quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

6 - DESENCANTO...


Quebrou-se o encanto, e quebrado esse que resta? Fragmentos. Fragmentos de uma imagem que construíra pedaço a pedaço, e agora vejo como reflexos dispersos por um espelho partido cuja soma jamais fará um todo. Afinal não mais que discrepâncias forjadas numa dicotomia unívoca, resultante de uma visão diacrónica artificialmente criada cujo entendimento demorei a traduzir.

Físicos e químicos desvendaram os segredos do infinitamente pequeno e do desmesuradamente interminável. Métodos, processos, análises, deduções, induções e experimentações, o socorro de modernos scanners lograram ver o invisível a seus olhos. Sou mais modesto, vejo o que me é dado ver, por vezes tarde e a más horas mas consigo ver. Outros processos me permitem contemplar o que aparentemente não será visível. Demoro, é certo, a perceber o que me é exposto, a juntar, peça a peça, os reflexos desse espelho quebrado. São jogo de imagens múltiplas num caleidoscópio, mas acabo conseguindo, também eu, e sem outro auxilio que a reflexão, ver o invisível.

Há momentos de luz no meu cérebro, e da luz o verbo, que, alicerçado em pequenos mas reverberantes clarões, pormenores aparentemente insignificantes, permitem todavia uma análise sincrónica das imagens reveladas por esses esparsos estilhaços do espelho partido que, qual prisma poliédrico, em minha mente tomavam interrogativa forma, agora real, dessas imagens dispersas e aleatoriamente captadas. Pudera eu então dizer que te vi, que te vi finalmente na tua verdade, na tua unicidade, e, lamento dizê-lo, não gostei do que me foi dado ver. Tanto esforço dispendido compondo um jogo floral, esse arranjo de lindas flores que o tempo se encarregou de mostrar, já não viçoso, já não tão belas como à primeira observação, à vista desarmada e ao longe me parecia esse ornato que tanto idolatrei.

Posso agora afirmar com propriedade serem algumas em dúctil plástico, e dele carregarem a ausência de aroma, viço, exuberância, sensibilidade e beleza perene que só a verdade engendra, ainda que transitória, transitória no sentido da renovação, da criação, da metamorfose da vida, e que somente o natural comporta. De nada portanto valem, no caso, fórmulas, teorias e teoremas, conjuntos lógico matemáticos ou racionalismo puro. No ar um olor incipiente que nem as condenadas de Eastwick professaram. Antes um calculismo e uma objectiva frieza que, não me tendo convencido, me lançaram em guarda e abriram o baú das dúvidas, qual caixa de Pandora que me será impossível conter, aberta que foi, e activada ou executada a profecia.

Mentira tem perna curta. Grilhetas e prisões que só Vampirella ou Magda Patalógica conscientemente para si criaram, não convencem, meros artifícios que, actualmente, insuficientes se mostram para acordar qualquer príncipe encantado…
  

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

5 - SIM, AMO A ARTE............................


         Era a minha primeira aula de História da Arte, e contra os meus princípios ia chegar atrasado,  bem atrasado. 

Entrei, na vetusta sala não se fazia sentir o imenso calor que grassava cá fora, e o Verão não chegara ainda, só as grossas paredes da velha Universidade nos protegiam da canícula. No ar, mau grado o considerável número de alunos, pairava sobre todos o aroma fresco de um perfume de mulher.

Sorrateiramente esgueirei-me para um lugar vago na primeira fila. Sempre procurei os primeiros lugares, ainda hoje assim sou. A professora, uma jovem mulher, de imediato me prendeu a atenção, dela emanava o suave odor que assinalei, era alta, esbelta, linda. Vestia de forma simples, uma blusa branca, de linho, a que devido ao calor ou a um daqueles gestos ensaiados e estudados de mulher, libertara os botões do decote. Calças justas de ganga e sapatos rasos, vermelhos, completavam o quadro.

Dissertava fluentemente, numa voz agradável de timbre levemente grave, num porte e com uma segurança que me cativaram. A páginas tantas dobrou-se sobre a secretária, talvez para escrever o sumário, não posso precisar já, e quando o fez deixou antever fugazmente dois seios pequenos, redondos, alvos. 

