segunda-feira, 18 de novembro de 2019

622 - JER E O AERODINAMISMO DAS FORMAS…



 Dei com ele a meu lado quando menos esperava, mastigando alarvemente um pastel de toucinho na mostra gastronómica de Arraiolos há umas semanas atrás. Eu acabara de sentar-me e encomendar uma sangria, no entretanto debatia-me com uma costeleta de novilho, pelo que ambos apesar da boca cheia não deixámos contudo de sorrir um para o outro e apertar vigorosamente as mãos.

E lá fomos entremeando o mastigar e a conversa, ele estava sozinho o que muito me admirou, todavia não chegou para lhe ter tocado nos dois assuntos para ele mais candentes e que mais o alegram, pois para tocar no primeiro, automóveis, eu não me conteria e iria forçosamente tocar no segundo, mulheres, e aí chiaria mais fino. Mantemos uma amizade de décadas e não penso sequer em beliscá-la, mas que a coisa me dá gamas de rir cada vez que a lembro lá isso dá, e bastantes.

O Jeremias, é assim que se chama esse meu amigo glutão, tão glutão como o Baião diga-se em abono da verdade, é um homem feliz, feito, vivido, na casa dos cinquenta e tal mas mantendo o vigor e a frescura que a vida ociosa consentem, não estando porém eu apodando-o de ocioso pois tem atrás de si toda uma vida de trabalho, aliás bem conduzida e bem proveitosa que lhe permite agora viver dos rendimentos e viver bem, melhor que bem.

 Não o invejo, a vida também não me tem sido madrasta e ainda que não seja um homem rico sou um rico homem e isso basta-me. O que nele me faz rir são algumas opções por si feitas ao longo da vida e que dificilmente entendo, percebo-as mas não as aceito, nem tenho que as recusar ou aceitar, nem criticar tão pouco, mas que me fazem rir de modo tragicómico fazem pois colidem fortemente com as minhas linhas éticas e morais. Mas lá iremos.

O bom do Jeremias foi comerciante, negociante, visionário, matreiro, sabido, estulto, e muito ajudado pela mulher, com quem se casara cedo e de quem tem duas filhas lindas como a mãe e fortes como o pai. Enriqueceu, o Jeremias quando deu por si estava rico, tendo-me confessado uma vez que nem sabia como, mas estava, tudo lhe corria bem e o país abundava de parvos, ora quem tem olho é rei, e ele teve.

Depois de rico acometeu-lhe necessidade de diferenciação, que não era como a maioria não era mesmo, notava-se, e havia que comemorar isso tanto quanto assinalá-lo, o Jeremias queria reconhecimento, consideração e deferência, tendo escolhido para tal uma nova identidade, tornou-se ele mas outro, passou a fumar charutos, ele que nunca tocaram num cigarro, e adquiriu em mais um bom negócio dos dele um Mercedes lustroso, um carrão quase novo, nem um ano tinha, carrão que o catapultou para as bocas do mundo e cujas linhas aerodinâmicas lhe deram noção de que a vida fluía, podia ser boa, ser melhor, ser diferente, tão notória era a diferença por ele já sentida quando sentado no Mercedes se arrastava vagarosamente com o fito de dar a toda a gente oportunidade de o ver e de o invejar e cumprimentar.

Uma coisa leva a outra e, quando deu por si a mulher estava velha, feia, pouco lustrosa, marreca, ficando mal quando sentada ao seu lado no tal carrão, de linhas curvas e aerodinâmicas, curvas que ela não tinha e talvez nunca tivesses tido assim tão arrojadas quanto as daquele carro que tanto o impressionava, e mudava.

Rico já estava, e quando a crise veio limitou-se a viver dos rendimentos aforrados, tendo-se habituado a não arriscar nada, sobrando-lhe tempo para passear e para pensar.

