sábado, 7 de junho de 2014

192 - MAGDALENA ...................................................


Carregava sobre os ombros frágeis trinta e três anos de constrangimentos. Nem sonhar lhe era permitido, nem olhar com atenção, ou demoradamente, nem devaneios, que se percebidos seriam severamente castigados.

Restava-lhe, como a tantas outras, dedicar-se à família, ou ao marido se o tivesse, senão esperar que Deus Pai lhe concedesse a graça de a entregar a um, e a felicidade de ser bem aceite, bem tratada e considerada, capitulo em que já nem se atrevia a pedir mais que a conta esperada. Até lá ia-se entregando com espírito de missão a uma vida recatada, apagada, dedicada aos afazeres domésticos, à prática do culto, às sementeiras, à fiação e ao tão honrado quão odiado mister da submissão.

Da primeira vez que o viu amassava figulino para acrescento da casa patriarcal, e enquanto os pés lhe dançavam no barro escorregadio ousou levantar a vista numa curiosidade disfarçada, mirando de alto a baixo aquele carpinteiro de sandálias e tez morena que, de modos calmos, discutia com seu pai a altura das aduelas e a medida de uma janela.

O porte erecto jogou a favor dele, e uma túnica limpa caindo a direito testemunhava-lhe o ar saudável e acrescentava-lhe a altura. Uma barba aparada rematou a imagem que nas noites seguintes havia de atormentá-la em sonhos e pesadelos que nem diferenciava já, pois o peito lhe batia em ambos e em ambos era obrigada a abafar os suspiros que da alma se soltavam.

Tudo almejava ainda olvidar quando voltou a vê-lo. Desta vez conduzindo uma carroça e vários molhes de caniço-colmo que seu pai lhe encomendara para cobrir o telhado da nova habitação tendo notado, com um estremeção que a pregou ao chão quando mais dali queria fugir, que também ele reparara nela, e ousou até pensar se a demorada conversa entre tão simpático carpinteiro e seu pai a envolveria, pois estava em idade de casar. Seu pai nada lhe dissera sobre o abordado com o dedicado carpinteiro e ela nada se atreveu a perguntar-lhe, confiando que estaria ciente da necessidade em casar uma filha que tardava em sair-lhe de casa. Seria ele ainda solteiro ?

Este pressuposto, que nunca lhe ocorrera, deixava-a agora prostrada roubando-lhe o sono das noites estreladas em cujo firmamento o julgava caminhando a seu lado, não à sua frente, e isso lhe bastava para que os sentidos, em alerta, avivassem um instinto maternal que julgara abafado, enquanto se sentia convocada pela natureza para um festim e os seios, arfando aflitos, lhe aumentavam de volume e lhe subiam no peito, queimando-a e afrontando-a, num martírio a que não sabia pôr fim.

De verdade nem queria dar fim a essa inquietação, custava-lhe, mas entregava-se-lhe em deliquescente meditação grande parte das noites, só parando quando, vencida pelo mesmo cansaço que lhe acentuava a urgência do corpo, ditando-lhe que devia há muitos anos ter sido esposa e mãe, e que a idade, avançando inexoravelmente sem que uma qualquer solução lhe cumprisse o destino, tornando-lho mais difícil quanto mais tardiamente consumado, ditava-lhe uma sensação de perdição que procurava abafar na oração, lugar e modo de buscar as respostas que a alma lhe negava. No próximo domingo iria ao templo, devota, fazer as suas costumeiras libações e orações.

Acabara-as nesse domingo quando se deparou com o jovial carpinteiro, e as faces ruborizaram-se-lhe. Zangado, ele expulsava do templo com palavras rudes e gestos expressivos os vendilhões e sentiu-se exortado por grande parte das gentes que assistiam à cena, que o aplaudiram com uma veemência impossível de não ser percebida por ele. No rescaldo dos distúrbios ficou-lhe um convite, por ele dirigido à populaça para que o seguissem e lhe ouvissem a “palavra“ do Deus Pai e fossem seguidos os Seus ensinamentos. Ela aceitou, prometendo voltar, e essa semana de impaciência não se lhe aproveitou nem a deixou dormir sossegada.

Foi fácil segui-lo e mais fácil ainda divulgar-lhe a palavra. Sentiu-se nascida para aquilo e pela primeira vez julgou ter encontrado um sentido para a vida.

