sexta-feira, 31 de outubro de 2014

206 - DESPESA BOA DESPESA MÁ ... FAZER DESPESA SIM, FAZER DESPESA NÃO ...


Vai um reboliço na AR com a discussão do OE para 2015. Só me admira que quer as premissas quer as projecções não sejam mais negras, mais fatalistas. Este governo tem sido hábil, e lábil, em adoçar a pílula e fingir que faz, não fazendo.

Mas que devia ele fazer que tanto receio tem em fazê-lo ?

Despesa. Cortar na despesa, nos gastos da república.

Toda a gente clama haver necessidade de cortar na despesa, nas gorduras, e certamente haverá muito por onde cortar, mas onde ? Quem ?
E é aqui que a porca torce o rabo.

Cortar despesa implica em grande parte dos casos despedir pessoal, à bruta ou com indemnizações, (geralmente a coberto de um qualquer programa de nome pomposo e virtuoso) qualquer das opções conduz a mais despesas, em rescisões, subsídios, etc. etc. etc. para além de arrastar à colecta de menos receita, menos contribuições para a SS, menos impostos, IRS, IVA etc. etc. etc. Quem não recebe não gasta, e quem não gasta não paga impostos, nem directos nem indirectos, ou passa a pagar muitos menos, enquanto por outro lado pode vir a ser beneficiário de isenções ou subsídios diversos.

Por aqui se vê que reformar implicará desgraçar ainda mais o país, o que o partido no governo não quer, e reformar a parte que não obrigue a despedimentos exige inteligência, precisamente o que este governo não tem. E seja dito em abono da verdade que reformas exigidas pela realidade há anos, ninguém as promoveu.

E então ? Não há soluções ? Não há reformas ? Verdade verdadinha é que este governo não tem desenvolvido nenhumas, ao contrário do que apregoa. Tem-se limitado a medidas pontuais e esporádicas, mais das vezes com pior resultado que o pretendido.

Há soluções. Mas tb há que ter em conta padecermos de muitos outros males, e que quem quer que pegue nisto terá que conjugar economia, moral e ética, e um mix de educação, motivação e saúde que nos ajude a sair do buraco. Rezar a Nossa Senhora pode convir mas não é condição sine qua non.

Tão simples assim ?
Não.
Complicadíssimo até.

Porque o país está moribundo. Carente de reformas há mais de trinta anos. Descapitalizado. Vendemos os anéis mas as dividas continuam, e é inegável a necessidade de diluir a divida no tempo. Dívidas assumidas no fim da monarquia princípio da 1ª república, foram final e totalmente pagas somente e já neste milénio, há não mais que meia dúzia de anos, sem que aparentemente nada tenhamos aprendido com isso.

Há que forçar o crescimento. Só o crescimento do PIB, da economia, nos pode salvar e tirar do buraco. Para isso é urgente começar a premiar o mérito e a assumpção de responsabilidade, apoiar as empresas, e em especial as PME que garantem emprego a 98% da nossa população, apoiar os empresários com medidas fiscais e financeiras, indexar os salários, o seu crescimento e a redistribuição de riqueza aos ganhos de produtividade e ao crescimento do PIB, tudo clarinho e preto no branco num contrato social envolvendo e assinado entre as partes, para que todos ganhem e todos saibam quanto têm a ganhar se o país evoluir. Mobilizando-os…

Há que dignificar o trabalho e a inovação, tal desiderato passa por permitir que sejam melhor remunerados os ganhos do trabalho que os ganhos financeiros, o que não acontece actualmente, em que o rendimento obtido pelas aplicações de capital estão claramente acima das obtidas com trabalho mental ou suado, o que é um mau sinal. Temos que premiar o empreendedorismo, penalizar a inércia e a inacção, oferecer aos empresários condições que lhes permitam capitalizar-se, ou recapitalizar-se, afim de que actuem antes que os chineses comprem isto tudo e encham o país de chinocas trabalhando 18 horas por dia por meia dúzia de patacas, yuans ou renmimbis.