E o pior é quando um homem se põe a pensar…

Da mulher, que tanto o havia ajudado nos negócios pois não era nada parva ele já não precisava, tinha o vagar a ociosidade e os charutos, o carrão, as filhas criadas e vai daí pensou dar nova demão em si mesmo e, se bem o pensou melhor o fez, duma só penada desfez-se da mulher, da empenada, da enjeitada e arranjou novo modelo mais conforme com as suas aspirações, toda ela aerodinamismo, linhas e curvas, não tinha nem um ano de divorciada mas foi Igualmente um bom negócio, imagino eu, tão feliz o via todos os dias.

Finalmente uma coisa que o não envergonhava e estaria à altura de competir com o carro e até com ele, pois se muita gente já se virava quando ele passava, agora mais gente ainda pararia e pasmaria ao vê-lo passar. Muito mais gente o glorificaria.

Nunca com ele comentei as mudanças, mas pela surdina via e calava. Ela não dizia uma para a caixa mas na cama imagino as voltas que dava ou daria tal o grau de satisfação que Jeremias arvorava. Montou-lhe casa, por sinal perto de mim, e não sei se lhe arranjou aquela ocupaçãozinha que lhe dá um ar de Madre Teresa de Calcutá e julgará ele a livrará de piores más-línguas que a deste escriba. Ela agora veste uma bata branca e é voluntária, ajuda os doentinhos e os pobrezinhos, e eu sei lá quem mais, não posso imaginar, não posso especular, seria pecado.

Seria pecado, preconceito, juízo de valor, precipitado, errado, sei que não devo ir por aí, não devo especular mas não pude deixar de me lembrar quando mais novo adorava brincar aos médicos, doentes, enfermeiras e outras fantasias tais. E gostava tanto que ainda guardo num velho baú uma farda de enfermeira alva de brancura e cheia de folhinhos e cruzes vermelhas.

Mas não, de Madre Terezinha de Calcutá não tenho nenhuma fantasia, talvez o Jeremias, perguntem ao Jeremias, talvez tenha uma quem sabe ? Só sei que nada sei, só sei que cada macaco no seu galho e ele Jeremias, e a sua mania da ginástica e da eterna juventude lá terá um galho onde se pendurar e a Madre Teresa de Calcutá alguém a quem ajudar se ele cair, a imaginação não tem limites meus amigos.

Nem a imaginação tem limites, nem a fé ou a devoção …




quinta-feira, 14 de novembro de 2019

621 - SEBASTIÃO & GAUDI,by Maria Luísa Baião *


Sebastião é um homem simples, de parcos conhecimentos e ainda menos recursos económicos, mas com um coração de uma grandeza que só a alma excede. Vive numa das favelas do Rio de Janeiro e encarrega-se da limpeza e manutenção de um grande prédio de uma não menor multinacional.

Circunscreve os seus passeios quase exclusivamente ao caminho casa trabalho, trabalho casa, porque a vida lhe é madrasta e quer neste percurso quer nas horas vagas, deambula por obras e aterros garimpando ferro velho, restos das obras, mosaicos partidos, arames, tudo que a sua imaginação torna passível de transformação.

Na favela, onde as barracas se amontoam disputando espaços exíguos num mar de miséria, onde o crescimento só é possível em altura desde que paus, tábuas e sobras de caixotes aguentem o esforço, Sebastião foi paulatinamente construindo, como quem compõe um puzzle, de que fez o seu hoby, com os restos garimpados àqueles a quem a vida permitiu desperdícios, uma casa sólida, de ferro e argamassa, talvez a única segurança que na vida tem.



Nessa casa, que se foi destacando das demais não pelo tamanho mas pelo apurado sentido estético e originalidade que Sebastião lhe imprimiu, foi expressando a criatividade através de ousadas decorações, prenhes de inovação cromática, veros testemunhos da sua capacidade inventiva.

Nessa obra colocou Sebastião todo o entusiasmo e poesia, dando corpo a uma decoração fantástica, a sublimes formas de expressão plástica e de estilo genial, a que não foi alheio um apurado sentido estético, cuja originalidade, diversidade e riqueza o colocaram no limite do delírio artístico.

