segunda-feira, 16 de novembro de 2020

669 - DO MACACO NU AO REI VAI NU, CHEGA !*

 


Os últimos tempos vividos, os atropelos à democracia, a parcialidade manifesta, a falta de isenção de decoro e respeito por eleitores, contribuintes, espectadores e Tutti quanti, têm-me conduzido a profícua meditação.

 Verberamos os tempos da outra senhora, digo do antigo regime, mas parece nada termos aprendido com eles, de tal modo que nos encontramos agora bem pior que em 1926, quando um salvador foi chamado para que a pátria não perecesse. Direita e esquerda parecem apostadas em ver qual delas vê pior, seja ao perto seja longe, e a verdade é que volvidos 46 anos de pacata democracia nos encontramos não num beco sem saída mas no fundo de um abismo.

 É curioso que decorridos 46 anos de relativa paz neste país e no mundo não tenhamos conseguido fazer ou fechar um único negócio de modo positivo. Ora nenhuma empresa, nem nenhum país, se aguenta ou sobrevive vivendo sobre negócios ruinosos. Que me diga quem souber qual negócio que Portugal fechou nos últimos 46 anos em que não tenhamos tido muitos milhões de prejuízo. Da TAP á EDP, a Sines a todos os mas a todos os negócios em que nos metemos, BESCL, BPN, etc. etc., em todos enterrámos muitos milhões para nada, simplesmente queimados.

 É difícil gerir tão mal, é difícil fazer pior, não nos temos governado, temo-nos desgovernado e mal de há 46 anos para cá. 46 Anos em que nem novas empresas, nem novas oportunidades surgiram e nada de novo cresce a não ser a falta de transparência e a corrupção, é tempo de dizer basta é tempo de dizer chega.

Já nada é nosso, na ânsia de liquidar os agrários que desprezámos entregámos tudo aos espanhóis que veneramos. O capitalista nacional não presta, mas o capitalista estrangeiro é herói respeitado e venerado. De tal modo errámos que hoje nada é nosso, nenhuma grande empresa pública, nem os seguros, nem a banca, nem as terras, nem as estradas, nem as pontes, nem portos nem aeroportos. Pagamos caros comboios deficitários e vergonhosos em que nem andamos, aviões em que não voamos, pagamos cara uma RTP que não vemos, continuamos pagando a taxa de um universo audiovisual que nos embala, trama, mente e aliena.

 Até quando ? Ainda não CHEGA ?

 Pagamos caros serviços de que não beneficiamos e o avanço tecnológico só serviu para nos complicar a vidinha. Ninguém atende telefones na maioria dos serviços públicos, não respondem aos e-mails, patinhamos no nosso próprio atavismo e erguemo-nos contra quem queira mudar este estado de coisas há muito impossível de manter.

 95% Da banca já não é nossa, nem 97% dos seguros e o investimento, de que precisamos como de pão para a boca, se público ronda há muitos anos o zero absoluto, se falarmos do investimento privado direi ser oportunista, leva-nos os anéis não tardando a levar-nos também os dedos, numa condenável ainda que compreensível atitude predadora pois somos nós quem se põe a jeito....

 Contudo o investimento privado, não deixando de manifestar-se pelas horas de amargura que está passando, foge daqui a sete pés apesar de bradarmos por ele. Para o investidor tudo conta, em especial a existência de um mercado suficiente, estabilidade social e uma fiscalidade aceitável e previsível, eu diria serem estas as coisas que mais contam, pois bem, há anos que não temos nem umas nem outras e, lamentavelmente ninguém se opõe, ninguém contesta, ninguém denuncia este estado de coisas.


 A invés de nós, que somos mestres do improviso e avançamos às cegas e sem rede, ninguém parece reparar no modo organizado quase militar com que a China avança no mundo e em Portugal com o seu modelo de internacionalização. Um modelo exemplar e que mais parece ter saído dos manuais de um gabinete de estratégia militar onde se elaboram há mais de trinta anos as melhores tácticas para se assenhorarem do mundo. Começaram por ficar com as “Lojas do 300” mas hoje Imperam e dominam, enquanto nós regredimos para valores de há duas décadas atrás. 

É este o nosso progresso, a nossa situação, em linguagem económica dir-se-á que registamos há mais de 20 anos um crescimento negativo. Toparam o eufemismo ?? Eu diria mesmo um sólido crescimento negativo. Com eufemismos destes todos os dias nos enganam, e todos os dias governantes e deputados se enganam a eles mesmos.