Haverá que taxar fortemente o financiamento ao crédito e consumo de bens supérfluos e de luxo, incutir razoabilidade moralidade e educação neste povo, promover uma profunda reforma politica e social, (social, de mentalidade civil, cívica) definir regular e reformar o sector empresarial estatal e a respectiva gestão, estabelecer objectivos e metas responsabilizando as pessoas e exigindo o seu cumprimento não se permitindo jamais que a culpa morra solteira, estabelecer criteriosamente as áreas de actuação do sector público empresarial estatal e do sector privado, afim de evitar promiscuidades e tentações pecaminosas.

Haverá tantas soluções possíveis como cabeças pensantes, mas teremos que estabelecer um despique saudável entre distritos, incluindo nele responsabilidades sociais assumidamente um dever de todos, particulares e empresas. É inaceitável que não cuidemos dos velhos, ou que deixemos abalar os mais novos, ou que chantageemos jovens mães para que não engravidem, tem que ser estabelecido um contrato social abrangente, onde todos se sintam incluídos.

Exigir-se-á moralidade a todos para que sejam desbloqueados milhentos processos parados, boicotados ou travados em ministérios e municípios, por burocratas e técnicos incompetentes excedendo ou exorbitando funções, querendo impor uma visão e agenda pessoal aos contribuintes e munícipes sem que para tal tenham sido eleitos, o que terá que ser feito quer desburocratizando quer “simplexando” procedimentos e castigando reincidentes.

Poderiam ser estabelecidos rácios para orçamentos camarários e para os quadros de pessoal do funcionalismo publico, enfim, moralizar-se o viver neste país, por agora todo ele enleado em enganos em que metade de nós sobrevive de esquemas precários ou parasitando o aparelho de estado e em que a outra metade simplesmente não aceita pagar os excessos inúteis. As gorduras…

É dos livros, temos que crescer, ou crescemos todos ou morremos todos, estamos ligados umbilicalmente. Como estamos só nos resta sobrecarregar cada vez mais de impostos os poucos que ainda trabalham ou desenvolvem uma área de negócio, e no dia em que forem só dois ? É notório que só o crescimento permite obter valor e riqueza para fazer face ás despesas que temos, e que temos que controlar e valorizar. A título de exemplo, o Ensino Público ou o SNS não podem ser buracos onde simplesmente se despeja dinheiro, é dinheiro nosso, de todos, que custa a arranjar e faz suar, o seu consumo tem que ser moderado, fiscalizado, mas sobretudo rentabilizado. São valores inestimáveis e sagrados.

É forçoso remunerar bem as poupanças, e permitir que as aplicações de capital obtenham mais valias não especulativas, incentivando estes mecanismos através de isenções ao reinvestimento de capital e penalizando proporcionalmente a distribuição de dividendos.

Todos temos que ser mobilizados, que fazer parte da solução, e todos temos o direito (cumpridos que estejam os deveres) de esperar ser justamente beneficiados quer pelo esforço quer pela mudança. Qualquer português que se negue a este esforço repartido não merecerá a consideração dos demais. Um burocrata ou um técnico que boicotem um processo estão a contribuir para a eliminação do seu emprego e dos demais. Se o processo não andar não criará riqueza nem emprego, não se pagarão impostos, os tais impostos que no fim do mês lhe pagarão o ordenado ou vencimento, e que, quando todos pagarmos, calhará pagar menor parte a cada um, enquanto por outro lado deixaremos de exaurir subsídios, de desemprego e outros que tais, permitindo o seu uso em áreas mais reprodutivas.

E por falar em reprodutivos, lembremos o termo “divida virtuosa” porque tb existe tal, divida virtuosa é aquela que permite multiplicar por 2 ou 3 ou 4 ou 5 ou 10 cada unidade aplicada, o que decididamente não tem preocupado os nossos decisores nos últimos 40 anos, é hora de acabar com as PPP e lançar as O.C.F. simplesmente “Obras de Compromisso com o Futuro” …