Pelas suas características a casa tornou-se forçosamente notada, uma nota dissonante no meio da homogeneidade e singularidade da favela. Não se sabe como mas a notícia da sua existência atraiu curiosos, tendo chegado mesmo aos ouvidos de quem desconhecendo Sebastião, conhecia um mundo que ele jamais vira ou sonhara sequer existir.

Alguém falou de Gaudi a Sebastião, que ele prontamente esclareceu não conhecer, não ser pessoa da sua intimidade e muito menos ter com ele qualquer comprometimento, não não, Sebastião era pessoa séria, pobre mas honesta e nunca vira sequer ao longe esse tal de Gaudi ...

Disseram-lhe então que Gaudi fora um grande mestre modernista  do Séc. XX, talvez mesmo o mais original arquitecto dos últimos séculos, que vivera entre 1852 e 1926, que se distinguira pela integração de elementos de arte islâmica e gótica na arquitectura local Catalã, o que pôs Sebastião de pé atrás, mais confuso ainda do que estava no início.

Lhe contaram que também Gaudi professara uma estética romântica  (não românica), que das suas mãos saíram formas de escultura orgânica e naturalista, que enfim, se distinguira por ser apóstolo da Arte Nova, o que só conseguiu fazer com que Sebastião abrisse mais a boca e acentuasse  o cenho.

Então falaram-lhe na Sagrada Família, a catedral mais famosa do mundo, rica pela volumetria e variedade de formas arquitectónicas, biológicas, vegetais e animais que apresenta, um exemplo de crença na fé, no amor e na esperança, um conjunto vivo, modelado pelo próprio Gaudi, que pretendeu com ela dar corpo às palavras de Cristo; “ Eu sou a luz do mundo”.

Foi então que, a quem praticamente nunca tinha saído da favela alguém pagou uma viagem a Barcelona, com guia e tudo. E ao chegar, Sebastião sentiu-se menos sozinho e mais compreendido. Não passeou como um normal turista, observou com atenção os pormenores desprezados pela maioria e sem que alguma vez tivesse estudado ou conhecido Gaudi, foi directo àquilo que o mestre mais vincara, afagando mosaicos, observando ângulos, analisando cores e perspectivas.

Sebastião compreendeu no momento que não estava só, que não era a ave rara da favela que muitos lhe tinham feito crer, Sebastião chorou de emoção e comoção, demonstrando uma sensibilidade que só aos grandes mestres é permitido aceder. A televisão por vezes surpreende-nos, não consegui suster uma lágrima, só não sei se por Gaudi se por Sebastião.



***** Texto escrito por Maria Luísa Baião por volta do ano de 2005 e nesse mesmo ano publicado no jornal Diário do Sul, coluna Kota de Mulher .





sábado, 2 de novembro de 2019

620 - DE FACA AFIADA OU DE FACA NA LIGA …

          

Entre operações mandriava-se, perdão, corrijo, entre missões folgava-se, o pessoal descomprimia, descansava, cuidava da manutenção das armas, bebia umas Cucas geladinhas se houvesse combustível, gerador, electricidade, frio, e entretinha-se debicando umas pitadas de sal, destressava.

A seu modo cada um buscava um entretém que lhe ocupasse as horas mortas e a mente. Escreviam-se uns aerogramas, lia-se, disputavam-se umas partidas de damas ou xadrez, cuidava-se da fardamenta e ensebavam-se as botas com especial cuidado. Uma borrega atrasaria toda a coluna, exporia a maiores riscos todos nós incluindo o seu “dono” que, para acertar a ritmo dos restantes seria colocado `a cabeça da fila, alvo da chacota e das queixas de quantos eram mor disso condicionados na marcha, na maior exposição ao perigo, enfim, um lugar que ninguém invejava, todos temiam e raramente era ocupado voluntariamente.