A admiração por aquele homem depressa passaria de empatia a arrebatamento, e deste a platónica paixão foi um passo bem curtinho.

Com ele difundiu a palavra e tomou a luta contra prepotências e desmandos, pelo direito à dignidade do homem, feito à semelhança e imagem de Deus e, como ele, foi perseguida e expulsa, muitas vezes difamada e apedrejada, tendo não raro que fugir para se manter viva.

Valia-lhe nessas ocasiões o conforto da atenção dele, o seu carinho desinteressado, até que, num dia mais amargo se pôde recolher no seu abraço e sentiu que também ele recuperava forças se acolhido entre os seus braços.

A palavra foi-lhes o móbil enquanto não se entenderam com um simples olhar, depois foi o olhar abrindo-lhes todos os caminhos e ditando todos os limites que, paulatinamente, se entretiveram ultrapassando.

Mais que a palavra movia-os agora a fé e o amor, e furiosamente expiaram na carne os pecados dos homens, para no fim de cada dia e na hora do balanço, sempre encontrarem motivo e tempo para se recomporem das injustiças do mundo e se reconfortarem das iniquidades sofridas, para se amarem perdidamente.

- “Amai-vos e multiplicai-vos” pregava a palavra do Pai.

E amaram-se 
apaixonada, desalmada, frenetica e compulsivamente, tendo a fé e a paixão como vício, nela encontraram linimento à incompreensão dos homens de alma impura, impenetrável, dura.

A vida, que antes tivera parada, acossava-a agora, e a palavra e a fuga tornaram-se duas faces de uma mesma moeda. A necessidade de dádiva tornara-se-lhes mais forte que a de entrega. 

Aprenderiam que o coração não era lugar onde se pudesse viver, e a precariedade da vida não lhes permitiu o “multiplicai-vos”.

Ele agoniou entre ladrões, traído, ela encetou uma fuga épica e migrou para Marselha onde expiou, até ao impossível, tanto amor vivido e que lhe foi negado.

Exemplo de dignidade impossível de esquecer, todas as preces no viático imploraram que a tornassem santa.

E assim se fez.


quarta-feira, 4 de junho de 2014

191 - FOI POR ELA , FOI POR ISSO ...…


Ela sorriu, com a cara entalada entre as mãos puxou-me o queixo para si, afivelando um sorriso deitou-me uma careta, mordeu-se torcendo a língua para o canto da boca e, espremendo entre os polegares a hedionda borbulha, fez que entre as unhas rebentasse primeiro e saísse depois o sinal e o pus cujo inchaço me desfeava a cara e me cobria de dores insuportáveis mal ali tocasse.

Debaixo da dor lancinante berrei e fugi com a cabeça, mas o mal já estava feito e eu livre do problema. Havia que desinfectar e aguardar até que tudo se recompusesse.

Ela sorria e mostrava-me os polegares infectos onde o pus se derramava festejando o sucesso da operação e dando fim ao episódio.

- Lindo ! Estás lindo outra vez !

E espetou-me um beijo na bochecha ainda doída.

E foi assim.

E foi por isso que a tomei pela cintura, a puxei a mim e, com a cara ainda vertendo um fiozinho de sangue a beijei em sinal de gratidão e reconhecimento.

Lembro-me que ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Há dias foi a vez dela, e eu a ver.

Sentada na cadeira da dentista, nem a boca totalmente aberta escondia o inchaço que lhe ia na face. O abcesso era dos grandes, e a médica daquele novo consultório, bem equipado, RX e tudo, de bata impecavelmente branca e cheia de pergaminhos, prometia segurança e dava-nos confiança.

O prédio tinha sido totalmente recuperado e renovado, dantes uma padaria e o respectivo forno de lenha, e nós agora precisamente onde há muito mais de trinta anos comprávamos pãezinhos com chouriço acabadinhos de fazer para acalmar-mos as ressacas.

Ali, onde agora a recepcionista, dantes o balcão, uma velha balança onde o pão nunca era pesado, e uma caixa de madeira vidrada  mostrando os bolos da padaria. Por detrás o quintal onde se amontoavam os molhos de lenha que alimentavam a fornalha.

Aqui, nesta sala, exactamente no lugar onde instalaram a moderna cadeira da dentista, dantes a casa do forno e onde se acumulavam os grandes tabuleiros em que arrefecia o pão com chouriço que tão bem cheirava.