Parece ser já pacífico para os portugueses que os diversos governos e a generalidade dos deputados, desde o 25 de Abril, se preocuparam excessivamente com os respectivos partidos, ou as respectivas pessoas, deixando para as calendas gregas o governo da nação e o bem estar e futuro dos portugueses. Agora que os credores o exigem apercebemo-nos terem sido demasiado bem pagos para a pouca produtividade alcançada, tudo está por fazer, e em “N” aspectos nada se avançou de então para cá. Não temos uma fiscalidade atractiva para o investimento, temos uma justiça digna da idade da pedra, o ensino teima em não proporcionar as condições de formação e especialidades ideais, e fico-me por aqui. Isto parece o oeste selvagem, é o salve-se quem puder, sendo que padrinhos e cunhas se substituíram ao justo fruir da igualdade que a AR deveria ter acautelado para todos.

Em Portugal o Poder Local parece sofrer na generalidade do mesmo mal, partidarismo, clientelismo, e um rácio de funcionários muito superior ao que seria natural e ideal, disso nos deu conta há poucos dias a divulgação de uma completa e meticulosa infografia. (link para consulta no final do texto).

De uma média ideal de funcionários por cada mil habitantes exorbita-se para números carentes de toda a lógica. (Évora 21,1 por 1.000 habitantes, aconselho a que veja o gráfico cujo link se encontra no fim do texto).

E nem são mais eficientes nem menos custosas para os munícipes estas equipes de gestão da coisa pública, demasiadas mantêm um grau de despesismo elevado, muitas estão endividadas, e raras se distinguiram na criação de condições para o desenvolvimento de uma actividade económica salutar e geradora de emprego. Ao invés e enganadoramente tornaram-se o principal empregador da sua área. Com o inerente peso burocrático e financeiro. Um município não gera riqueza ainda que para ela contribua criando condições para que tal ocorra... (quando cria), e sendo em simultâneo um foco de despesa, há que gerir muito bem os respectivos orçamentos para que não se tornem um peso excessivo. Estrangulador. Todas as intervencionadas foram obrigadas a aumentar, para o escalão máximo, taxas e derramas, o que decididamente não é da simpatia do investimento ou da criação de emprego. Nem dos munícipes.

Do exposto resulta que os municípios podem ter uma importância transcendental na captação de investimento, na criação de condições para que o desenvolvimento económico aconteça, e para que o desemprego se mantenha baixo. Podem, mas o que os números nos indicam é que o não conseguem. Porquê deixo à consideração de cada leitor pois cada um certamente conhecerá o seu concelho melhor que eu. Contudo arrisco avançar que nem todas as responsabilidades caberão ao presidente ou aos vereadores, a existência de boas equipas técnicas é fundamental. Sem elas o resultado obtido é igual ao obtido por um bom primeiro-ministro rodeado de ministros incapazes.

Parece ser já demasiado evidente para todos nós que estamos no mesmo barco e que só sairemos daqui produzindo, produzindo muito, produzindo bem e depressa, não há outro modo de se obter criação de riqueza e de emprego para todos. Claro que a par disso muita coisa mudará, mas o essencial assenta na organização colaboração e produção. Cada um que faça o melhor no seu posto. A bem ou a mal, alegres ou contrariados só nos resta produzir urgentemente, de modo que os ganhos supram os custos, de modo que não haja necessidade de despedimentos nem de encerramento de serviços empresas ou fábricas.


É tudo por hoje. Obrigado pela seca.

http://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/infografia_saiba_quantos_funcionaacuterios_trabalham_na_sua_autarquia.html


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

205 - VIOLA VIOLINHA VIOLÃO ........



Adoro violas violões e violoncelos. Só pelos violinos e violinhas não tenho igual perdição.

Sou um melómano.

Sou um perdido. Pecador sem remissão.

Desde que, em pequeno, cursei as aulas do maestro Rafael (hoje teria o nome na lista da ministra) e que o paizinho me comprou uma viola que excitado levantei no estafeta Semião, (1) anima-me esta devoção, esta fidelidade ao instrumento, esta constância no gosto, esta fixação na preferência.

En effet, il est encore aujourd'hui.