Por mim optei por me dedicar a esfolar todo o bicho careta que tivesse pele e estivesse à mão, não somente os que aleatoriamente caçava, ali era mais fácil o acesso a carne fresca e tenra que a quaisquer dietas vegetais, mas aproveitava todos os que me caíssem nas mãos. As peles e os escassos fardamentos militares caídos em desuso e esporadicamente oferecidos como gentileza pelo comando da província para com a sanzala constituíam quase tudo que os indígenas tinham, para vestir, para alimentar o seu artesanato, para viver. As peles bem curtidas eram impermeáveis, delas se fazendo alforges para água, sacos para o que desse e viesse, roupas, tiras para atar o necessário, cobertores, almofadas, bancos, digo pufes originais, assim a preparação e acabamento das peles fossem cuidadas desde o início.

Uma borrega não dava lã mas dava chatices que bastassem, dores e mau estar, vi feridas que viraram chagas dificílimas de curar pelo que ao chegar o sofredor ansiava descalçar as botas, tirar as meias, preparando-se para o suplício habitual em casos tais, álcool, mercurocromo ou sulfamidas, pomadas caseiras, sebo de macaco, uma ligadura de gaze e descanso, dependendo do estado em que o desgraçado chegasse. Alguns não chegavam a passar por todo este calvário, arrastando os pés, cambaleando a marcha, ora pisando à esquerda ora à direita até pisarem uma mina e pum ! Lá se ia a borrega, o pé, a perna, e mor das vezes o desgraçado todo. Não sucedia todas as semanas mas inda assim durante a minha comissão e sob o meu comando aconteceu duas ou três vezes. Só não aconteceram mais acidentes porque o castigo de ocupar o primeiro lugar da coluna os levava a ter mais cuidado com as botas que com as mães. Não tivesse sido essa exigência e muitos mais de entre nós teriam sido enterrados no sul de Angola. A título de esclarecimento adianto-vos que fora essas ocasiões em que o lugar tinha um incauto a ocupá-lo era eu quem o preenchia. Mais de noventa e nove por cento das vezes lá estava eu, dando o exemplo, transmitindo coragem e confiança aos meus homens, mas também de olhos bem abertos e orelhas escancaradas. A cabeça da coluna não era lugar para se brincar, dás umas risada, viras por uns segundos a cara, descuras a terra recém mexida na picada e pum ! Vais para o caralho feito em picado.

Foi assim, brincando e como passatempo das horas vagas que me especializei em esfolar e curtir peles. A brincar também se aprende, retira-se a pele com um mínimo de gorduras agarradas, estica-se bem e limpa-se o interior raspando-o com uma faca bem afiada, salga-se à maneira, arma-se com uns caniços dispostos em cruz patriarcal ou dos arcanjos, isto é com dois braços, e coloca-se a secar em local arejado para a ajudar a conservar e afastar moscas e respectivos parasitas que infectariam e estragariam a pele. Depois é traçar, cortar, coser com recurso a finas tirinhas da dita em vez de linhas de costura, que não há, e teremos à mão uns lindos calções à Tarzan. Tenho algumas fotos envergando um par deles, se as encontrar no baú postá-las-ei aqui para vosso deleite e para que vejam quão belo era este mancebo por volta dos vinte anos.


Hoje tudo que diga respeito a couros é comigo, sou uma verdadeira autoridade na matéria, afinal brincando se aprende e o custo, bem vistas as coisas nem foi elevado por aí além, trocámos lições de curtimenta por lições de histofisiologia, o ponto comum ? A faca, a mesma faca bem afiada que raspa a pele depois de esfolada serve para muitas mais coisas desde que a saibamos escolher e manter bem afiada claro. A ferramenta tem que ser adequada à função sob pena de não retirarmos dela a devida e esperada rentabilidade, ou rendibilidade ?