 Direita e esquerda falharam rotundamente em Portugal. A direita por se ter acovardado após a morte de Sá Carneiro, de quem ficou órfã até hoje, incapaz d’o substituir, d’o compreender, d’o igualar. E assim ou devido a isso a direita se tem demitido de defender os seus valores tradicionais. Sim a direita tem valores e tradição, tinha, há 46 anos que se demitiu de os defender, de se assumir, traindo duma assentada e por duas razões todo o povo português, que não defendeu repito, permitindo a sua alienação, tanto quanto permitiu e até participou na alienação do país e do seu rico património social, económico e cultural.

 Como alguém disse “temos a direita mais estúpida da Europa” penso ter sido Miguel Sousa Tavares, que também acrescentou “termos a esquerda mais estúpida do mundo”. Senão vejamos o que conseguimos em 46 anos em que a esquerda governou ou no mínimo condicionou maioritariamente os caminhos deste país ?? No mínimo zero, nada, no máximo 46 anos perdidos, um buracão na economia, e na sociedade uma montanha de dívidas que nem Maomé quererá olhar quanto mais visitar…

 Nem tudo que é bom se deve à esquerda, nem tudo que é mal se pode atribuir à direita, uma outra são o braço e o fiel da mesma balança, e querer governar com uma esquecendo a outra é erro crasso, até a nossa cara tem duas faces, e todos somos portugueses, todos temos boas ideias, todos temos ideias de merda. Há 46 anos que ideias e ideais de merda vingam no país, o resultado está à vista de todos, é hora de mudar de agulha ou de linha. Querer obter resultados diferentes com a mesma mezinha é teimosia de tolos.

 Sim, somos tolinhos, mas portamo-nos como ricaços apesar dos pelintras e pedintes que somos, perdemos a honra e a vergonha, do macaco nu que éramos em 74 passámos ao rei vai nu de agora, e parece nem termos dado por isso. No entretanto enganam-nos e enganamo-nos com soluções incoerentes, duvidosas, em que ninguém acredita mas às quais todos encolhemos os ombros, desinteressados, porque este país é governado por um ninho de aldrabões sem qualquer pudor ou credibilidade, assessorado por mídias não isentos que espezinham a imparcialidade a cada momento, vivem de subsídios e lambem a mão do dono.

 Da ditadura de Salazar passámos à ditadura dos instalados, os mesmos contra os quais décadas atrás Mao atiçou os Guardas Vermelhos dando início à inenarrável Revolução Cultural (formalmente a Grande Revolução Cultural Proletária), movimento sociopolítico na China a partir de 1966 e que se prolongou até 1976. Movimento que de cultural não teve nada mas de barbárie teve imenso, terá sido essa contudo a única forma possível de fazer a terra mover-se, tal qual dissera teimosamente séculos atrás Galileu Galilei, Já não recordo mas penso que em 1633

 - … “ E no entanto ela move-se “ …

 Derrotado o milenar feudalismo chinês com a revolução de 1950, não tardou que funcionários e homens de mão do partido tomassem conta dos lugares deixados vagos e se instalassem neles de armas, bagagens e mordomias. A China, que sofrera uma convulsão (1946 – 1950), estava de novo manietada, desta feita pelos donos da revolução, que prometiam mais mil anos de feudalismo, ou de imobilismo. Mao nunca teria tido de outro modo que não com a ingenuidade, parvoíce e inocência dos jovens, poder para retirar desses lugares de privilégio os novos instalados, e hoje a China é o que todos sabemos.

 Portugal padeceu até 74 com a oligarquia instalada no poder cuja história conhecemos, mas volvidos 46 anos temos nas mesmas cadeiras gentinha ainda pior. Dantes sofríamos os desagravos de uma cabeça uma sentença, hoje os desatinos de cem cabeças e de cem sentenças. Entre uma e outra opção venha o diabo e escolha. 

Os instalados de hoje contra os instalados de ontem, porém estes comem mais, roubam mais, estragam mais e fazem menos, muito menos. Que fizeram de positivo para além de 46 anos de negócios ruinosos ? Para além da venda do país a pataco ? Para além da traição de alienação de sectores estratégicos ao estrangeiro ? Para além de toda injustiça, incompetência, irresponsabilidade e corrupção ?

 Basta, chega, vou terminar deixando-vos dois desafios para interrogação e meditação;


§  Que levou o fascista Benito Mussolini e o partido Fachio a instituir pela primeira vez no mundo regulamentação de trabalho extraordinariamente detalhada e ao tempo a mais completa e progressista da Europa e do planeta, a qual incluía pela primeira vez as 48 horas de trabalho semanal, oito diárias, e em que contexto e condições o fez ?? **

 

§  Por que foi o Kaiser Guilherme II da Alemanha e último Rei da Prússia, esse imperialista, fascista, direitista e capitalista quem instituiu pela primeira vez na história, na Europa e no mundo, um sistema de previdência e segurança social cuja protecção beneficiou desde então milhões e milhões de trabalhadores, e por quê ?? ***


Meditem.


