu ascendente, ou no de Júpiter, o dela, derivando a dúvida do facto da carta exibir uma valência de alguns dias, enquanto para deslindar se nos braços de Saturno, ou de Júpiter, haveria que efectuar mais cálculos, com projecções a um mês ou talvez mesmo mais.

- Que vamos colidir vamos, disso não me resta a mínima dúvida, se ao abrigo de Saturno ou Júpiter mais tarde o saberemos.

E sorria-me, pela primeira vez vi um sorriso naquele rosto miudinho, diria até que pela primeira vez aqueles olhos deram ares de vida, brilharam.

- Ou choque ou absorção, passa lá por casa uma destas tardes, tenho que descobrir a verdade dos astros, mirar-te bem a palma da mão.

Confesso que banzei, ou embatuquei, ela era a única pessoa com quem mal me dava, com quem chocava aliás propositadamente, nunca evitava antes procurara deliberadamente o confronto com ela, com quem não simpatizava, não engraçava, nem escondia isso a ninguém, muito menos a ela, estaria mesmo a convidar-me para ir a sua casa ?

- Ok ta bem, um dia.

Atirei-lhe a resposta automaticamente, sem a mínima intenção de cumprir, mais para a despachar, para arrumar a questão, para me desenvencilhar do incómodo que o convite me provocara com um mínimo de fair play. Com o tempo resolveria a questão, pensaria como furtar-me elegantemente a um convite desagradável sem parecer mal-educado ou detestável.

Mas não me furtei. Não me perguntem como mas além de não me ter furtado vi-me uma tarde em casa da incontornável astróloga, mão na mão, lendo as linhas na palma. Para os que não sabem a mão dominante (a que usamos para escrever) apresenta a vida presente e passada, enquanto a outra revela a vida futura. Ambas apresentam a linha do coração, a linha da inteligência, a linha da vida, longa ou curta, e a linha do destino, que nem toda a gente tem e que deve preocupar-nos se tal nos acontecer.

Depois é ver medir observar, se essas linhas se encontram muito próximo do polegar, se são mais ou menos curvilíneas, se compridas e profundas ou não, se em forma de semicírculo, se rectilíneas ou quebradas, descontínuas, se se aproximam ou não da borda da palma ou apresentam círculos tangentes ou intercalados numa linha ou em mais do que uma linha. Eu pasmava com tanto pormenor nos quais jamais havia reparado, mas reparei no toque suave da sua mão, na pele macia, perfumada, nas unhas extremamente arranjadas coloridas a fúxia, sem atentar minimamente nas frases que me atirava, meio sussurradas entre risadas e confrontando-me com os desígnios astrais.

Para minha surpresa o futuro atirava-nos para Saturno, o planeta dos anéis, pelo que, afirmava ela, tal era sinónimo de envolvimento e não valeria a pena fugir pois os astros sempre encontrariam um modo de fazer cumprir os seus ditames. Eu interrogava-me e meditava, por que raio esta minorca, que me passeava pela casa pegando-me na mão e conduzindo-me, por que raio engraçaria comigo, que nunca me esforçara por lhe ser agradável, a ela, com quem ninguém engraçava, ou achava engraçada. Mas também me perguntava a mim mesmo que me levaria a deixar-me levar que nem um cachorrinho pela trela…

Ali a cozinha, acolá a despensa, a sala já conheces, aqui o quarto, entra, não tenhas medo anda ver, e vi, uma cama larga e singela, as pagelas emolduradas na mesinha de cabeceira, o crucifixo ao centro da parede, ladeado pelo Espirito Santo sob a forma de um coração envolvido em espinhos, e do outro lado a imagem de Nossa Senhora dos Mártires. Foi quando ela, alisando com a mão a colcha vermelha e mirando-me de alto a baixo e me sorriu que verdadeiramente acordei.

- Ainda não viste nada, sou muito devota da Senhora dos Mártires, vem comigo, anda ver o meu retiro.