Lembro-me bem, era inverno, quase três da tarde. O forno ainda quente da azáfama dessa manhã, ela atendera há minutos a última freguesa e procurou-me junto do quentinho onde eu reconfortava as mãos geladas.

Abraçou-me.
Abraçámo-nos e enrolou-se-me o sentimento.
Enrolámo-nos.

Precisamente nesse lugar, hoje, muito mais de trinta anos depois, ela voltava a ter medo e a tremer.

Queria muito, mas assustava-a o momento.

A médica soletrava-lhe palavras de calma e conforto enquanto brandia na mão a ferramenta com que havia de extrair-lhe o queixal.

Retoiçámos.

Sentiu-se acalmada, confiante, medrosa mas confiante, a mão no ombro transmitiu-lhe calma e paz suficientes para esboçar um sorriso amarelo.

Como que espantada, num instante abriu muito a boca e soltou um gritinho.

Já estava.

Eu afastei-me um pouco, e sim, era verdade o que diziam.
Doía um bocadinho mas depois era bom.
Já se sentia bem melhor.
Levantou-se e ajeitou a blusa e a saia.
E nem fizera assim tanto sangue.

Orgulhosa, a médica exibia um grande queixal na ponta do alicate cromado, sorria, e acalmou-a :

- Pronto, já está, afinal não custou nada pois não ?
  Era mais medo que outra coisa querida !

Lembro-me que depois daquilo ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Alguém alvitrou serem quase três da manhã e dentro de pouco tempo podermos ia à padaria dos Canaviais comprar uns pãezinhos com chouriço, estávamos ali desde as cinco da tarde e já nem havia nada que se comesse nem pachorra p’ra continuar a ouvir as histórias da vida do Aurélio.

- Foi por ela, foi por isso que sempre estive apaixonado por ela, por tudo isso, desde o primeiro dia, ainda me lembro, ela tinha estreado umas botas de camurça que calçava com umas meias brancas e …

Levantámo-nos num repente, montámos as motas e num excessivo alarido rumámos todos aos Canaviais. Todos menos o Aurélio que, babando-se, chorava que nem um menino, revivendo a história que acabara de nos contar…




sexta-feira, 30 de maio de 2014

190 - CHAMAVA-SE MIMI * ......................................


Chamava-se Mimi e cantava só para ele, 
                  E ele chorava... Mesmo em festas, fosse qual fosse a festa chorava ...

E isso ainda hoje muito lhe pesa na consciência em que ancora fundo um complexo de que acredita jamais livrar-se. No entanto desde há muitos anos que Mimi lhe inflava o ego. Tempos idos afagara-o dando-lhe a conhecer a aura de guerreiro invencível que, de quando em vez inda hoje enverga.

Fora criado em ambiente de floreados e jogos florentinos, dominava como ninguém o comando da Play Station e ganhara a admiração de muitos, em especial da recatada Mimi, a quem dedicara todas as suas vitórias. De sua natureza era contudo trapalhão, precipitado, impaciente, desorganizado, o que, mais vezes que desejaria, o teria exposto ao ridículo. Dotado de tão deploráveis atributos não nos admira que Mimi paulatinamente dele se tivesse afastado e, tanto mais quanto mais ele, naufragando, se colava a ela numa ânsia desmedida de se salvar de si mesmo.

Renegado, agarrou-se às hostes de apaniguados e admiradores, gizou um esquema manhoso, coisa nada rara nele, e atirou-se a luta catártica, mergulhando nela despojando-se de tudo, tendo sido durante essa luta purificadora que, interpretando a seu modo a sabedoria de um xamã, fez-se amarrar num totem e, em sacrifício redentor e num apelo lancinante, implorou a ablação dos testículos, certo de serem eles os culpados pelas execráveis palavras e ignóbil atitude com que Mimi o afastara :

- Nem foder sabes e tudo te atrapalha…

Não quiseram os deuses que fosse chegada a sua hora, tendo-lhe sido concedido um período sabático que o rapaz aproveitou com surpreendente empenho e a que se entregaria com denodo.