Boas Festas, Feliz Ano Novo

 



  •  ** A Carta do Trabalho (italiano: Carta del Lavoro) é o documento no qual o Partido Nacional Fascista de Benito Mussolini apresentou as linhas de orientação que deveriam guiar as relações de trabalho na sociedade italiana, nomeadamente entre o patronato, os trabalhadores e o Estado, sendo uma das facetas do modelo político corporativista. A Carta foi promulgada pelo Grande Conselho do Fascismo e divulgada no jornal Lavoro d'Italia em 23 de Abril de 1927. As horas diárias e semanais por algumas categorias (8 e 48) foram estabelecidas pela legislação regular nomeadamente o R.D.L. 19 Março 1923, n. 692. A CDL declarava apenas princípios orientadores como uma Constituição. (NOTA POSTERIOR; O meu obrigado a Ricardo Marchi que ajudou a esclarecer alguns pontos mais duvidosos.)


  • *** Na abertura do Reichstag a 6 de maio de 1890, o Kaiser Guilherme II (Natural de Berlim, 27 de Janeiro de 1859 – falecido em Doorn, 4 de Junho de 1941, foi o último Imperador alemão e Rei da Prússia de 1888 até sua abdicação em 1918 no final da Primeira Guerra Mundial. GVBuilherme II afirmou que o problema que exigia mais atenção era o aumento do projecto sobre a protecção dos trabalhadores.[11] Em 1890, o Reichstag aprovou os Actos de Protecção dos Trabalhadores que melhorou as condições de trabalho, protegeu mulheres e crianças e regulou as relações de trabalho.


sexta-feira, 13 de novembro de 2020

668 - ANJOS, ANJAS, O COMBOIO DOS DOCES ...

                         Pintura, acrilico sobre tela, Fátima Magalhães, 2020 

ANJOS, ANJAS

 

A questão era velha como Freud,

e,  enrolados no linho,

ia sendo desfiada como num fuso,

devagar , devagarinho,

as ideias girando tal qual na roca,

a dialéctica fumegando,

ora parada, ora avançando,

parada num desvio da linha,

uma extensa linha mental

em que a retórica cavava apeadeiros e estações,

onde sinaleiros conduziam o fio à meada,

cuja complexidade constantemente descarrilava.

  

Eram desvios colaterais,

e tu carinha de anjo teimando em bravata de séculos,

os anjos precisamente,

 

Tu :

 

- Quantos anjos na cabeça de um alfinete ?

 

Eu,

tentando trazer-te de volta aos carris,

 

abraçando-te, mimando-te,

a mão subindo as tuas costas,

travada p’las omoplatas salientes,

quais raízes onde dantes as asas,

eu mais que tu, fervendo,

quente, quiescente, aquiescente,

quase no ponto e,

repentinamente,

nova acometida,

 

- Terão os anjos sexo ?

 

Sim ? E qual será o sexo dos anjos ? 

 

O comboio reduzindo a marcha,

a polpa de tomate engrossando,

nós gulosos na avidez do doce,

da compota,

o caramelo ameaçando queimar,


e eu :

 

lembrando a colher de pau da avó Inácia,

 

mexe, mexe !

 

O comboio retomando lentamente a marcha,

devagar , devagarinho,

mexe, mexe !

gozando o travo agridoce a maçã verde.

 

O comboio agora ganhando velocidade,

mais depressa agora !

 

Mais depressa, mais depressa, mais depressa  !

 

Nós entretidos com o caramelo, a compota,

a polpa de tomate derramando,

pouca terra, pouca terra, pouca terra…

 

Não pára !

não páres agoraaaaaaaaaaaaa !!!!!!

mais depressa, mais, mais, mais, maisssssssss !!!

agora mais devagarrrrrrrrrrrrrrrrrr…

 

Oh ! Deus !

não sei se há anjos,

mas há céu,

eu vi o céu,

o céu, o céu, o céu, o céu, o céu …



Pintura, acrilico sobre tela, Fátima Magalhães, 2020


domingo, 1 de novembro de 2020

667 - O RETRATO A SÉPIA By Maria Luísa Baião *

                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Estava amarelecido já, pelo tempo, e julgando as características da película era mais que certo tratar-se de um retrato nas antevésperas da vulgarização do digital. A pose, essa, tinha sido moda meio século atrás, de pé, ar altivo, corpo hirto, a mão descansando nas costas de uma cadeira. 

A pose não enganava ninguém, pois se passara a vida a inventar destinos e grandezas, aquela foto fora tirada pensando na sua exclusiva consagração. Nunca soubera viver sem o mando, como nunca soubera que fazer com ele, o que lhe importara sempre fora sentir o palco como seu, e nele, enquanto viveu, cumpriu o triste papel de personagem enganadora gizando à sua volta um bem conhecido mistério. 