Não sei se pela altivez, se pelo seguro domínio das matérias e do discurso, se pela atmosfera grave e séria que se respirava naquela sala, naquela aula, não sei se foi o suave perfume que pairava no ar ou um relâmpago de erotismo o que me arrebatou. Ainda hoje o não sei passados que são trinta anos, o que sei é que me tomou de assalto uma paixão profunda, instantânea e fulminante, tão avassaladora quanto impossível.

Obriguei-me a tantas perguntas quantas as respostas que ficaram por achar.
                 O rio que passa sob os nossos pés não traz jamais a mesma água, e não volta nunca atrás, leva sim sentimentos dispersos, como sonhos submersos sob as águas calmas, arrastando desertos inteiros, raízes de ilusões.

Havia que sublimar essa pulsão que, para meu espanto, ameaçava romper-me o peito e o pranto, pelo que nesse semestre e nos seguintes, não faltaria a uma única das suas aulas e empenhar-me-ia solenemente nas matérias.

Abracei por isso milénios de arte e história, testemunhos, estilos, movimentos influências e tendências, mergulhei apaixonadamente na escultura, na arquitectura, na pintura, na literatura, percorri todo um calvário e venci.

Inquietação calada, onda acabada, assunto encerrado, livro fechado, sonho que nasceu e sumiu, adiante. 

Valeu a pena todo esse sacrifício, Deus foi indulgente para comigo ajudando-me a cauterizar a ferida aberta. Curei-me, cresci, aprendi a lição, mortifiquei no corpo essa sede no deserto, e ontem, e hoje, e sempre que a vejo, lembro porque amo a arte e aprendi a dominar o desejo.

Pela penitência apaguei o archote que ardia no meu peito, trespassei emoções, transformei em vitória uma derrota ao deitar ao chão a chama que incendiava o grito mudo que me sufocava.

" A todos o tempo cobra na vida alguns instantes, breves, de desvario, inquietação, em que nos estoira na alma um grito, um olhar delirante, um sobressalto, em que o sonho ou a vida se insinuam num vazio, em que bate forte o coração e se abate sobre nós a grande sombra da noite e a alma se solta conspirando paixões, desenhando e pintando no ar a aguarela os nossos mais profanos desejos. A gente baloiça, vai morrendo o quebranto, tudo se esquece, tudo se cala, o que foi passado, passou-se, rezam-se umas ladainhas e salvé rainhas e a caminhada segue, onde nasceu acabou, e logo ali se enterrou, num torvelinho de encomenda para uma alma que se remenda."  (by Fausto Bordalo Dias)

Façamos do sonho um esquecimento, e ergamos à arte um monumento… 
...



4 - NÃO, NÃO ME VISTE...



Não me viste.

Cruzaste-te comigo e não me viste, passaste rápida, como sempre foste, rápida, impetuosa, dinâmica, sem tempo sequer para ti, sem tempo para os outros... 

Não te teria visto não tivesse sido o brilho radiante dos teus olhos, grandes, pestanudos, belos. Lembras-te ?

Lembras-te de quando brincava com a beleza deles, a que meigamente chamava as minhas contas de vidro? Não lembras. Se calhar mais ninguém, alguma vez te lembrou esses olhos como lindas contas de vidro, com as quais eu brincava enquanto tu nada, tu alheia, como se essa beleza te fosse um direito adquirido, tornado hábito, vulgaridade.

Recordo-te indiferente quando chamados á baila, eles brilhando, e tu nada, numa exuberância desinteressada que me exasperava, a mim, então um homem imaturo, inseguro, tímido, diria que ingénuo ainda, inocente mesmo.

Eu sempre hesitante, sempre temendo assanhar-te no receio de um dos teus repentes, no receio que, numa das tuas tão frequentes quanto habituais birras e explosões de orgulho, momentâneas mas consequentes, te fosses, airosa, atirando a asa da mala sobre o ombro, a mão afastando o cabelo da testa e dos olhos e estes lançando-me um olhar vago de indolência fingida mas alheia a tudo, a mim, a ti, ao desfecho, para meia hora depois estares telefonando;

- Não sei o que me passou pela cabeça, passei-me, devia estar doida de todo, perdoa-me querido, quando podemos ver-nos de novo ?

 E eu aparentando uma calma que não tinha, eu numa atitude meiga, terna, paternal quase, perdoando, perdoando-lhe mas na realidade com uma vontade vera de a esganar, frustrado, sabendo quão difícil era estarmos juntos, vermo-nos.