Assim sendo, uma faca ideal para raspar deverá ser muito mais pequena que uma catana mas ter a lâmina comprida e direita, apenas ligeiramente curvada na extremidade, o que ajudará na esfola e, volto a frisar, naturalmente bem afiada, afiadíssima. Muita gente não o sabe e pensará haver uma ou duas dúzias de diferentes facas, grande engano, há facas para todos os gostos e todas as funções. Ali junto ao Cunene uma boa faca era não só um objecto de primeira necessidade como de primeira ordem, não olvidemos que algumas vezes, felizmente poucas, a nossa sobrevivência numa inesperada luta corpo a corpo dependeu sobretudo da faca usada. Por mim preferia-as sempre com um pouco mais de dois palmos de uma ponta à outra, bico bicudo, ligeiramente encurvado no gume e, este ondulado dessa curva até meio da lâmina, continuando o resto a direito e toda ela sempre bem afiadíssima como já vos dissera. Acompanhava-me a coxa direita.

Há quem as prefira com um efeito de serrilha no contra gume, ideal para cortar ligamentos, músculos, ramificações nervosas, tendões, óptimas para desmembrar animais, para os desmanchar, porém éramos soldados, não magarefes, matar o inimigo que nos combate sim mas nunca desmembrámos nenhum, não éramos bárbaros, éramos sobreviventes, quem vai à guerra dá e leva lembras-te ? E se não dás levas, um tiro, uma facada, uma catanada, daí a faca sempre afiada e esquece a serrilha, a serrilha sim é dispensável, mas não descures o ondulado do gume na lâmina, é prático, ajuda-te a cortar sem te obrigar ao moroso e cansativo vai vem do serrar, para a frente, para trás. Numa luta quem se pode dar a esse luxo ? Quem está para perder tempo com isso ? Espetas no ventre do magano a faca que terás bem firme e segura na mão, forças a lâmina para cima que ela de per si e ajudada por esse leve ondulado correrá célere acompanhando a mão, o gesto e o porco ficará aberto num segundo, arrumado, não mexe mais, em segundos estará acabado, esvaído, chafurdando numa poça do próprio sangue

Se não quiseres ir tão longe ou ser tão incisivo, tão letal, podes simplesmente correr a curva do gume na barriga do porco. Se fores Dextro bastará um golpe horizontal da esquerda para a direita e tens o tipo aflito, agarrado as tripas, de qualquer modo estará no fim, pensando somente em si mesmo e encostado às boxes, implorando, chorando, por vezes chamando pela mãe e implorando perdão.
Atenção, nunca procures dar azo ao movimento contrário, isto é abrir de cima para baixo, a lâmina ficará encalhada, presa, retida no externo e será travada pelas costelas e tu exposto, desarmado. O Movimento deverá ocorrer sempre de baixo para cima, desde os tecidos moles até atingir as ditas costelas, este gesto será mais que suficiente.


Mas, toma nota, uma última lição, se procuras silenciar uma sentinela, ou acabar de vez com uma justa, e tendo tu a possibilidade de aplicar ao inimigo uma manobra de mata leão que te permita aplicar um golpe de misericórdia que cale de vez o indivíduo sem chinfrim, é enfiar-lhe a faca num rim de modo a atravessar-lhe o corpo e tocar o outro rim, ou passar-lhe pela garganta o fio da lâmina num golpe rápido apontando a carótida ou a jugular e nem piam, é remédio santo, coisa que eu não sou, inda que seja bom rapaz e um rico homem, não digo um homem rico mas um rico homem.

Isto é sapiência. Sapiência do meu mister era assim trocada divertidamente pelos segredos das peles. Na verdade de posse desta aprendizagem, em casa, calçado, casacos e sofás de cabedal andam sempre impecáveis, flexíveis e luzidios. Quanto a eles não sei até que ponto o saber de mim herdado terá sido traduzido em talento, tanto mais que regressei à metrópole antes da grande prova, da mãe de todas as batalhas africanas, a de Cuíto Cuanavale* a sul de Angola. Cinco meses de morticínio no qual pereceram segundo se calcula perto de quinhentos mil africanos. Essa grande batalha pelo poder teve lugar já depois do meu regresso, porém e como todos sabemos, “o saber não ocupa lugar” pelo que sinceramente espero que a formação por mim proporcionada lhes tenha sido de algum modo útil. Capice ?




quinta-feira, 31 de outubro de 2019

619 - ASTROS. FADO, FORTUNA, SINA, SORTE ...