Com efeito assim é ainda hoje e, cada vez que posso, cada vez que a devoção me acode e tal fé me tolhe agarro-me ao violão, a quem pego docemente no braço e arrasto num abraço para o sofá mais próximo, me estico e mimo ternamente, dedilhando-o até que, vibrando os dois, ouçamos no céu o suave chilreio das virgens que ora fazem fila em Kobani.

En effet, il est encore aujourd'hui.

Com efeito assim é ainda hoje, esta paixão pelo violão, junto de quem me perco e medito, a quem num amplexo cinjo pela cintura estreita como quem lhe descansa na anca o braço cansado, p’ra lhe beijar os seios redondinhos com amor, nos quais roço a face esperando, esperançado, conseguir um dia ouvir bater-lhe o coração, enquanto lhe beijo a boca marchetada a madrepérola e, de olhos fechados, lhe dedilho as cordas num crescendo Allegro cuja ressonância nos faz vibrar juntos, coladinhos, abraçados numa melodia sem fim, sonhada desde tempos antigos e eu, que aos primeiros acordes faço dos dedos palheta e ar sofrido, a medo, tento um harpejo impossível atento às oitavas e às graves, buscando acertar o timbre no que é para mim e decerto para nós dois prelúdio de um concerto maior onde transgredimos todas as escalas.

En effet, il est encore, cette passion qui me perd.

Com efeito assim é ainda, esta paixão que me perde.

Outras vezes numa pulsão hesitante, como quem por precaução estuda o caminho a trilhar ou apalpe a cama onde soe deitar-se.

Milhares de vezes ergui os braços ao alto da sua escala de trastes de platina, levando nas mãos um carinho que deixo escorrer-lhe ao comprido do tampo de cedro alimentando um sonho lindo, mãos descendo ao longo dos braços até esse corpo em oito, ao peito duro e liso como ébano, à cintura, às ancas, terminando sempre nos acordes que repito sem cessar, e dedilhando cordas tão bem conhecidas já e a cuja ressonância não resisto como se a repetição, o eco, fosse para mim uma necessidade, um vicio, uma fé, uma atitude que contudo não passa de heresia, um pecado sem remissão, repetido, um hábito adquirido na embriaguês, no delírio desse langoroso dedilhar que, torpe, nos toma e submerge, afogados na mesma água em cuja sede nos atormentamos e sofremos mas só na sua boca matizada dessedento.

Por isso rejubilo cada vez que no colo cruzo o violão e me perco como se finalmente a travessia de um deserto galgada e eu, cúpido, me entregasse à recompensa concupiscente de um prémio há muito perseguido.

É esta devoção, esta fé, esta entrega que me resgata da ferocidade da passagem dos dias, iguais, monótonos se não fosse o dó ré mi instrumental que arranco de ti, ou os fá, sol, lá que me agitam numa efervescência comprimida até que num estridente si, ou dó, expludo em crescendo allegro moderato e vivace logo presto, prestíssimo, e te abraço enquanto meiga, ritmada e compassadamente deixo cair em ti palmadinhas nas costas, cuidadoso de ti, receoso de danificar-te a estrutura, deixar mossa ou estalar o verniz.

En effet, cette passion me perd décidément.

Com efeito esta paixão decididamente perde-me.

E é neste final que me abandono e adormeço, abraçado a ti, as cordas inda trinando do dedilhar apressado que a urgência decretara, p’ra terminar abertamente num histrionismo avassalador, absorvente, envolvente e comovedor que me torna melhor, uma pessoa melhor, em paz comigo, com o mundo, o mesmo mundo de onde fujo para em ti me refugiar, temente do dia em que não te faça vibrar, por isso estico a corda até onde posso e sou capaz, receoso de destapar os pés para cobrir a cabeça, como se cada trinado arrancado de ti consumisse e abreviasse a vida, a alma, o âmago, que disputo sem cessar e em cada sessão te arranco, sedento, faminto, como se somente em ti o remédio para os males do mundo ou a cicuta capaz de extinguir os meus desvarios, porque é já impossível esconder, o que me atrai é o abismo, a perdição, o pecado original, como se possuísse um trauma que me condicionasse ou conduzisse numa cadência de refrão até ti, sempre a ti, sempre ao sonho, ao mesmo sonho em que te atravesso no colo e te arranco em esfusiante alegria ou angustiante revolta cada melodia sonhada, até que fatigados, os acordes e as harmonias finando-se, deitados numa pauta, abatidos, exauridos, a mente se me acomoda numa bonança pós submissão do turbilhão em mim despertado e adormeço plácidamente. 