A leviandade dela quebrava-me a paciência, mas pelos olhos, aquele lago onde me perdia e afogava, perdoava-lhe tudo na esperança de jamais se acabar aquele jogo em que os olhos, quais contas de vidro fulgurantes, me tornavam irreal o tempo, aparente a rua, o mundo reduzido á contemplação deles, vogando naquele mar de cabelos aveludados em que eu era um marinheiro encantado pelo seu cântico de sereia.

Ela pujante, mulher feita, no auge da beleza e, diria eu, de uma leviandade e vaidade sem igual, que simultaneamente adorava e detestava, num conflito interior a que me mostrava incapaz de dar solução, eu, homem feito de uma imaturidade não assumida, primando por toda a inconstância que a incapacidade para lidar com o imprevisto me provocava, e ela isso mesmo, o imprevisto, e toda ela inconsequência e ligeireza, e eu nada, incapaz de tudo, sorrindo para fora e rangendo os dentes por dentro.

Pouco mais recordo hoje que o flash radiante dos seus olhos, ah ! 

E vagamente a Tv ligada, para que o quarto não escuro, para que uma meia-luz coada nos iluminasse e, nos Jerónimos, homens engravatados sucedendo-se assinando um qualquer tratado de uma vaga comunidade, ou clube de ricos, dizia ela, e eu atrapalhado com o colchete do sutiã, ainda hoje atrapalhado com esses colchetes, devia treinar, mas treinando as mãos não me tremem, e nesse momento sempre, porque sôfrego do gozo depois do colchete, louco por me dar e ávido da entrega pela qual anseio, envolto em sonhos e névoas exaladas daquele olhar, desesperado pelo instante que nos junta, nos une, nos irmana na fruição dos raros momentos partilhados...

E toda tu te transmutavas quando eles, quais faróis, se acendiam excitados projectando essa luz calma, trazendo à penumbra do quarto uma serenidade inusual, uma matriz uterina em que nos refugiávamos, numa atitude cúmplice, alheia a tudo menos a nós, cada um sedento do outro, buscando-nos e encontrando-nos naquele ambiente de mar de coral em que flutuávamos esquecidos de nós, do mundo, de tudo e de todos.

Depois, repentinamente, como era teu hábito, davas tudo por terminado, abruptamente, como se aquelas horas não tivessem sido, eu num torpor, a preguiça tomando conta de mim, exausto, cansado, sonolento, sonhando-me dormindo juntinho a ti o sono reparador dos justos, e tu já de alça da mala ao ombro, tu já desviando o cabelo da testa e dos olhos antecipando a partida, na Tv aplausos, aplausos porquê ?

Pela tua partida ?

Ah ! O Primeiro-Ministro assinando o Tratado com caneta de ouro !

Ao fundo os Jerónimos e toda aquela gente que jamais até hoje deixei de ver na televisão, botando discursos, assinando compromissos, enquanto o país se afundava e eu perdia os teus olhos cuja luz maravilhado olhava.

Não, não me viste, cruzaste-te comigo e não me viste, uma passagem rápida, um instante, e na minha mente repentinamente acendido o brilho radioso dos dias passados sob a luz quente e calma do farol dos teus olhos, essas contas de vidro ainda com o mesmo brilho fulgurante de outrora, e tu nada, tu alheia a mim, como dantes, eu um agora outro homem, crestado pelas experiências vívidas das dores da vida, agora seguro, agora extrovertido, agora perdida a inocente ingenuidade dos puros, agora cheio de certezas, firme de convicções, agora a calma em pessoa, tornado ternura e meiguice, e já não em mim frustrações ou traumas, antes valorando o tempo que dantes me parecia infindo, seleccionando momentos, amizades, olhos, eu já de carácter e mãos firmes, contudo, hoje como ontem, a mesma hesitação, a mesma inexperiência, a mesma atrapalhação, os mesmos colchetes que nunca aprendi a manejar.

Não me viste, talvez melhor assim, talvez já nem lembres, talvez nem uma recordação, não eu, não eu que jamais esqueci esse amor pródigo, fogoso e inconstante, que me tornou homem, o homem completo que agora me julgo, mau grado os colchetes…


3 - SEREIA EM NENÚFAR....................