O moço havia de provar a Mimi, e a todos, ser mais que um desgraçado, para esquecê-la, afogou-se em formações esotéricas, creditou-se doutras aptidões e, c’o desemprego a subir, sem competências que lhe pudessem valer, encaminhou-se p’rá única saída restante e com desesperada paixão e inusitado desempenho abraçou uma carreira politica. Não chegara Hitler a condutor de povos por lhe terem negado entrada em belas artes ? Quem quer e acredita sempre alcança, contassem com ele que estava aí para o provar.

Liderando grupo vasto de acólitos pouco escrupulosos logrou guindar-se a lugar cimeiro, e, num reino de cegos e zarolhos onde ele, com dois olhos verdadeiros, facilmente construiu uma alternativa tecida de fio a pavio em premissas discutíveis, pouco elaboradas e ainda menos aprofundadas que os exames da lusófona, lugar por excelência do seu guia espiritual e de um certo Dux de má nome e pior sina, mas também de outros forçados e doutorados que tais…

Solenemente empenhado em mostrar à Mimi que seria capaz nem ouviu o pai, que muitas vezes lhe sussurrou:

- Toma tacto pá, isto não tem conserto.

Conselhos que não ouviu, tantas vezes quantas a paternal figura lhe tentara incutir juízo. Todavia o que tem que ser tem muita força e ei-lo aí, ante nós, alardeando os bíceps, feito alter-ego e patrono da ignorância que sempre governou o reino. E então foram anos foram dias foram horas de assumpção e desespero, mas conseguiu.

Neste ponto da narrativa terei que dar o braço a torcer porque passou a merecer o meu respeito, não a minha gratidão, mas o meu respeito. Podia ter olhado para o pântano de um pedestal, poderia ter-nos imaginado a todos de tanga com altivez, mas não o fez. Creio que terá sofrido uma desilusão, creio que terá pensado serem favas contadas e afinal saiu-lhe Braga por um canudo, mas não fugiu.

Outros, arvorados de maiores pergaminhos o haviam já feito. **

Não ele, não fugiu, ao invés arregaçou as mangas e lançou-se a fazer o que ninguém ousara desde o Infante D. Henrique o tal da ínclita geração, vocês lembram-se ? Qual D. Sebastião investiu, avançou contra a moirama à espadanada, apresentou um programa, apresentou-se a eleições, e ganhas estas apresentou-se ante nós qual João sem Medo.

Traçou um rumo e uma meta, e, atabalhoadamente, cegamente (como era seu mister fazer antes de implorar a ablação, lembras-te?), avançou aos zigues zagues, aos avanços e recuos, pisando e empurrando, prometendo e abjurando, dando num dia tirando no outro, aldrabando e confundindo, e de tal modo levou a peito o seu papel que acabou acreditando nas mentiras que paria, nas vitórias que não tinha e nas guerras que perdia.

Em terra de cegos quem tem olho é rei, e passou aos óculos, ao ar grave na Tv, aos fatos de bom corte, a limusina e três choferes. Sofreu, torceu-se e contorceu-se com as dores de malabarismos sem igual, mas aguentou-se e, num dia em que todos o davam por perdido e a Europa deu meia volta, ei-lo de novo, já não vencido e, para nosso horror, sem ter quem se lhe igualasse !!

E vencedor !!

No meio do balanço a que votava o mundo o seu saldo nele nem era dos piores, beneficiou da onda negra, do vómito negro da gárgula europeia cujo hausto fétido lhe disfarçou as nódoas e diluiu o bolsado.Tentou convencer-nos, sem sucesso, e virámos-lhe as costas desandando para os quatro cantos do mundo.

Por isso, por tudo isso, calai-vos almas de má fé e pior perder, calai-vos adamastores do reino porque ao leme desta chalupa não vai quem sabe, nem vai Deus, vai alguém mais forte que todos ! Alguém mais forte que Ele, vai quem da tômbola a sorte tirou primeiro, vai quem aos céus as mãos já ergueu três vezes, e quem já por três vezes ao leme as prendeu…

-  “ Aqui ao leme sou mais que eu.

E mais que o medo de quem me teme, manda a vontade que me ata ao leme !! “ .... (sic)

E continua rindo-se de nós... Até quando ? 
Até quando até quando até quando até quando ???

* Foto 1 : Trabalho manual sobre imagem do grupo musical " Doces " 
* Guterres em 2001 e Barroso em 2004.
 P.S. – Se alguém duvida que daqui a trinta anos PPC será tido e julgado como o PM que cheio de coragem arregaçou as mangas e colocou ordem neste país que ponha as barbas de molho porque estará rotundamente enganado. Os anais da história só lembrarão o nosso primeiro.


domingo, 11 de maio de 2014

189 - O QUE ELA ADORAVA FALAR DE ECONOMIA ..........