(1)  Desejando veja o texto 71 de Julho de 2011  http://mentcapto.blogspot.pt/2011/07/71-vejam-so-o-que-eu-perdi.html






sexta-feira, 3 de outubro de 2014

USA BOTIM ... SMALL STORY, SHORT STORIES ...


Mesmo nos dias pouco soalheiros aquela rua mantém o arranjo, aprumo e arrumo, piso limpo, sem buracos e sem mais lixo que uma ou outra folha caída de uma ou das muitas árvores que a compõem. É uma rua catita a minha, de prédios brancos debruados a amarelo ocre, um amarelo que no Alentejo casa com os malmequeres silvestres saltando à vista mal metamos o pé fora do burgo.

No meu bairro todos ou a maioria dos prédios mantêm um cuidado jardim entre si e o passeio largo, por ali podemos caminhar e descomprimir, o sufoco da cidade antiga não nos aperta aqui e, se por acaso assomamos à janela nem a vista nem as pálpebras baterão no prédio da frente e ruas e, avenidas largas dão largas até à imaginação mais contrita.

Até eu ou sobretudo eu que sou extrovertido e expansivo aprecio e aproveito, inda que não necessite, o panorama de quaisquer das minhas janelas e, um destes dias, eu que sou um homem fiel a pessoas e compromissos, dei por mim num devaneio que nego e ao qual fui alheio, alheio mas espectador, tendo em mim sentido ter toda a rua ficado repentinamente mais viçosa, mais luminosa, como se a Primavera estivesse pressurosa de chegar e o dia ficado mais cintilante, mais radiante, mais iridescente, quente, pelo que corri primeiro o cortinado deixando-lhe somente uma nesga por onde olhar mas, de tão intensa e espectacular a imagem, corri ligeiramente o estore, que não baixei totalmente pois me fascinava o empedrado da rua e nele ela, de peito ufanado, alta, esbelta, madura, longas pernas levemente arcadas, arco, alvo, flecha, laço, senti-me enlaçado, preso àquela imagem, eu um homem íntegro, seguro, subitamente agarrado pelas circunstâncias, puxei o estore num esticão para que os buraquinhos ao menos mais largos, ela em calças de ganga, a coxa apertada nelas e bem desenhada, a camisa branca imaculada, justa, a cintura estreita, a anca larga, alta e de ombros largos, não sei se já vos disse quão alta era ela, de braços compridos, pernas fortes altissímas e arqueadas, blusa cingida, colarinho aberto, um peito de musa debaixo de uma blusa apertada nos punhos, 

é Junho, não, não é ainda, sou eu que sufoco, que suspiro, que deliro, ela segura o saco, bate a porta do carro, quatro piscas piscam em simultâneo, eu assusto-me, estremeço e, leve como uma corça transpõe o quintal, abre a porta do prédio, some-se num agitar longo dos cabelos e, 

            puf !

        acorda parvalhão, acabou o encanto, o recreio, larga o avental ou o enxovalhas e vai acabar de descascar as batatas, cortar os carrapatos aos pedacitos, corta meio nabo, descasca a cebola, limpa e corta duas cenouras, mete já a água ao lume não te esqueças, vai adiantando, vai acordando, vai temperando, um nadinha de sal, um dente de alho, o caldo de galinha e só depois o fio d’azeite, prepara a varinha mágica, esquece o que viste, foi magia, agora é contigo a alquimia….



quinta-feira, 2 de outubro de 2014

DEZ MILHÕES nesta paróquia de gente inócua ............



DEZ MILHÕES nesta paróquia de gente inócua ...