 Fui, fomos, quer dizer o cachorrinho lá foi, abanando a cauda ávido de curiosidade, até que ela abriu a porta de acesso à cave e uma penumbra espessa carregada de odores a igreja e onde pontificava um forte cheiro a velas queimadas incenso e jasmim tomou conta de mim. Enquanto descia e o olhar se me habituava àquela semiobscuridade pude ver os ganchos no tecto, as argolas chumbadas nas paredes, as máscaras de couro, o entrançado dos chicotes, algemas aveludadas, jogos de bolas ou esferas, um atordoador “Taser” e um vibrador “Pleasure” numa caixa luxuosa da “Bijoux Indiscrets”, uma estante com creme unguentos e pomadas misteriosas junto a uma espécie de altar coberto de flores, que posteriormente confirmei serem plásticas embora uma imitação prodigiosa das naturais.

Uma cruz gigante adossada à parede de fundo irradiava por trás luz forte que a destacava e, quando ela accionou o interruptor dessa cave uma luz estroboscópica fez surgir nas paredes e tecto frases aleatórias como “Jesus é o meu senhor”, “Deus Pai abençoai-nos”, “Só o amor alimenta a alma”, “Escrava do amor escrava do Senhor” e “ Deus é amor”, que me recorde, tantas eram elas…

Ainda não fechara a boca de estupefacção e já ela se jogara ao chão, de joelhos, numa prece que vos descrevo sussurrada, uma ladainha em que abria e fechava os braços como se oferecendo-se à cruz iluminada quando, num repente, tirou pela cabeça o camisolão que envergava e pude ver-lhe as costas, mais as costelas que as costas, os vergões, alguns ainda ensanguentados ou apresentando chagas purulentas, que me causaram um asco que ela não viu por estar agora debruçada sobre um tapete tal qual se colocaria um árabe orando na direcção de Meca e nisto, virando-se para mim e descortinando finalmente o ar nauseabundo que eu apresentava:

- Não me julgues, sobretudo não me julgues mal, sou virgem, toma-me se o desejares, quando e como desejares, mas jamais esqueças, a minha virgindade é sagrada, sou noiva do Senhor, sou mártir e escrava deste amor platónico.

Virou-se para mim com os braços cruzados sobre e escondendo o peito, e vi na sua nudez uma magreza tentadora, recheada de curvas que o incenso fazia ondular na minha mente.

De Fevereiro a Julho daquele ano posso afirmar ter vivido como um selvagem, um selvagem eremita, que, embora respeitando os cânones e os limites por ela impostos se deliciou e a deliciou sodomizando-a a desejo e a pedido, de tal modo que, como que conduzido pelo maligno, me tornei horrivelmente íntimo das mais abjectas práticas de BDSM, a ponto de, no prazo legal ter esquecido o concurso de professores e ter ficado sem concorrer nesse ano. Envergonhado, extenuado, magro que nem um cão, acedi confessar-me a um colega e amigo padre, que não só me absolveu como integrou no Colégio Salesiano onde durante três anos leccionei e esqueci a experiência absorvente daquela descida aos infernos.

Olhei-a, ela olhou-me, corada, abanámos as cabeças em simultâneo num leve cumprimento e nada dissémos um ao outro. Separámo-nos sem nos olharmos sequer. Pelas gentes que a acompanhavam pertencerá aos círculos da Cáritas, Cruz Vermelha, ou Banco Alimentar. Colega da Jonet, deixei-me sorrir involuntariamente.

O Senhor a proteja. A ela e a mim.  
  



quarta-feira, 3 de junho de 2015

245 - FA LO ...............................................................


 “ FA   LO “

Sim, será vontade de Deus

Dá-me a tua mão amor, sempre que
como agora
a tua língua me devora
e teus lábios faíscam nos meus

Dá-me a tua mão, faz-me senti-la amor

Toma-me, prende-me, agarra-me, lesta

Antes que as línguas, ubíquas,
para outra coisa nos levem, partindo desta

Juro-te, fecharei os olhos, com pudor

Fá-la deslizar amor, devagar

E dos dedos anéis, estranguladores

Agora ímpeto, impulso, e inversão

E faz que dessa contradição jorrem flores,
sementes, mil sóis, estrelas cadentes…

E, em tormento, espreme-me num momento

Em deslumbrante instante, 
que em estremecimento alucinante
me fique no coração, no pensamento
e se reduza a ti, a fé, a fervor, a devoção…

Humberto Baião, Évora 3 de Junho de 2015 – 15:24:19



terça-feira, 2 de junho de 2015

244 - CORPETE RENDADO, APERTADO ........

