Ela
era bonitinha, formosinha e alegre. Cobiçando-a ele mirou-a de alto a baixo
pela enésima vez, medindo-lhe as palavras, os trejeitos, as formas, as expressões, os
sorrisos e as gargalhadas, tentando adivinhar-lhe as intenções.
Havia
na rebeldia dos seus cabelos, e nela, uma vontade disfarçada de se entregar, de
se submeter a quem tomasse conta dela, seria uma rebeldia de trazer por casa e
com a qual se enganava a ela mesma e à solidão vivida a que se acomodara.
Talvez tivesse dado a si própria algum tempo até reencontrar o amor, até que a
sua busca acusasse na conta corrente um saldo a favor, positivo, um saldo que
lhe aliviasse o sofrimento e a consciência, um saldo que lhe devolvesse os sonhos
e a inocência de outros tempos, um saldo que a resgatasse da desilusão em que
se transformara a sua vida.
Ele
sofria em silêncio, a vida roubara-lhe há bem pouco tempo sonhos e rebeldia. Tinham-no
cercado nuvens negras carregadas de um desamor do mais escuro alguma vez visto,
donde se desprendiam gota a gota e instilando em si quer a solidão quer a
desilusão dos dias e das noites, como quem cientificamente aplica num condenado
a tortura do sono.
Se o
visse agora, de ombros caídos e olheiras fundas, o velho e sábio Azekel* um
velho tucokwe, velho mui velho que meio século atrás viveu junto ao Cunene, na
aldeia dos hereros, povo da etnia bantu com povoado perto de Calueque, sempre e
pachorrentamente mirando com solene paciência e excelsa exactidão aqueles que
passavam, teria dito deste desgraçado:
- A mordedura de um cão só se consegue curar
com o pelo de outro cão.
O
amor era portanto a solução, urgia encontrar outro amor, um grande amor
que lhe enchesse sonhos, cama, dias, e lhe cortasse cerce sofrimento e
desilusão, devolvendo ao desgraçado o direito a sonhar de novo, a rebeldia inata
a si mesmo e natural nele, um amor que lhe transmutasse os dias negros a que
tristemente se acomodara, o tornaram choroso e a quem unicamente uma solidão
inocente alimentava, dias mais ditados e vividos pelo coração que pela
consciência, todo ele incapaz de aceitar o carma, o fado, o destino a dor e a perda com
que Deus o carregara.
Urgia
portanto, quer a um quer a outro mudar-lhes a aura, buscar o amor, sacudir o desamor desses dias, sacudir
dos ombros a desilusão que o tempo lhes atirara para cima e procurar de novo a inocência
dos sonhos, o alívio da consciência que um abraço sempre traz como bónus.
Nele
tal mantra teria que funcionar como o resgate que o arrancasse ao martírio a
que voluntariamente se entregara e fruto de uma fidelidade absurda mas jurada mas, há sempre um mas, como se apaga o amor de um coração que, qual cofre, o
guardou com devoção e ternura, como ? Como relembrar a letra do segredo e a
chave esquecida, ambas deitadas fora depois de fechado o coração ?
E
não buscava ela o mesmíssimo amor de que ele se mostrava tão necessitado ?
Então como não via ele nela a paixão e a cura dos seus males, tão ridente ela
se mostrava, tão empática, tão disponível, tão sempre à mão ? Que coisa seria
que os travaria então levando-os a calar-se e a encolher-se apesar do calor,
apesar do frio ? Certamente só Deus saberá, porque apesar da ternura os tentar e a
vontade empurrar para os braços um do outro nunca sucumbiram ou cederam à mãe
natureza.
Não
me cabe nem posso falar por eles, sou um simples espectador e narrador, não
devo nem posso mais que adivinhar-lhes o pensamento, os sentimentos, tomar-lhes
o pulso ao sono, ou antes aos pesadelos, mas, entre uma alma em busca de marido
e outra alma cujo amor e fidelidade se rendera e jurara fidelidade a uma ilusão, somente um choque ou uma desilusão acordarão.
Certamente
evitando acender nela o fogo ele evita-a e, não querendo ela tomar a
iniciativa por tal não lhe parecer correcto ou temendo lhe chamem oferecida, não o encoraja e então, ainda que de vez em quando almocem ou jantem
juntos, como bons amigos, seria contudo caso para dizer que entre eles nem o pai morre nem a gente almoça, pois
não se decidem...
A
propósito, são quase horas de almoço, vamos a ele.
Manuscrito num guardanapo, Segunda-feira, dia 15 do mês de Abril de 2019 pelas 12:30h à mesa do New Concept Coffee &
Shop - Urbanização da Cartuxa, em Évora.