Levara uma vida visceralmente solitária, sempre ficcionando, manobrando, iludindo, intrigando, enganando e mentindo, mas porque em público se calava, a todos fizera julgar ser superiormente inteligente. De quem provavelmente nunca lera um livro, foi de estranhar ver na sua lápide aquela homenagem, como de grande vulto da cultura se tratasse. De sua memória muitos dirão reverências, mas quando descoberto o logro devastador que foi a sua vida, soará o prenúncio de uma queda abissal. Biógrafos registarão o falso charme religioso com que se cobriu e a sua figura será reescrita de forma consensual como a duma personagem nada sensual. 

Causa dos males e dos remédios de que toda a amoralidade é capaz, veremos então surgir o verdadeiro recorte de uma personagem sinistra, narcísica, megalómana, que simplesmente morreu como sempre vivera, cultivando uma fingida discrição, mas, com estudada perfídia arvorando sempre uma doentia arrogância. 

Uns anos mais e tal figura não merecerá mais memórias que D. Sebastião, pois fizera da sua vida uma selva e nela devorara, submetera, achincalhara, todas e todos quantos se lhe atravessaram na frente. A falta de veros amigos provocara-lhe irreversíveis perturbações psicológicas. Lembro ainda quando, com um pretensioso gesto de mão, afastava os conselhos de quantos médicos lhe haviam recomendado internamento psiquiátrico. Amigos de Peniche somente uma ou duas figuras, justamente quem pacientemente lhe escrevia os discursos que com ar grave proferiria como seus. 

 Sempre julgara saber mais que todo o mundo, implacável para com os que lhe estavam abaixo, era contudo irrepreensível no protocolo, adorando cerimoniais, mesuras e vénias aos que superiormente se lhe apresentassem. Passou o último dia na cadeira do poder, que tanto apreciava, certamente vira pela janela o pôr-do-sol, depois partiu, não morreu, apagou-se, deixando no vasto salão um cheiro a velas e a urina. Embora o escondesse de todos, urinava-se então pernas abaixo a toda a hora. Assim se retirara do nosso convívio, podem imaginar maior felicidade ? 

 O destino fizera-nos um favor, a sua morte libertara todos quantos submetera, para esses terminara o desânimo, a apatia. A tragédia / comédia consumara-se e, enquanto o corpo arrefecia, exultante, a populaça emergia de novo, apagando da lembrança toda uma vida sofrida e cabisbaixa, sacudindo o desânimo que durante anos a animara. A alegria de viver retornara lentamente como acontece com a Primavera, estendendo sobre todos um manto de alívio e libertação. 


 Por todo lado soavam estalidos de grilhetas quebrando, ecos de consternação, fulgores de futuros risonhos. Um fardo nos saíra dos ombros, e como quem desce uma montanha, recordo ainda a alegria incontida desse dia. “A vida não é um acaso, é um mistério”, onde foi que eu li isto? Relembro S. Paulo, sim, fora S. Paulo, vai para três mil anos quem dissera acertadamente que: “ Deus escolhera na sua infinita sabedoria e entre a natureza, o que há de mais fraco, para confundir os fortes, e o que havia mais desprovido de saber para confundir os sábios”.

 Estava explicado o retrato, a pose, e essa vida altaneira e obscena confundindo os fortes e ludibriando os fracos. Descoberta a velada e dissimulada ignorância para confundir os sábios. Que mais posso dizer ? Que a vida e os anos haviam feito dessa personagem enigmática, rodeada de falaciosos mistérios, torpes intrigas e cuidados silêncios uma figura ilustre que a morte despira sem pudor nem contemplação desvendando singelamente a sua vera e triste dimensão. 

 Já se avista Marte, chegarei a tempo do seu verão. 

 Ano da Graça de 2895.

 


By Maria Luísa Baião, escrito a 6 de Setembro de ‎2012, inédito, é mais que provável portanto nunca ter sido publicado.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

666 - QUE FUTURO PARA PORTUGAL ?????????? *

 

Portugal, é sabido, embora a maioria da população o não saiba, nasceu de uma particularidade trivial, de uma casualidade aleatória, do respeito pela família, dum mancebo sem a escrita em dia, de uma fogosa jovem ninfomaníaca e de um duque que se lembrou de visitar a tia.

 Um conjunto de factos, aparentemente aleatórios e sem a mínima importância conjugaram-se contudo para dar origem a este país tão caricato hoje quanto o era há séculos, quanto o era p’la data do seu nascimento.