             
              E foi assim, uma borboleta bateu as asas  e, nos antípodas a brisa agitou-se refrescando-me as ideias, que a esturrina empastara. A esturrina ou a cerveja, porque isto de viver no inferno tem o seu preço, um homem acalorado acaba por afogar-se onde pode, mais a mais os torresmos estavam uma delicia e havia que empurrá-los goela abaixo com qualquer ajuda né ?

             Pudesse eu e até os pés enfiaria num alguidar com cervejames fresco. Os pés e a cabeça, que me estourava com os arremedos do vocalista, menos sofríveis que os arrotos dos rateres que, de vez em quando uma alma mais inebriada fazia soar no recinto.

Galhofei com os compinchas e, respaldado numa cadeira mais mole que o alcatrão da estrada libertei os olhos para que vogassem desinteressadamente pelas coisas, pelas coisas e pelas pessoas. Pelos sorrisos, pelas gargalhadas, pelas bocas prenhes de ânimo, pelos cabelos e lábios pintados,

- E pelas unhas ! Mete aí as dos pés pois também contam Madaleno !

E depois há aquela ali, trouxe-me à memória as aventuras do Tom Vitoin.

- Topa bem a personagem ó Margarido, 
sim, podes deixar ficar essas p’ra mim.

- Topem-me aquele corpete rendado, a cintura apertada…

- Apertada não sff ! Diria antes cintada, torneada pá, aquilo é uma boneca de banda desenhada, já a reconheci, das desventuras do Tom Vitoin, repara na chinela a fugir-lhe do pé, o calção acabando estrategicamente entre a canela e o joelho, em seda... A unha vermelha, não bem vermelha, antes fúxia, como diria a Soromenha.

- À nossa ! À nossa que se há quem mereça somos nós ó Margarido !

- Sim, claro, aquilo é Wonderbra com certeza ó professor !

- No, no, no, no, no, no, mil vezes no pá !!! É natural man ! 
Mas não teimo que eu já estou a ver mal e o vocalista confunde-me as ideias.

- Claro que é natural pá, não vês que rebenta pelas costuras ? Aquilo nem são formas ó miúdo, aquilo são tentações, claro que acredito em Deus, e olha que Ele é mesmo provocador não achas ?

- Olha, passa-me aí a cabeça de xara que nem sei o que me abriu o apetite.

Sim Heliodoro, eu sei que não estas nos teus dias e que a carne é fraca, mas também tens ali pasteis de bacalhau filho, eheheheheheh !!!!

Naturalmente não é de pau, duvido que haja aqui alguém ou pior já toda a gente teve a sua quedazinha, á excepção do Barnabé, coitado, esse teve uma quedazona… cai sempre… está sempre a cair.

- E já ta c’os copos claro, não demorará a cair da cadeira. Quando está assim fujam dele pois a conversa é sempre a mesma, a Fany, Deus lhe tenha a alma em descanso, e a Dora, que naturalmente não era de pau e ficou toda amolgada. Enfim, tristezas, diz-se que ele nem ia bebido, ao menos isso.

Esta malta gosta é de emoções fortes de quando em vez…

- E de vez em quando uma coisinha assim ! Que até se me acelerou o bater do coração, rematou o Hilário babando-se e que ate ali se tinha mantido um tanto ou quanto alheio à conversa.

E, repentinamente, badammmmmmmmmmm !!!!!!!!!

O Adelino, que ainda não tinha sido noticia, levantou-se, elevando a sua voz de barítono, erguendo na mão uma garrafa de Pêra Manca, balbucia duas ou três palavras ininteligíveis, rodopia tropeça no seu próprio entusiasmo e estende-se ao comprido arrastando mesas e cadeiras.

O primeiro pensamento que me ocorreu foi que, se não se tinham divorciado ontem a megera jamais lhe perdoaria aquela triste figura e divorciar-se-ia amanhã, o segundo pensamento a atravessar-me os neurónios, deveu-se ao facto decerto casual de ter anteontem feito oferta pessoalíssima duma garrafita precisamente igualzita.

