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quarta-feira, 4 de junho de 2014

191 - FOI POR ELA , FOI POR ISSO ...…


Ela sorriu, com a cara entalada entre as mãos puxou-me o queixo para si, afivelando um sorriso deitou-me uma careta, mordeu-se torcendo a língua para o canto da boca e, espremendo entre os polegares a hedionda borbulha, fez que entre as unhas rebentasse primeiro e saísse depois o sinal e o pus cujo inchaço me desfeava a cara e me cobria de dores insuportáveis mal ali tocasse.

Debaixo da dor lancinante berrei e fugi com a cabeça, mas o mal já estava feito e eu livre do problema. Havia que desinfectar e aguardar até que tudo se recompusesse.

Ela sorria e mostrava-me os polegares infectos onde o pus se derramava festejando o sucesso da operação e dando fim ao episódio.

- Lindo ! Estás lindo outra vez !

E espetou-me um beijo na bochecha ainda doída.

E foi assim.

E foi por isso que a tomei pela cintura, a puxei a mim e, com a cara ainda vertendo um fiozinho de sangue a beijei em sinal de gratidão e reconhecimento.

Lembro-me que ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Há dias foi a vez dela, e eu a ver.

Sentada na cadeira da dentista, nem a boca totalmente aberta escondia o inchaço que lhe ia na face. O abcesso era dos grandes, e a médica daquele novo consultório, bem equipado, RX e tudo, de bata impecavelmente branca e cheia de pergaminhos, prometia segurança e dava-nos confiança.

O prédio tinha sido totalmente recuperado e renovado, dantes uma padaria e o respectivo forno de lenha, e nós agora precisamente onde há muito mais de trinta anos comprávamos pãezinhos com chouriço acabadinhos de fazer para acalmar-mos as ressacas.

Ali, onde agora a recepcionista, dantes o balcão, uma velha balança onde o pão nunca era pesado, e uma caixa de madeira vidrada  mostrando os bolos da padaria. Por detrás o quintal onde se amontoavam os molhos de lenha que alimentavam a fornalha.

Aqui, nesta sala, exactamente no lugar onde instalaram a moderna cadeira da dentista, dantes a casa do forno e onde se acumulavam os grandes tabuleiros em que arrefecia o pão com chouriço que tão bem cheirava.

Lembro-me bem, era inverno, quase três da tarde. O forno ainda quente da azáfama dessa manhã, ela atendera há minutos a última freguesa e procurou-me junto do quentinho onde eu reconfortava as mãos geladas.

Abraçou-me.
Abraçámo-nos e enrolou-se-me o sentimento.
Enrolámo-nos.

Precisamente nesse lugar, hoje, muito mais de trinta anos depois, ela voltava a ter medo e a tremer.

Queria muito, mas assustava-a o momento.

A médica soletrava-lhe palavras de calma e conforto enquanto brandia na mão a ferramenta com que havia de extrair-lhe o queixal.

Retoiçámos.

Sentiu-se acalmada, confiante, medrosa mas confiante, a mão no ombro transmitiu-lhe calma e paz suficientes para esboçar um sorriso amarelo.

Como que espantada, num instante abriu muito a boca e soltou um gritinho.

Já estava.

Eu afastei-me um pouco, e sim, era verdade o que diziam.
Doía um bocadinho mas depois era bom.
Já se sentia bem melhor.
Levantou-se e ajeitou a blusa e a saia.
E nem fizera assim tanto sangue.

Orgulhosa, a médica exibia um grande queixal na ponta do alicate cromado, sorria, e acalmou-a :

- Pronto, já está, afinal não custou nada pois não ?
  Era mais medo que outra coisa querida !

Lembro-me que depois daquilo ficámos juntinhos e abraçadinhos, não me recordo de mais pormenores nem do resto, e de resto, passaram muito mais de trinta anos e ainda vivo com ela, o que não querendo dizer tudo dirá certamente muito não acham ?

Alguém alvitrou serem quase três da manhã e dentro de pouco tempo podermos ia à padaria dos Canaviais comprar uns pãezinhos com chouriço, estávamos ali desde as cinco da tarde e já nem havia nada que se comesse nem pachorra p’ra continuar a ouvir as histórias da vida do Aurélio.

- Foi por ela, foi por isso que sempre estive apaixonado por ela, por tudo isso, desde o primeiro dia, ainda me lembro, ela tinha estreado umas botas de camurça que calçava com umas meias brancas e …

Levantámo-nos num repente, montámos as motas e num excessivo alarido rumámos todos aos Canaviais. Todos menos o Aurélio que, babando-se, chorava que nem um menino, revivendo a história que acabara de nos contar…