Minha ventura começou com convite de grão-vizir para que passasse férias naquela fortaleza. Desde então, e lembrem que sou do tempo em que os animais falavam, seduzido pela beleza da paisagem e pelo mar azul, por ali me fico a metade do ano em que nos pólos faz frio e no equador calor em demasia.

Não só por isso me avezei aquele lugar, banhado por águas tépidas onde nenúfares perfumam o ar e servem de leito a dezenas de sereias que, como eu, fugindo dos rigores gelados ou cálidos de seu mundo, ali passam igualmente o período estival. Entre elas, uma teve o condão de me encantar com o seu canto. 

Loira, de uma beleza ímpar até para sereias, cabelo caracolado, há séculos troca comigo insuspeitos e cúmplices olhares e intenções, tendo mesmo chegado a deixar livre para mim um dos gigantes nenúfares onde se espraiam, tomando sol, cantarolando e atraindo com o seu canto, depois do poente, navios e marinheiros.

Naquelas águas calmas, prateadas, vi passar ao longo dos séculos navios negreiros, navios piratas e muitos, muitos outros carregadinhos de café… Em cada carregamento o aroma forte do café torna este reino acolhedor, provocando em mim o desejo quando, desta fortaleza de Odemira, vejo as luzes refulgindo e o destino me traz à memória essa sereia.

Espero-a, imaginando os oceanos lindos por onde anda, espero-a, e sonho percorrer com ela esses mares para mim enigmáticos, espero-a e recordo-a em cada lufada carregada do odor forte que até mim chega. O café, as águas azuladas, o mar um lago lindo donde ela emergirá, mais bela que nunca, mais sedutora que nunca, ela linda, eu feliz a seu lado, eu feliz como jamais estivera, como se há tanto tempo….

Por isso a recordo como se ontem, como se hoje, o canto harmonioso, as palavras e os modos de deusa marinha, a delicadeza feminina e simultaneamente diáfana. Sonhando-a sonho o mar numa tarde de solstício, o seu olhar, os seus olhos, o seu sorriso, beijos, carícias, desejos, que eram os meus, o seu corpo jovem, o odor a mar, os cabelos em minhas mãos, ela em minhas mãos e eu, no azul tépido e escuro daquelas águas, cativado com tanta ternura, com os seus seios cheios, túrgidos, lindos, excitantes, ela tão doce, tão querida, tão meiga… eu, velho de séculos, sei-a de cor, ainda hoje a sei de cor...

E jamais um café sem que a evoque, sem que nos lembre, e esqueço-me de o beber olhando-o, desligado do tempo infindo em que perduro, até o beber frio, e se frio… não me queixo, há cafés e cafés, depende do que nos recordem, e então sim, uns sabem bem… outros a nada, outros ainda a saudade e a ausência, a desejo, a ansiedade, a tormento, e tanta coisa nos diz um café, um espelho de água com nenúfares, e jamais me ocorrera tanta coisa coubesse numa chávena de café…  todo um mar florido.

E nesse mar eu, e ela, e todo aquele dia dentro… banhados nas águas do seu mundo. Como de outro modo senão numa chávena de café? Numa simples flor ou numa memória, reminiscência memorável, e fico olhando o fundo, não as borras , que as não tem, mas o fundo, o resto do café bebido, e vejo-a reflectida em cada chávena, e sorri-me, recordando-me o melhor dela. Como não o melhor se não lhe conheço defeito, apenas a beleza etérea… o sabor a salmoura dos seus beijos… O calor das águas em que nos banhámos, o fulgor do céu que nos cobria, a profundeza do mar em que nos atolámos… E já me habituei a pedir o café sempre num canto resguardado do balcão, longe de olhares, longe do bulício, para ficar ali sonhando-a, recordando-a, amando-a numa chávena de café…

Estarei lúcido? Estarei sóbrio? Será possível?

Queria beber com ela cada café da minha vida, e tantos dias, tantos cafés, tanta felicidade, e já está fria esta bica, vai sendo costume já, estou habituado, é bom, nunca lembrara uma bica como agora, e agora… Nem esqueço nenhuma, mesmo que fria, justamente por me ver, e a veja, no fundo de cada chávena.

Sitio linda o desta fortaleza.