 Por volta do ano da graça de 1086 o rei da Galécia, Galiza, D. Afonso VI, que igualmente imperava sobre os reinos de Castela e Leão, encontrava-se incapaz de deter o avanço mouro para norte, o qual ameaçava submergir os seus reinos. Devido a este facto o rei optou por engolir o orgulho e pedir ajuda aos príncipes da Gália, os quais lho não negaram, tendo-lhe enviado em socorro o duque Eudo, com tropas suficientes e frescas. Tropas que uma vez cumprida a missão de que haviam sido incumbidas, travar o avanço mourisco, encetaram alegremente o regresso a casa, à Gália, hoje França.

 Porém, e já que ali estava, cá estava, na Galécia, Galiza, lembrou-se o duque ter por ali, recolhida algures num mosteiro, uma velha tia a quem seria de bom tom fazer uma visitinha. E já que ali estava, já que estava agachado, lembram-se da anedota dos ladrões e dos polícias passando de carro na noite escura fazendo a ronda  ?

 Isso mesmo, os ladrões esconderam-se, agacharam-se atrás dum muro até que o carro da polícia passasse e deixasse de representar qualquer perigo. Então, e já que estavam agachados, um deles terá aproveitado e,

cagou.

 Idem para o jovem duque Eudo, que, já que ali estava resolveu visitar a velha tia em recolhimento no tal mosteiro perdido algures nas faldas duma serra da Galécia. 

Com o duque tinham vindo dois nobres, dois primos, a quem a ideia de se demorarem por estas bandas não agradava. Nem lhes agradava o sossego nem o tempo perdido após tão boa refrega contra os mouros. Eram cavaleiros, eram homens de acção, eram jovens de sangue na guelra, Raymond et Henri assim se chamavam os nobres cavaleiros.

 Raimundo e Henrique, que malgrado os bocejos caíram nas graças de Afonso VI que logo pensou numa forma dos prender ali de modo a tê-los sempre à mão e na mão, caso os infiéis e atrevidos mouros se lembrassem de novas investidas.

 Após muitas voltas à cabeça e tendo tido tempo para os observar, logrou encontrar meio e modo de os prender à gleba, tendo-lhes dado o comando de recuadas terras, longínquas terras que ele mesmo raramente ou nunca visitava, sabendo apenas serem elas férteis quanto baste. Assim foi que calhou a Raimundo uma parte da Galécia, Galiza e a Henrique o condado de Portucale, Portugal.

 E para os contentar nas noites frias da Galécia e de Portucale o poderoso senhor ofereceu-lhes igualmente a mão de duas belas filhas que mantivera até aí a bom recato, D. Urraca, filha primogénita, herdeira e única legítima, de oito anos, para Raimundo visto serem os dois fortes pesados e corpulentos. D. Terexa, treze aninhos, para Henrique, visto serem ambos espigadotes, magros, fininhos e qualquer deles um molhe de músculos e de nervos.

 Sabe-se que gordura é formosura, mas também que  fartura não convida a brincadeiras na cama, peripécias na cama é coisa mais  para magrinhos, ou musculados, gente de nervos à flor da pele, ginastas, ou pelo menos gente com corpos flexíveis, acrobatas ou malabaristas.

 Mas deve ter sido assim que nasceu Afonso, filho de Henrique. Portugal deve portanto o seu nascimento a uma breve visitinha que o duque Eudo fez à tia antes de rumar à Gália, a França. Um acontecimento tão trivial tomou todavia as impensáveis proporções que hoje lhe conhecemos, o facto de D. Teresa a “Galga” como lhe chamavam, ser ninfomaníaca é outra trivialidade banal que contudo e uma vez viúva a oporia ao filho Afonso Henriques, já que este aceitava mal ou aceitou mal que a mãe, saltando de cama em cama como cadela galga no cio, andasse nas bocas do mundo e nas bocas e camas de todos os nobres do então Condado Portucalense segundo rezariam as más línguas da época.

 Portugal deve assim o seu peculiar nascimento a uma série de acontecimentos fortuitos tecidos pelo destino. O seu nascimento não obedeceu a nenhum plano, a nenhuma estratégia, a nenhuma visão de futuro. Portugal nasceu do sexo descontrolado de dois fogosos jovens, Henri e Terexa, a que se juntou a qualidade ou característica ninfomaníaca da “Galga”, levando para calar os zum zuns correntes no paço ao sabido e conhecido confronto e embate extremo entre mãe e filho, onde o pudor, a vergonha e a honra se encontravam de permeio.

 Tal e qual, foi mesmo assim,  atabalhoadamente e devido a mexericos que por casualidade ou casualmente Portugal nasceu, e quanto ao futuro podemos dizer estarmos nas mesmas circunstâncias, sem plano, sem estratégia, sem um pensamento ou visão de futuro e ao sabor dos fortuitos acontecimentos do mundo. Pau que nasce torto...

  Até quando ?