O que ela adorava falar de economia …

Mas podia ser qualquer outra coisa, sei lá, matemática, física, história, ou geografia… Depois um dia acabaram-se os cifrões e sobreveio-lhe a nostalgia… Nada que não tivesse remédio porque se agarrou a outras coisas acabadas em ões, foi a época do boiões por tudo e por nada, com compotas, com ameixas, com marmelada, perguntem à Sofia, a quem os comprava no Caféart ou Artcafé... Todos os dias...

Verdade que nunca te prestei muita atenção, era o choque, como tu dizias, a reacção contrapunha eu. Vivias como falavas, tentando monopolizar tudo, as mais valias, cotações e outras equações ligadas à economia, o câmbio, as acções, os discursos, as vontades. Por isso nem te ouvia, tal seria naufragar no teu encanto de sereia, precisamente o que eu não queria.

Contudo, se de ti ria ao chamar-te a Vacondeus da telefonia, gabava-te igualmente a paciência diária, a vintena de quilómetros na bicla, os bíceps fortalecidos, mas sobretudo o golpe de tesoura com que sempre me seduziste e aplacaste.

O que eu gostava ouvir-te falar de economia … ou qualquer outra coisa, matemática, física, história, ou geografia… Estirado, pés fora da cama, inalando indolentemente um cigarro, debaixo da manta curta. 

Tu falavas, eu ouvia, fosse história ou geografia o que dizias à pressa, como sempre, como tudo, como se o vagar pudesse acabar-se um dia, ou eu, a quem a tua conversa seduzia, como feitiço que sobre mim caísse e revolvesse numa inquietação obscena.

Amavas focar a geografia, contares-me dos lugares exóticos onde em puritanos sonhos tu nos vias, eu nostálgico sorria e, numa ternura impaciente, desatava-te os laços e lacinhos, por vezes com os dentes.

Recitavas pela enésima vez a história da economia, a beleza dos números, ah ! Mas não de todos ! Repreendias-me com sarcasmo :

                - Apenas números grandes ! As deduções e induções, as tendências, as projecções !

- À colecta ! 

Atirava-te eu gozando o resultado antecipado e projectado no espectro dessas provocações que, por obscuras e dúbias, te atirava com bizarria para depois…

Bem, para depois nos conduzires ao máximo multiplicador comum, um agitado logaritmo que durante meses afináramos após cada sono em que o rácio melhorando, e o ponto G !

- Isso ! O ponto G, que o não esquecêssemos !

- Doido

Atiravas-me passada meia hora, ou mais, se eu acordava, esquecida já da economia, da história e da geografia, os dois marinando nos lençóis de seda em desalinho e suando e arfando de tanta ciência vivida em torvelinho.

- Passa-me um de mentol ou te derrubo, e tu não farias mal se chupasses um que bem precisas…

E então eras tu doidinha, era a tua vez, e te sumias lençóis dentro em risadinhas que no início eu nem ajuizava, a não ser à primeira dentadinha e te gritava, geralmente tarde, nunca a tempo, por também me apetecer…

- Eu dissera um rebuçado !

Emergias. Sorriso afivelado, cantos da boca babados, seios pendurados, divertida, maquiavélica, diabólica, demoníaca :

- Acabou-se a matemática a álgebra e a trigonometria !

Incapaz de travar-te as investidas, desejoso de aparar-te as manhas conhecidas, para depois ficar ainda ouvindo-te, molengona, falando de economia, história e geografia. Durante anos te recordarei em cada anfiteatro, em cada seminário, workshop ou auditório.

Sumiste-te da minha vista, sumiste-te da minha vida quando devias ter-te sumido deste coração, sim, parece que um dia te meteste num avião e pim !

Foi um ar que te deu.
Em Pedras Rubras ? Portela ? Faro ? Beja ? Rio Frio ?
Sumiste-te apenas.

Foi um choque, como se um comboio descendente te colhesse, me trouxesse notícias de ti, te levasse de mim que nunca mais te ouvirei falar de economia … Que tanto queria ouvir-te falar de matemática, história, física, ou qualquer outra coisa… quem diria.