Este mar florido e tépido, o seu sorriso, beijos, carícias, desejos, que eram os meus, o corpo jovem de ninfa, o odor a algas salgadas, os cabelos nas minhas mãos, ela nas minhas mãos, e eu vendo-me nas profundezas do mar onde me levava o céu com que nos cobria, embevecido com tanta ternura, com os seus seios cheios, lindos, excitantes, ela tão doce, tão querida, tão meiga…

Temo desde há séculos a morte dos nenúfares, lendas dizem que a cada um corresponde uma sereia que morrerá com ele, por nada deste mundo queria perder aquela que, de entre tantas logrou encantar-me. Temo desde há séculos a morte dos nenúfares, lendas dizem que em cada um uma sereia que morrerá, e por nada deste mundo queria desencantar-me...


terça-feira, 25 de janeiro de 2011

2 - A CABELEIRA DE BERENICE .............................


 Conta a lenda que Berenice, rainha do Egipto e conhecida pela sua beleza e encanto, terá oferecido aos deuses, em troca da vitória dos seus exércitos, a formosa cabeleira que a animava. Afrodite terá ficado deslumbrada com a beleza desses cabelos, levando-os egoisticamente para o céu, com os quais se deleitava. 

                Adoro as lendas clássicas, tanto quanto as detesto, dependendo do fruto das suas fruições ou dos pesadelos que me provocam as suas lembranças. Não é a mesma coisa vivê-las, sonhá-las, ou submeter-me ao seu tormento. Por isso hoje estou magoado, não zangado ou ressabiado com quem tantos momentos únicos me prendou. Qual Medeia, a bela, também Berenice, que me alimentou sonhos e ilusões, vi transformada em fonte de sentimentos tão belos quanto contraditórios, senão mesmo cruéis.

Muitas vezes sonho com estrelas, muitas vezes me vi vogando nos céus, tão feliz quão Aldebaran, imbuído de honras e riquezas tais que nesses momentos também eu experimento grandiosos e radiantes sentimentos e, como ela, a sensibilidade de um brilho ofuscante, em muito superior ao de Betelgeuse, essa sim, conhecida pela sua grandeza, brilho e eterna duração. Como poderão ver, eu, como toda a gente, tenho momentos que, mesmo oníricos, são de uma beleza e felicidade impares. Não serei único, como não serão exclusivos meus adversidades, frustrações e desilusões, comigo, com a vida, com os demais.

É a vida, e como soa ouvir-se, o que não nos mata fortalece-nos, contudo, parafraseando um ditado da minha terra; “ elas não matam mas moem”. Mas estou a desviar-me do meu sonho, do meu sonho e de Berenice, a tal beleza que, e só nos sonhos tal acontece, a exemplo de Aquiles o belo, que banhado no rio Estige quando criança, se terá tornado invulnerável á excepção do calcanhar por onde lhe pegaram para o banhar, e por onde teria entrado a seta envenenada que anos mais tarde o mataria...

Também eu sonhei Berenice banhada nas águas do rio Ingá e delas saindo risonha, feliz, um sorriso contagiante que haveria de a acompanhar a vida inteira. Sonhos são mesmo assim, num minuto o nascimento e baptizado de Berenice nas águas desse rio que as flores dos Ipês roxos sagravam, no minuto seguinte o seu corpo moreno retesando-se na brancura dos lençóis, tensa, bela, esbelta, olhares e unhas cravadas em mim, as coxas quentes rodeando-me a cintura, sôfrega, ávida, suada devido à intensidade do calor do momento, suado eu, igualmente vogando no Olimpo, utopias e idílios, fantasias e propósitos, ficções devaneios e quimeras, saboreando salivas, as nossas peles húmidas, como húmido tudo o resto, na vacuidade do momento, do instante em que suas coxas num desafio me rodeavam, abertas, oferecidas, refúgio, abrigo, consolo e êxtase que a circunstância num ápice transformava de princípio e meio, em fim, 

e minhas mãos, envolvendo os seus cabelos lindos, reparam sobressaltadas que não têm nelas Berenice, nem Medeia, mas ternamente afagam a cabeça de Medusa, cujos cabelos, volvidos serpentes, me causam repulsa e sobressaltado, me acordam desse sonho transformado em pesadelo, do qual recuo em rejeição e recusa, revoltado, magoado, do qual me evado antes que, petrificado, inexplicável e surpreendentemente apresado, esqueça tantos e todos os sonhos sonhados, ainda vívidos em mim, e se me frustre a vida, a ilusão, a esperança, eu.