 Até quando seremos capazes de manter a tesão ? A independência ? Perdida que está há muito a fogosidade, a coesão, a solidariedade, a união que fez a força e a diferença durante quase 900 anos ?

 Até quando ?

Não estaremos nós, a nação, em processo acelerado de decadência, de deliquescência ? Será isto ainda um país independente ? Um país ?

Oremos… Porque isto já não é um país, transformou-se num absurdo... 



quarta-feira, 28 de outubro de 2020

665 - OS HOMENS QUE NÃO OS TÊM... Texto inédito, by Maria Luísa Baião *

           

Estou em mudanças, deixei há poucos dias a minha alegre casinha, cá me arranjei para ocupar uma outra, bem bonita e a desejo, com comodidades que a que deixei não tinha mas que a minha idade já não dispensava.

Entre outras vantagens dispõe de gás canalizado, o que o meu marido acha óptimo, (queixava-se que as botijas pareciam aumentar de peso a cada ano que passava), é um aprazível rés-do-chão rodeado por bonito jardim, e fica localizado pertinho da casa nova que o meu filho irá estrear, o que, não deixando remorsos à alegria de o ver partir, minimiza a dor da separação.

Por este motivo ando ainda com tudo em bolandas, de tal modo que até há poucos dias e ao certo só sabia onde tinha a escova dos dentes e pouco mais, quase tudo o resto andava embalado numa centena de caixas de cartão aguardando vez de arrumação, para o que me sobrava vontade mas não me chegava o tempo.

Finalmente tenho espaço para suprir a velha necessidade de um escritório/biblioteca à mão, pois todas sabemos quanto é difícil trabalhar sem condições e na velha casa os livros já se amontoavam por tudo que era sítio, visto ambos sermos leitores compulsivos, mas sobretudo porque o meu marido os devora mais rapidamente que a um petisco numa qualquer cervejaria.

Até ocuparem o seu lugar no novo espaço que lhes será dedicado, muitos deles repousam ainda nas ditas caixas de cartão, razão porque não recordo agora se é de Camus, Sartre, ou qualquer outro um título que me acudiu há dias à memória; “ Os homens e os outros”, a propósito do ter carácter ou da falta dele, numa questão levantada no seio de um grupo de amigos e num alegre convívio.

Sou por hábito e formação directa e frontal, assumo as minhas atitudes que defendo com tanta garra e convicção quanto estou disposta a retractar-me e corrigir-me quando erro. Engano-me algumas vezes e outras tantas sou assaltada por dúvidas, problema que procuro resolver na hora ou logo que possível. A dar o dito por não dito é que não me apanham.

Nessa roda de amigos lancei propositadamente para o ar uma rasteira que sabia de antemão só ser aceite por parvos, na absoluta certeza de não haver ali nenhum, coisa em que não me enganei. Mas alguém mordeu o isco e se denunciou, e denunciou-se não pela posição tomada, (na rasteira eu sabia que ninguém cairia), mas pelo modo como colocou a questão, toda ela solidamente alicerçada numa diplomática falta de bom senso, de diplomacia, de verticalidade e de coerência.

Respeito ideias contrárias, honram-me opositores à altura, crentes, honestos e assumidos na defesa intransigente daquilo em que acreditam, mas não vejo com os mesmos olhos aprendizes de feiticeiro, marionetes a mando de cadáveres adiados que pensam fugir a uma morte anunciada porque ouviram ao longe tocar as trombetas das suas hostes. Quando os sinos tocam a finados os cães fogem assustados porque desconhecem não ser por eles que dobram.

Os “homens”, especialmente os condenados, têm obrigação de saber por quem vão eles repicar e quer se ouça ou não o clamor das suas hostes, em duas coisas deveriam pensar,

- primeira; se elas chegam a tempo ou dispostas a salvá-los,

- segunda; se não seria boa opção fazer os mínimos estragos possíveis de modo a morrer com alguma dignidade e com menos pecados na consciência.

Qualquer condenado que assim proceda não ganhará certamente um óscar, mas morrerá de pé, num combate frente a frente e nunca sujeito às indignidades que lhe mancharão a memória e jamais lhe apagarão as nódoas que sobre si derramou.

Quanto ao meu amigo que tão infantilmente se denunciou, não me conforma que se tenha desculpado, traições não se perdoam nem se esquecem, saberá certamente que terá que viver o resto dos seus dias com o anátema de quem não procedeu correctamente. Há culpas que nem o mais compreensivo confessor redime, são culpas que nem terá coragem de confessar.

Quanto aos restantes amigos dessa grande roda que fizemos não me desiludiram, vincaram opiniões que defenderam com galhardia, nem outra coisa deles seria de esperar. Prevaleceu sobretudo entre todos e no final a concordância.