Tóquio tem, 35 milhões de taoistas produtivos
S. Paulo tolera, 30 milhões de jesuitas e protoplasmas
Paris aloja 12 milhões de fantasmas na ópera
Niterói incha, com meio milhão esperando o brasil, galera

Cabo é um exemplo, 3 milhões e meio de boers e pretinhos, juntinhos
Vancouver, quase um milhão de marinheiros destemidinhos
Plymouth, não foram no Mayflower, trezentos mil protestantinhos
Madrid, nas bancadas, 3,5 milhões de touros e toureiros

Lisboa, 1 milhão de inverosímeis macacos de imitação
dez milhões nesta paróquia
dez milhões de gente inócua

Oslo, fede, meio milhão de inconfundíveis bacalhoeiros
Moscovo maravilha-nos, 12 milhões de autênticos feiticeiros
Sidney superou-se, quatro milhões e meio de degredados
Los Angeles, abensonhados, 13 milhões de anjos inventados

S. Francisco, 7,4 milhões têm à saída e à entrada, Porta Dourada
Estocolmo, 2 milhões de veros democratas, e sem artifícios
Munique, 6 milhões há meio século aguardando a vingança
Telavive, 3 milhões de judeus, exemplares e prenhes de indiferença

Milão, onde 7,5 milhões de submissos ignoram os Sforza
Pequim, 20 milhões na cidade proibida, onde a revolução o não foi
Jacarta, 18 milhões de javaneses pelando-se por traficantes...
Medelim, 3,5 milhões matando-se, mais mentiras ke pasquins

Porto, 2 milhões de arrebentas e milagreiros sem solução
dez milhões nesta paróquia
dez milhões de gente inócua

Varsóvia, saindo agora do gueto, 2 milhões deles no espeto …
Budapeste, apesar de tudo, 3,4 milhões de almas ainda de preto...
Macau, 500 mil potenciais viciados no ópio e no jogo da melancia ...
Phnom Penh, 2 milhões de vivos, mortos há muito por sagrado fogo

Berlim, 5 milhões deles sem redenção plausível...
Hanói,  6 milhões de heróis sem salvação possível
Lisboa, 1 milhão de macacos de imitação, inverosímil
Porto, 2 milhões de arrebentas e milagreiros sem solução

dez milhões nesta paróquia..........
dez milhões de gente inócua..................
dez milhões neste jardim onde plantado estais
dez milhões á beira mar, de cravos e atrasados mentais

Lisboa, 1 milhão de inverosímeis macacos de imitação
Porto, 2 milhões de arrebentas e milagreiros sem solução
dez milhões nesta paróquia..........................

dez milhões de gente inócua............

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

203 - TAMPAS, TAMPINHAS, TAMPÕES E REFLEXÕES...


Repentinamente esbocei um esgar, não porque tivesse sentido sabor acre ou adocicado, ou até azedo, ou picante, nada disso, somente lembrara o que agora me distraía o pensamento e me servira noutras ocasiões para coçar o cerume dos ouvidos, daí o reflexo de nojo, ainda que as minhas orelhas sejam regularmente lavadas, ou o cerume seja meu, o que contudo não obsta a que continue sendo cerume, então ta explicado o assunto, este disparo reflexivo e repentino do nojo, interrogo-me, isto é, deduzo agora sentado à mesa deste café, olhando a chuva caindo violentamente na rua enquanto debico a bica e roo uma tampa que levo aos ouvidos maquinalmente, cuspindo da ponta da língua a impressão duma bola de cerume.

Desta vez entretive-me a mordiscá-la enquanto pensava, todavia os pensamentos de hoje nada têm que ver com os de há trinta quarenta anos em que, atrapalhado com a resposta, D. Sancho II, por cognome o, bolas que me não lembro e inda há pouco tinha isso debaixo da língua, D. Afonso I o Conquistador ou Fundador, D. Sancho I o Povoador, D. Afonso II o Gordo, e bolas bolas que só o D. Sancho II me falta !