Jamais te ouvirei falar de economia … ou outra coisa, sei lá, geometria, álgebra, trigonometria …
  








quinta-feira, 1 de maio de 2014

188 - OBRIGADO SELECÇÕES DO READER’S DIGEST…


Não sei dizer-vos já por quê, mas sei que primeiro o aparecimento e depois a permanência daquela revista lá em casa me foi fazendo esquecer o Mosquito e o Cavaleiro Andante. Talvez tenha sido pela mão do mano, seja como for eu esperava ansiosamente por cada fim do mês e rondava a montra da papelaria Angola na esperança de a ver chegar pois não tinha um dia certo.

Inda hoje lembro aquele menino paraplégico do Dakota ou do Nevada, a quem o pai mandara construir uma maravilhosa mesa em forma de U e que na cama o rodeava. Recordo como ele se afadigava para manter a correspondência em dia com todos os amigos que tinha espalhados pelo globo, sem redes sociais, sem net, sem fotocopiadoras, apenas com esforço e perseverança uma criança ligava-se e abria-se ao mundo esquecendo o determinismo que à pequena cama o limitava.

E fechava-me em casa agarrado à revista, abrindo horizontes, de longe mais vastos que os que um pequeno país e o nosso Alentejo alguma vez me poderiam dar. Cresci com o folhear daquela pequena revista, com a sua singularidade, o seu individualismo epidémico.

De amigos chegados ouviria mais tarde

- É propaganda capitalista Humberto, fascismo encadernado…

E assim abri os olhos para os ismos e istmos que nos ligam ao mundo ou que do mundo nos isolam.

Naquele dia o paizinho explicou-me a fuga tão negra pintada e desenhada na impressionante imagem duma revista, o porquê da noite, a magia do voo dos balões, o paradoxo dos contrários, o mistério das cortinas em ferro e a fuga para a liberdade em que essa noite ventosa e de breu acolheu no regaço uma família de argonautas sonhadores e utópicos cavalgando o medo e a quem o lirismo servira de bússola.

- Parece uma imagem da Guerra Ilustrada no Século dos sábados

Deixou o paizinho escapar entre dentes para consigo mesmo sorrindo enigmaticamente ante o colorido das imagens, apelativas, chocantes, retorquindo do mesmo modo.

- E só fogem p’ra este lado ?

Demorei uma eternidade a entendê-lo, quase uma década, e só muitos anos mais tarde soube de fugas para o outro lado, Peniche, submarinos, coragem e uma história tão boa ou melhor que a do balão mas que, já entendia a razão, jamais veria contada naquela revista. O paizinho era, comigo, parco em palavras, e, não fosse o meu ouvido de criança desconfiada e jovem atento como um radar, jamais lhe entenderia os desabafos largados entre dentes, ou ciciados entre amigos numa solenidade de bedel mas que a minha memória guardava e somava até ao infinito.

- “Obviamente demito-o.” Tal e qual amigo Leandro. Sem tirar nem pôr. Por isso lhe chamaram o General sem Medo.

Esses sussurros ciciados e as amizades repartidas com sindicalistas na adolescência, fermentaram em mim durante a maturidade os frutos do lido e ouvido a que somava o estilo aventureiro e agradável das corajosas odisseias plasmadas nessa revista. Os solilóquios atentamente escutados ao paizinho ou as conversas captadas nos murmúrios por ele divididos com o senhor Teófilo e o vizinho Moisés maturaram-me as ideias. Muitos anos mais tarde nem o “fim da história” determinaria a colheita que esses acontecimentos haviam de forjar alimentando-se da minha reserva de percepções, cultivados que já eram, bem fundo no meu ser, os ideais que ainda hoje partilho.

Muito do meu optimismo teve início nesses tempos em que, durante algum tempo, tal como a maravilhosa mesa em forma de U o fora para uma criança aberta ao mundo, essa revista foi para mim o alfa e o ómega das abcissas e ordenadas entre as quais a minha vida girou, uma revista que me alargou os horizontes limitados que da minha singela janela vislumbrava. Ao invés de viagens em balão voguei nos mares da imaginação, alimentado por aquelas páginas extraordinárias, simultaneamente maravilhosas e excessivas que tão sub-reptícia e artificiosamente se inculcaram na minha alma. 

Obrigado Selecções do Reader’s Digest.