  
Disse ela que me expresso bem, inclusive as emoções, tendo adiantado vagamente uma qualquer coisa sobre o PLAN ou PAN, táctica ou estratégia adoptada por alguém de família cuja prática dominará e ensinará pelo que, atordoado pela sigla e com tão franca confissão me tirei de cuidados e obriguei, preto no branco, as cores entre as quais a vida agora me encarreirou, a indagar sobre o significado dessa aberração que afinal o não era, sendo simplesmente a capacidade de melhor ou pior me exprimir, voluntária ou involuntariamente suponho eu, na linguagem das emoções, algo assim a modos de linguagem gestual mais dissimulada, mais natural, mais própria ou não, dependendo a titulo de exemplo da capacidade conteres ou não conteres o pranto, de suster ou não suster uma lágrima, pelo que deduzo com o pensamento induzido por estas premissas ser a minha neta, na inocência dos seus treze aninhos, mestra nestas andanças ou andando perto duma carreira de cartomante, quiçá podendo vir a assegurar-lhe o futuro dando cartas ou formação naquilo que já hoje parece uma ciência empírica, a leitura das emoções, tal qual a leitura dos búzios, das borras de café e por que não das viscerais entranhas das aves, dos seixos nas praias, da disposição das nuvens ou da agitação que rodeie quaisquer formigueiros.

Por muito menos e movidos pelas melhores intenções, drones sobrevoando os gentios têm causado emoção cada vez mais deslavada suprimindo cirúrgica eficaz e friamente quando não erradamente, as gentes escolhidas, criando revolta nuns, sincera emoção noutros e a apoteose de alguns yes we can, portanto em frente que atrás vem gente just do it, ne cést pas mon petit ? E que se lixem os danos colaterais, o preço irrisório das façanhas actuais…


Portanto a questão roda ou balança em torno das emoções, sua expressão, observação e práxis ou ausência, pois estou plenamente convencido haver quem as camufle, finja, imite, daí tirando proveito, livre de impostos suponho, pois a AT não é para aqui chamada nem ao menos desejada e nem quero sequer pensar em levá-la a tributar emoções, praticamente a única coisa de valor sobre a qual a sua desmesurada ganancia não recai.

Boa gente como somos, eu pelo menos assim me considero, mui naturalmente só abarcamos as emoções nobres e veras, pelo que repito o já dito, em frente que atrás vem gente pois esta conversa está a prolongar-se em demasia e já vos deve cheirar a escatologia, não da teológica mas da outra, portanto avancemos, passemos adiante, às emoções propriamente ditas e à sua apresentação ou expressão, quer dizer apalparam-me, eu senti-me, reagi e alguém registou ou observou as emoções que soltei, que larguei, como quem num laboratório analisa ou disseca um gás largado. Será possível dissecar um gás ? Sei lá, o método certamente científico o dirá, a mim somente foi dito ser claro nas emoções que largo, sim porque outra coisa não largo e juro-vos que raramente me descuido, coisa que a escatologia cientificamente explicará senão a fisiologia. Freud e o cozinheiro responsável pela feijoada que comi ontem também terão neste particular a sua parte ou no mínimo uma palavra a dizer.


Mas não banalizemos a questão, o mesmo é dizer não banalizemos as emoções por muito emocionante que seja o resultado de uma feijoada, pois não é isso que buscamos e quem busca procura, neste caso a verdade, o reflexo de uma mágoa, o rasto de uma lágrima escorrendo rosto abaixo, um leve ruborizar de pudor, um homem não chora, quando muito desculpa-se perante a esposa de que estará suando, isto supondo que mijou na cama.