Já é azar, ou, como quando 3x9, 3x9, ora deixa lá ver, 9x3, 9x2 dezoito, e roía a tampa enquanto a cabeça me fumegava a todo o vapor até que 9x3 vinte e sete, só o D. Sancho II é que nada e, sem que me apercebesse, roía-a e roía ainda mais como se a resposta surgisse se arrancada à dentada, ou mais tarde tentando compor de cabeça o símbolo químico do azoto e o seu lugar na Tabela Periódica enquanto lembrava como eram lindas as tranças da Lúcia, ou o sorriso rasgado na boca grande da Matilde que me envolvia em celestial doçura sempre que a mim apontava para logo eu disparar matutando no plano inclinado, no fulcro e no eixo, numa alavanca e no mundo mudado, ou na circunferência e no pi se pi igual a 3,14 mais precisamente 3,14159265359 que nestas coisas da matemática só nos fica bem ser exactos, porque pi que é uma constante e jamais uma variável ou borras a escrita toda Alberto, afiançava-me um senhor Amado soltando a fisionomia simpática que trazia sempre afivelada, dando-me uma palmada nas costas afim de incutir confiança pois decerto vira como eu reiteradamente roía e roía aquela tampa, se é que não a metia no ouvido, coçando a lembrança que me não ocorria e tanto parecia sumir-se quão mais tentava lembra-la até que finalmente o “Capelo” !

E pronto estava o D. Sancho composto.

E atrás dessa história do rei beato, pio, piedoso, que em criança já o era e tinha usado um manto, pois era marreco, não querendo o pai que as pessoas descobrissem, por isso lhe pôs um capelo (manto) nas costas longe de adivinhar que por tal viria a receber o cognome de "O Capelo", e dado que nesses tempos não havia aquela coisa do "todos diferentes todos iguais" e a consideração pelos deficientes era nenhuma, o inepto e inábil marreco acabou deposto pelo Papa Inocêncio IV em 1245, passados muitos poucos anos e sob a acusação de «rex innutilis», o que diz muito sobre o personagem que eu agora, resolvido que estava o problema, tentava esquecer mirando aproximando-se a Prof. Escária Santos, a científica, palitando os dentes com uma tampinha encarnadinha, alvitro estar a vê- la no que me parece um túnel em que instalado estaria o laboratório de Stª. Clara, numa aula em que o magnetismo para cá e para lá, e a tampa era esfregada nos cabelos ou nas novéis roupas em nylon e, por via disso, pegando-lhe eu, a medo, e tocando com ela os membros da rã morta na mesa em mármore, as pernas se lhe distendiam num disparo como se o batráquio fosse soltar-se mas o que se soltava por vezes era uma pequena faísca da tampa para a rã, ou para um quadradinho de papel que cortávamos com a minúcia de um ginecologista e que, através da magia do magnetismo fazíamos dançar provando a ligação causa efeito no fenómeno da indução pelo que convinha tratar das unhas não fosse eventualmente alguma madame lamentar -se …

E aqui uma pausa de honra ao Dr. Abel Ribeiro, outro cruzado da causa efeito o qual, atravessando a sala para a frente e para trás limpando as unhas cuidadas com a ponta de uma tampa surripiada a qualquer de nós doutrinava:
+ com + é mais, 
– com – dá mais,
+ com – dá menos,
 - com + dá menos,
sinais iguais dá mais,
sinais diferentes dá menos

e eu erguendo em difícil equilíbrio vertical na ponta dos dedos a esferográfica e a respectiva tampa incapaz de catequizar o aborrecimento, alheio aos mistérios da sinalética e passando horas absorto, tentando adivinhar para que lado a ciência desequilibraria a caneta atento à mão do mestre, e à sua necessidade de desobliterar as unhas gamando as tampas à mão de semear, pelo que entalei nela uma folha do caderno, dobrada, fazendo com um impulso de mão voar o conjunto como resultado da mesmíssima dedução que levara os irmãos Wright a desvendar os mistérios do inimaginável quando ainda nem esferográficas nem tampas se imaginavam, e tão absorto eu ficara que nem dei pela Gertrudes Neto, pequenina e jeitosinha, berrando-me quase aos ouvidos:

- Alberto deixe isso e vá já ao quadro resolver aquele conjunto de fracções !

