Ela sorriu, com a cara entalada
entre as mãos puxou-me o queixo para si, afivelando um sorriso deitou-me
uma careta, mordeu-se torcendo a língua para o canto da boca e, espremendo
entre os polegares a hedionda borbulha, fez que entre as unhas rebentasse
primeiro e saísse depois o sinal e o pus cujo inchaço me desfeava a cara e me
cobria de dores insuportáveis mal ali tocasse.
Debaixo da dor lancinante berrei e
fugi com a cabeça, mas o mal já estava feito e eu livre do problema. Havia que
desinfectar e aguardar até que tudo se recompusesse.
Ela sorria e mostrava-me os
polegares infectos onde o pus se derramava festejando o sucesso da operação e
dando fim ao episódio.
- Lindo ! Estás lindo outra vez !
E espetou-me um beijo na bochecha
ainda doída.
E foi assim.
E foi por isso que a tomei pela
cintura, a puxei a mim e, com a cara ainda vertendo um fiozinho de sangue a
beijei em sinal de gratidão e reconhecimento.
Lembro-me que ficámos juntinhos e
abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto,
passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo
dizer tudo dirá certamente muito não acham ?
Há dias foi a vez dela, e eu a ver.
Sentada na cadeira da dentista, nem
a boca totalmente aberta escondia o inchaço que lhe ia na face. O abcesso era
dos grandes, e a médica daquele novo consultório, bem equipado, RX e tudo, de
bata impecavelmente branca e cheia de pergaminhos, prometia segurança e
dava-nos confiança.
O prédio tinha sido totalmente
recuperado e renovado, dantes uma padaria e o respectivo forno de lenha, e nós
agora precisamente onde há muito mais de trinta anos comprávamos pãezinhos com
chouriço acabadinhos de fazer para acalmar-mos as ressacas.
Ali, onde agora a recepcionista,
dantes o balcão, uma velha balança onde o pão nunca era pesado, e uma caixa de
madeira vidrada mostrando os bolos da
padaria. Por detrás o quintal onde se amontoavam os molhos de lenha que
alimentavam a fornalha.
Aqui, nesta sala, exactamente no
lugar onde instalaram a moderna cadeira da dentista, dantes a casa do forno e
onde se acumulavam os grandes tabuleiros em que arrefecia o pão com chouriço que tão bem
cheirava.
Lembro-me bem, era inverno, quase
três da tarde. O forno ainda quente da azáfama dessa manhã, ela atendera há
minutos a última freguesa e procurou-me junto do quentinho onde eu reconfortava
as mãos geladas.
Abraçou-me.
Abraçámo-nos e enrolou-se-me o
sentimento.
Enrolámo-nos.
Precisamente nesse lugar, hoje,
muito mais de trinta anos depois, ela voltava a ter medo e a tremer.
Queria muito, mas assustava-a o
momento.
A médica soletrava-lhe palavras de
calma e conforto enquanto brandia na mão a ferramenta com que havia de
extrair-lhe o queixal.
Retoiçámos.
Sentiu-se acalmada, confiante,
medrosa mas confiante, a mão no ombro transmitiu-lhe calma e paz suficientes
para esboçar um sorriso amarelo.
Como que espantada, num instante
abriu muito a boca e soltou um gritinho.
Já estava.
Eu afastei-me um pouco, e sim, era
verdade o que diziam.
Doía um bocadinho mas depois era
bom.
Já se sentia bem melhor.
Levantou-se e ajeitou a blusa e a
saia.
E nem fizera assim tanto sangue.
Orgulhosa, a médica exibia um grande
queixal na ponta do alicate cromado, sorria, e acalmou-a :
- Pronto, já está, afinal não custou
nada pois não ?
Era mais medo que outra coisa querida !
Lembro-me que depois daquilo ficámos
juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de
resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não
querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?
Alguém alvitrou serem quase três da
manhã e dentro de pouco tempo podermos ia à padaria dos Canaviais comprar uns
pãezinhos com chouriço, estávamos ali desde as cinco da tarde e já nem havia
nada que se comesse nem pachorra p’ra continuar a ouvir as histórias da vida do
Aurélio.
- Foi por ela, foi por isso que
sempre estive apaixonado por ela, por tudo isso, desde o primeiro dia, ainda me
lembro, ela tinha estreado umas botas de camurça que calçava com umas meias
brancas e …
Levantámo-nos num repente, montámos
as motas e num excessivo alarido rumámos todos aos Canaviais. Todos menos o
Aurélio que, babando-se, chorava que nem um menino, revivendo a história que acabara de nos contar…