Saí satisfeita do convívio. O que me aborrece mesmo é precisar de fósforos e verificar que há homens que não os têm...

* By Maria Luísa Baião, texto inédito, escrito em 14-2-2001, não existe a certeza quanto ao facto de ter ou não sido publicado mas, a tê-lo sido, teria acontecido no Diário do Sul, coluna Kota de Mulher por esses dias ou semanas.  


sexta-feira, 9 de outubro de 2020

664 - O PILOTO TOP GUN E O ANJO BRANCO * ...


Ficara de borco sem dar acordo de si, o sangue empapando a terra numa mancha que alastrava demasiado rapidamente. Por isso lépido lhe acudi, esquecendo o folclore à nossa volta, o metralhar constante, os zumbidos sobre a cabeça, a terra pelo ar, tudo p’lo ar, o zunir da queda das granadas de morteiro, vertiginosa e fatal, a gritaria, o medo, os suores frios, a coragem, os relampejantes olhares e o flash de palavras de ordem trocadas, os sinais, os gestos, a rápida análise da situação e, quando me foi dado fogo de cobertura e protecção acerquei-me dele, virei-o e acudi-lhe.

 Misturavam-se o sangue golfando, a terra vermelha, as tripas, sem que ali naquele lugar e momento algo ou alguém conseguisse garroteá-lo, vedá-lo, pará-lo. Era, seria, uma questão de minutos. Puxei-o para mim, descansei-lhe a cabeça no colo, afaguei-lhe, limpei-lhe e ajeitei-lhe os cabelos enquanto lhe dirigia palavras ternas, calmamente esperançado que ele me ouvisse e que, se acordasse, não desse pela contradição entre o caos em nosso redor e a doçura com que lhe falava.

 Melhor talvez fosse já nem acordar mesmo, mas quem adivinha o minuto seguinte no meio duma confusão em que tudo muda a cada instante ? Se acordasse ter-se-ia apercebido não lhe restar qualquer hipótese, nem muito tempo. Apenas um istmo no lugar do rim direito o prendia ao hemisfério sul, o norte derretia-se a cada segundo, não tardaria e o degelo completar-se-ia, ele gelaria, eu recolheria as chapas e providenciaria um saco preto, grande, fecho éclair de cima a baixo. Um héli o levaria dali, nos levaria dali se sobrasse algum de nós.

 Tínhamos pedido apoio aéreo e um hélicanhão, mas nem os Fiat’s com napalm nem o héli, e nós cada vez mais apertados, nós cada vez menos. Quem vai à guerra dá e leva e naquele dia estávamos levando uma coça, uma sova, o Gouveia não era o único em maus lençóis…

 

- Meu tenente não me abandone, sei estar de abalada, chegou a minha vez, a minha hora, já sinto o frio tomando conta de mim e não me sinto, da cintura para baixo não sinto nada, desta não escapo.

 

Ajeitei-o melhor no meu regaço e apertei o braço em volta dos seus ombros.

 

- Diga à minha mãe que a amo muito, toda a vida amei, e à Esmeralda que sempre foi o amor da minha vida, que a amei tanto quanto pude, enquanto pude, e que vão para ela os meus últimos pensamentos, é uma boa moça e corajosa, meu tenente zele por ela, faça por ela, prometa-me que tudo fará por ela, que fará por ela o impossível.

 

Não tive tempo para lhe prometer nada, nem ele me deu tempo. Nem eu podia prometer-lhe fosse o que fosse. Nem ele sabia ter eu aprazado casamento com a Luisinha. Nem as mulheres se recomendam ou trocam como uma peça da farda, uma fita de metralhadora, uma faca, uma pistola, contudo o Gouveia nem foi dos que mais delirou. Era minha ordenança desde que chegáramos ao Cunene e nunca lhe ouvira uma palavra fora dos carris. Fechei-lhe os olhos e perdoei-o. Lamentei-o mais que o perdoei.   

 O apoio aéreo chegou finalmente para nos tirar de apuros, o hélicanhão chegaria alguns minutos depois mas por nada disto eu daria. A minha vez chegara também, todavia teria mais sorte que o Gouveia, o héli de evacuação chegara a tempo de me levar dali para fora e o Senhor não quisera que eu deixasse de me sentir. Voei dali para a salvação pilotado por um Top Gun e cuidado por um anjo branco que de imediato reconheci mas que, no estado em que me encontrava me neguei a conhecer.

 

………………  Voltei a mim com o grito imperativo e aflito do cabo boticas para o resto do grupo :

 - Deixem-no comigo ! Dêem-me espaço antes que ele se vá ! Alguém chame já um helicóptero caralho !