O caso é sério, deixemo-nos de brincadeiras porque está em causa a solidão para que fui embora antecipada e avisadamente atirado e por arrastamento a inesperada perda do sentido da vida em que em vi embrulhado, enleado, possuído, e me decepou parte da identidade, parte do ser. Sendo o homem por natureza um animal social, e eu não sou menos animal que quaisquer outros, irreflectida, ingénua e inocentemente acusei esse estado de alma, deixei transparecer essa aura negra que me cobriu como nefasto manto e, inda que não tivesse envergado o luto preto da praxe acusei-me emocionalmente, era quase impossível tal não ter acontecido tão magoado me encontrava, encontro e, sendo extrovertido, franco, transparente, aberto e directo, jamais dissimularia o meu modo de ser ou razão de estar.

Tão visível a coisa se mostrou que um expert das emoções logo a captou no seu radar, tendo ditado do alto da sua sapiência encontrar-se perante uma personalidade, a minha, rica de linguagem emocional e soberbamente capaz de a exprimir. Imagino que deveria ter seguido uma carreira teatral ou política, mas segundo Heidegger, Stranger e Junger eu nem me vi perante qualquer dilema identitário, nunca duvidei da fé em mim mesmo, nunca tive dúvidas de quem era e sou, nunca me traí, nunca manifestei angustiantes problemas existenciais, limitei-me tão só e sempre a ser eu, simplesmente.

Aceitei o meu destino na ordem peculiar deste universo, ocupo o meu lugar no cosmos, aceito esse fado, fortuna, sina, sorte, o meu mantra e nunca me senti apesar de tudo por aquilo que passei habitando uma comunidade vazia, sem nada, desprovida de sentido como diria Esposito. E, como atrás foi dito e para rimar, apesar dessa mágoa jamais sofri de platitude, nem sequer me vi como um solitário partilhando a existência com milhares de outros solitários portadores de um sentido de incompletude ou de ausência que vez alguma senti vívido em mim.


Sempre considerei as emoções o sangue da vida, o espírito do karma, e sempre busquei doseá-las. Ter agora sofrido uma overdose de sentido negativo foi excepção que a minha linguagem emocional logo acusou, foi mágoa que magoou, tristeza avassaladora E não mais debandou, aliás cultivo-a como catarse e simultaneamente como punição pelo mais que poderia ter feito, quando podia, e não fiz por comodismo ou alheamento, pois imaginava a felicidade vivida uma certeza sem fim nunca imaginando neste universo por mim habitado outra sina cruzando-se com as minhas certezas, outra intersecção pudendo cortar na diagonal e profundamente a órbita por mim julgada eternamente traçada e cuja trajectória repentinamente alterada, geradora desta inconcebível instabilidade no meu campo magnético provocasse o caos entre as forças gravíticas sustentando o meu viver, tudo desordenando e descoordenando, descontrolando-o como se eu tivesse sido brutalmente atirado fora do sistema solar e vogasse agora com rumo incerto no mar do Cinturão de Edgeworth-Kuiper, desconhecendo de todo quando elíptica tão larga me trará de novo à Terra, a esta Terra de emoções e sentidos, historicamente patológica, doente, desestruturada, disfuncional, dissoluta e onde não somente eu mas cada um de nós terá cada vez mais dificuldade em encontrar o seu lugar e, sendo essa impossibilidade o actual fenómeno de massas ou caldo de cultura em que nos movemos (movemos? regredimos?), triste será o destino que nos espera, um abismo.