Ou equações, foi há muito, nem lembro, só me restou levantar-me, apanhar do chão num voo rasante a esferográfica e a respectiva tampa, deixei as asas para o Orville pois com a Gertrudes Neto não se brincava, não desde que conhecera o Roque, mais desejosa do toque de saída que de nos aturar por menos irrequieto que qualquer de nós fosse e, roendo as unhas muitos mas não eu que me ficava pelas tampas das canetas, as mesmas que me levavam da sala em voos inolvidáveis que teriam feito inveja ao mano Wilbur quando subiu aos céu enquanto eu, calmamente, ia tirando o cerume dos ouvidos…

Vous me comprenez, monsieur ? Et vous comprenez, madame?

E por falar nos manos Orville e Wilbur Wright, excelsos mecânicos de bicicletas, rememorei agora quando, com uma tampa arrombava os cadeados das ditas à hora das aulas a que faltava para ir passear nelas, mania que me ficou e levou a que, anos mais tarde, pelo mesmo método arrombasse o fecho da Casal de duas do Torrinhas Lopes, sim esse que morava na Qt. do Sacramento à “ladeira da boa morte”, cousa possível e provavelmente não alheia à sua prematura perda de vida (ou perca, como diria a minha amiga Guida), para num empurrão a colocar a trabalhar e nela me passear (nela na Casal de duas e não na Guida) até à hora do toque de saída ou a gasolina desse sinal de reserva.

Coitado do Lopes já se foi, já há muito que não está entre nós, foi um ar que lhe deu, inda o lembro metendo a tampa da esferográfica nos buracos dos incisivos, que tinha cariados e nem o deixavam assobiar por o ar se lhe escapar literalmente por entre os dentes como a água se nos escapa entre os dedos.

Até que um dia, maravilha das maravilhas, me começaram a chegar tampas atrás de tampas, cada uma com um escritinho, uma mensagem, e do outro lado um náufrago, a Bárbara afogando-se e gritando por mim, uma tampa um grito lancinante, eu desesperado, diria aflito, temendo ser arrastado por ela aos abismos, às negras profundezas dos abismos em que as primas eram vezeiras e useiras em afundar e resgatar-me, e a Bárbara aflita, e cada tampa um SOS, eu temendo aventurar-me naquelas águas revoltas até soçobrar um dia,

um dia inesquecível, o dia em que para segurar o sutiã nos socorremos de uma tampa atravessada na fivelinha como uma tranca, e desde esse dia me ficou um complexo de inabilidade com os sutiãs, desde que partíramos aquele no ímpeto do resgate que nenhum outro cedeu aos meus dedos nem aos meus desejos, e daí esta aversão a fivelinhas e colchetes, este trauma que volta não volta me leva a roer a mordiscar perdido de nervos desde as tampas das canetas e esferográficas ás cabeças dos lápis,

interrogo-me por que carga de água não têm os sutiãs fechos de imanes, fáceis, descomplexados, passe a segunda intenção, facilmente ajustáveis, adaptáveis, e isto deduzo agora sentado à mesa deste café, olhando a chuva caindo violentamente na rua enquanto debico a bica roendo a tampa de uma caneta, que levo aos ouvidos maquinalmente despoletando de forma inata o tal reflexo instintivo de nojo, cuspindo da ponta da língua uma imaginada bola de cerume, e, quem diria, bola que me levou a pensar que, quando rapaz, arrancando os macacos do nariz os rebolava entre os dedos até moldá-los numa esfera bem redondinha e, servindo-me do dedo médio como mola, chutava essa bolinha disparando-a pressionada contra o polegar, para cima de algo ou de alguém, rindo sátiro e mordendo raivosamente uma tampa, bendizendo a hora em que o plástico foi inventado…


P.S. –Após a conclusão do texto fui informado haver já sutiãs com fechos e ajustes de feltro, o que agradeci solenemente, ainda que não me adiante muito, cavado fundo que está o meu trauma e eu, cinquentenário, embora tenha agora o vagar e a paciência que dantes não tinha, deva ser franco e aceite faltar-me oportunidade e vontade para me debruçar criticamente sobre tão prestimoso melhoramento ou invenção. 
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