 Retomei a consciência e senti frios tremores assaltando-me naquele deserto quente e seco a que, na galhofa chamávamos o SPA da Namíbia e, ao mesmo tempo que a mão do boticas apertou a minha, senti a progressão de um estranho calor tomando-me da cabeça aos pés e ele, injectando-me confiança num sorriso,

 - Não temas, é a morfina, acalma-te, respira devagar e não te esforces, não te mexas, já vem um héli a caminho.

 Forcei-me a crer nas suas palavras e anui ante a certeza que aquele sorriso transmontano injectava em mim, de olhos fixos no ar revi os últimos momentos, qualquer coisa atirando-me contra o chão, desequilibrando-me como se tivesse levado um tremendo coice na costas, provocado pela pressão do ar mor a explosão, coice desembestado, atirando-me ao chão, enquanto um fio de sangue surgia por debaixo do cabelo empastando-o, escorrendo pela nuca e desaparecendo por dentro da camisa. À mistura um repetitivo e assustador matraquear vindo de sul, a barragem de morteiros caindo aleatoriamente à nossa volta, as nuvens de areia erguendo-se do chão, a gritaria deles, a nossa, atrás de mim alguém em desespero, o Gouveia acabara de se ir desta para melhor a situação deteriorava-se e o inimigo encurralava-nos a cada minuto que passava...

 - Eu já vos fodo todos  filhos da puta pretos dum cabrão !

 E num segundo todos calados, silêncio, escuridão, depois o frio glacial, os dentes batendo incapaz de os suster, o vozeirão do boticas, o carinho quente da sua mão apertando a minha, a esperança galgando-me as veias numa calorina anormal e ruborizante e finalmente o som de um héli, a boca tragando o pó feito lama nos lábios em que derramaram os cantis.

 - Baixem-se ! Alguém ajude aqui ! Atenção, todos ao mesmo tempo, às três para cima da maca ! E vai um e vão dois e vão três ! Agora ! Só vêm os da maca os outros baixem-se e dêem-nos cobertura !

 Recordo o balançar célere do levantar numa nuvem de pó, as mãos dela descobrindo-me o braço, tacteando-o, um frasco pendurado por cima pingando apressado, os olhos fixos em mim, ouvido no meu externo, escutando-me, a pressão de um dedo na carótida enquanto lia o relógio pendente do peito, o suor escorrendo-lhe em bagas, os cabelos em desalinho e gritando ao piloto

 - A direito a razar as árvores ou perdemo-lo meu Deus !

 Duas mãos segurando as minhas numa prece, lábios mordendo-se e murmurando em simultâneo uma ladainha que nunca entendi, quis erguer-me para beijar-lhe a testa e acordei longe dali num silêncio de hospital, no tecto branco ventoinhas remexendo o ar como pás de helicóptero em câmara lenta, uma touca branca debruçando-se sobre mim, uma mão invadindo-me as virilhas, a febre lida num termómetro prateado, um sorriso,

 - baixou,

três sacudidelas antes de pousado no pano bordado da mesinha de cabeceira, um jarro de água e uma jarra com rosas do deserto, linho, lençóis de linho branco * ………………..

 

O doce, terno, eficiente e competente anjo branco cujas mãos me ampararam era nada mais que uma das nossas primeiras enfermeiras paraquedistas, a Esmeralda, sim essa mesmo, a noiva do Gouveia, por isso me calei, por isso fingi nem a ter reconhecido, por isso me rebelei contra mim mesmo e sofri, decerto não seria eu a dar-lhe tão triste notícia. Eu não. Eu nunca.

 Anos mais tarde e com tempo vim a contar-lhe tudo pormenorizadamente, tim tim por tim tim, e naturalmente acabámos os dois chorando, mão na mão. Eu já casado havia um ror de anos com a Luisinha, ela a Esmeralda acabadinha de sair de um casamento que os muitos traumas de guerra que havia sofrido condenaram ao fracasso.

  Durante uns tempos vimo-nos um ao outro, casualmente, acidentalmente. Somente de anos-luz a anos-luz, outras vezes, calhando, pura sorte, casualmente víamo-nos pelos cafés, encontrávamo-nos aí pelos cafés… (ela estava sempre com sujeitos decentes) e quando nos fitávamos nos olhos, bem lá no fundo dos olhos, eu que sou homem nascido para fazer as coisas mais heróicas da vida virava a cabeça para o lado e dizia:

 

- Rapaz, traz-me um café…

                                                                                            Há mais amargura nisto que em toda a História das Guerras.


                    NOTA: Em itálico extractos do texto nº  221 - CONTRATEMPO EM XANGONGO .... 

                    e do poema “Domingo”, de Manuel da Fonseca.     

                    * https://mentcapto.blogspot.com/2015/01/221-contratempo-em-xangongo.html

                   https://mentcapto.blogspot.com/2019/07/610-2-esmeraldas-2-aneis-esmeralda.html