E estava eu cogitando estas manigâncias quando me cai uma mosca no prato, quer-se dizer-se, um moscardo no copo da cerveja, atravessara nem sei como os destroços que o Heliodoro espalhara ao espalhar-se, pardon por cause da redundância, e avançou, caminhando como Cristo sobre as águas, ou sobre as pedras, pé ante pé, abeirando-se de mim, o único que antes durante e depois do reboliço se mantivera impávido, porém, ninguém tal adivinharia, se me levantasse mijar-me-ia…

Havia que conter-me e, saber esperar a ocasião, e depois, num relâmpago, correr para a casa de banho rezando para que estivesse desocupada. Mas quem sabia, a não ser eu, os fluidos onde já vogava ?

Como Mata Hari ela veio, condicionando o bailado, até puxar de uma cadeira e sentar-se á minha beira. Até rima, repararam ? Será sinal de bons auspícios ?

Há muito que eu andava fugindo dela, falava muito, falava muito depressa, fazia perguntas a mais, começava confundindo-me primeiro e irritando-me depois, era demasiado insistente para o meu gosto, demasiado solicita, demasiado independente e demasiado oferecida.

Nunca simpatizara com a personagem, mas hoje era dia festa e eu transbordava de cerveja, de paciência e complacência, e para ser franco, estava quase a mijar-me só para me não levantar, todavia encarei-a com placidez.  

- Admiro o esforço estudado e aplicado na irrelevância que atribuís a tudo quanto te orbita. Simulado, disse ela mirando a paz com que eu pairava sobre toda aquela rebaldaria.

- Oh ! Tu outra vez, tu e de novo essa tua dissimulada irrelevante aparência de esforço aplicado a cada coisa que fazes ou dizes, isso é uma fuga estudada pá, já te conheço de ginjeira essa aparente indiferença por tudo quanto pões na mira… vá lá saber-se porquê, vá lá a gente adivinhar, quando muito abordaremos hipóteses, e já será muito, já é dar-te muita atenção e a coisas que nem o merecem dedicar muita minucia, como dizer, colocar em demasiada evidencia coisas a que nem minudencias devíamos   dedicar, assim és tu e os assuntos que arrastas sempre atrás de ti, como os pavões o penacho.

- Enfim santa, haja quem te compreenda e te ature, e quem saiba aturar-te, aposto que nem haverá muitos, ou pelo menos nem assim tantos. Desconfiei sempre da tua irrelevância ensaiada, escondendo uma assumpção que evitas a todo o custo mostrar, camuflando os limites da coisa ignorada mas que a tua táctica descortina estrategicamente.

- Desculpa que te diga amiga, mas toda essa tua conversa mais não pretende que confundamos o género humano com o Manel Germano, é essa a tua filosofia.

Ela sorriu, e ao sorrir quis enlear-me na turbulência daqueles olhos e daqueles lábios vermelhos e carnudos (aposto que estivera a morde-los), lábios que um homem, qualquer homem, não desdenharia morder, mordiscar, para não dizer melhor.

Adorava-lhe os lábios, bem demarcados, e os seios pequenos, nem grandes nem pequenos, mais para o pequeno, a meu gosto, cheiinhos e redondinhos, nem duros nem flácidos, mesmo a meu gosto e desejo e senti, juro que senti naquele momento vontade de dizer-lho, sussurrar-lho, ao ouvido, contudo as circunstâncias ditam o destino de um homem, distraído exagerei no tempo de espera e, muito conscientemente senti a bexiga aliviar-se antes que pudesse fazer alguma coisa pelo que, bem bebido como estava, nem pudor tive para corar ao saber-me todo mijado.

- Olha querida, isto tá cheio de malta porreira, escolhe á tua volta e filosofa quanto quiseres que eu já estou como hei-de ir, a casa chegarei decerto, é só atravessar a rua, moro ali em frente. Fica bem.

Ziguezagueando entre as motas saltei o portão e airosamente entrei em casa. Meti-me debaixo do chuveiro e esqueci a água fria correndo enquanto me aliviava outra vez, mas agora por vontade própria.

- Estás a espirrar querido toma cuidado contigo !  Gritou-me a Luisinha do outo lado da porta, e eu desejando que ela não entrasse ou gritaria logo, como só raras vezes fazia; meu grande porcalhão !

- Tá bem amor OK tá bem ! Respondi.

Mas não estava nada bem, apanhara uma valente constipação que me deitou abaixo e ainda ando a tentar curar quase 15 dias depois.

Filosofias ? Só Kant, ou Schopenhauer, e em sítio resguardado.