Dores, mágoas, sentimentos, emoções, tudo quanto faz de nós humanos, de mim humano, a minha nova identidade, o meu novo ser, a minha nova existência, a minha vida, agora em busca dum salutar retorno a uma práxis de felicidade que já foi minha, a minha onda, a minha praia, tal qual as gentes serão obrigadas a encontrar ou gizar uma nova eternidade, mais conforme com o passado que alguém porventura nos tenha roubado. Confiemos, esperançados que o universo não se destrambelhe…


segunda-feira, 21 de outubro de 2019

618 - O DÉCIMO PUNHAL, by Maria Luísa Baião *



Fui ao cinema ver fitas. Vi jovens muito (a)normais, algumas meninas bem bonitas e um lançador de punhais. Fanática de cinema, logo ali lembrei com pena tempos não longe demais... Outras eras... Em que pessoas, não feras, nos abriam horizontes. Foi assim que lancei pontes e me levei a lembrar, roubando ao passado distante imagens lindas de encantar e que revivi num instante.
Vi uma fita dezasseis em que gente, que não reis, consigo se confrontou. E c'os medos amealhados  se viram então contristados, enredados em enleios, confundidos, aturdidos cos possíveis caminhos a que levam os anseios. É que entre sonhos e desejos, vai um imaginário de ensejos a que muitas não resistem, outros apesar disso persistem e poucas há que desistem.
E c’a memória girando ao cinema fui voltando até à fita trinta e cinco. Não foram precisos tantos, dez, apenas dez punhais puseram pontos finais num império de desvalidos que, antes de perder os sentidos se afundaram, imortais, no mistério desses punhais de um velho baú saídos.
Uma vez subido à cabeça o sentimento vazio do alcance do poder, não se portaram diferente do que fazem muitos eleitos quando pensam que são gente. Quais D. Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança é vê-los, prometer hoje abastança, no dia seguinte temperança. É ouvi-los gritar bem alto à moirama, sabendo nós de antemão que se esconderão na cama quando tudo der para o torto.
 Entre um destes vivaços e um morto bem parecido, prefiro na certa o falecido, não chateia, não refila, não contesta nem protesta. É de longe mais simpático e capaz até, com ar enfático de me gabar atitudes. É que estar morto e bem morto pode ter muitas virtudes, entre as quais, não sendo demais, friso tempestades tais, potestades celestiais que na certa não provoca nem levanta, mesmo quando se agiganta.
Mas voltando às chinesices daqueles dias felizes que a fita atirou p´ro ar, é de bom tom recordar os desígnios do amar que nos podem mesmo levar ao perder, à perdição. Vi isto com os meus olhos, num cantinho bem espremido ali à Diogo Cão. E entre gemidos e ais, os amores desafiantes da cegueira dos amantes os lançaram por disputa de quem contra si mesmo luta na vertigem do abismo...
O filme acaba como um sismo,  em que o décimo punhal, põe fim ao amor fatal, à traição e à razão de quem ama amando mal. O desafio, o abismo e a vertigem de quem julga ser seu amor caso único, um primor, alvo de dádiva virgem.
É um punhal na garganta (não nas costas) que coloca fim ao caso mas não mata ali a esperança. Não sendo até por acaso haver gente bem feliz por tal não lhe acontecer. Não que o não possam merecer, pois arriscam por um triz, devido à diferença notória entre o dizer e o fazer, que não estejam um dia cobertos do branco pó, cor do giz, com que tapamos a escória.
O filme termina terminado. Arrumado no baú já mencionado, pronto para outra partida, pronto para outra viagem. De viagem andou o autor, premiado nessa Europa, pois por cá como é já hábito, o mais a que pode aspirar é levar c’a bota da tropa.
Vítor Moreira se chama, o autor da fita que inflama sendo eborense de gema. Talvez haja já quem o tema por ser revelação latente. Que ele existe o sabe mais gente em Veneza e de certeza noutras cidades mais belas que, às cautelas o premeiam, não vá o home envaidar-se ou subir-lhe o sangue à cabeça.
Por cá vai fazendo uns biscates, pois as verbas não dão para dislates, como aquela fita com uis e sem imagens reais que custou a quem dá ais, os impostos anuais de quem leva a vida dreta sem ter que fugir aos chuis.
                     
* by Maria Luísa Baião, escrito ‎na sexta-feira gelada e fria de ‎14‎ de ‎Março‎ de ‎2003. Muito provavelmente publicado por esses dias no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher.