quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

625 - O ROMANCE DA PALHINHA DA MILINHA ...





Vive no Algarve ao alto da praia do Vau e de onde, manhã cedo, adora ver o mar que o Infante conquistou enquanto toma o pequeno-almoço.

Na larga chávena de leite com chocolate inventa o mar e as ondas enfrentadas pelos marinheiros de então, agitando o leite com a mesma palhinha plástica por onde sorve a beberagem que a marinhagem não tinha mas havia de trazer num torna-viagem, o célebre chocolate com que ela se delicia.

Não fosse a mãe chamá-la na pressa de a levar para a escola e a Milinha ficaria horas olhando o mar e inventando histórias de mares e de mostrengos, de fogos de S’Antelmo e d’outras diatribes tais que a professora Benevides lhe ensinava e contava pacientemente nas aulas.


Às aulas Milinha preferia as histórias, ouvidas ou inventadas, pegando as naus imaginadas pela ponta do mastro, a tal palhinha servindo-lhe de bebedouro e por onde sorvia a beberagem dos marujos dizia ela, até que um dia…

 Até que um dia, depois do sorvo final e do qual gostava de ouvir o som rouco da palhinha sugando o ar acabado o leite com chocolate, xxxxrrrrrrrrrrr, ao pegar nela e no preciso momento em que a atirara para o balde do lixo se lembrou;

- Que viagem faria aquela palhinha, aquele mastro de cesto da gávea se á deriva fosse deixada ?

 E disso se foi lembrando p’lo caminho, e na escola toda a manhã, até que aos poucos e devagarinho foi riscando num mapa mundi que o paizinho lhe arranjara, o percurso da deriva imaginada dum mastro levado por medonha tempestade e arrancado á Nau Catrineta, digo à palheta ou a palhinha que em cada dia ela atirava, não para a gaveta donde as retirava, mas para o balde de onde se sumiam da sua vista e consciência.

A verdade é que dia após dia e com a ajuda do professor de geografia e da amiga Bia, lá foi marcando, escrevendo, anotando e registando o inimaginável e sinuoso avanço da palhinha. A coisa começou sendo sabida primeiro na turma, depois na escola e aos poucos todos e cada um vinham acrescentando uma hipótese, todas elas plausíveis e como tal todas elas registadas, já que era suposto e admissível a cada uma dos milhares de palhinhas ter uma deriva, digo um rumo, um percurso diferente das demais.


Até os pais, desejosos de participar na aventura da palhinha sugeriram á Milinha que somasse, ou pelo menos tentasse por alto calcular qual o número de palhinhas nesse dia em movimento, em deriva, pois tantos mastros haviam de ser muitos mais que pinheiros teria o pinhal de Leiria. E assim fez a Milinha, coisa de que incumbiu igualmente toda a turminha, dando o mote ou o pontapé de saída para a corrida dos números, números inteiros, números primos e não primos, pois havia que apurar a verdade verdadeira, como muito bem disse a professora Piedade, que professava matemática e há muito esperava com ansiedade por uma oportunidade de participar na demanda, dela se servindo para motivar na aprendizagem as mais burrinhas das suas educandas.

Praia do Vau, em Portimão, palmeiras, 90.000 habitantes, e se um terço deles fossem crianças seriam elas 30.000, e se um terço desses milhares de crianças usasse palhinhas, seriam 10.000 as palhinhas atiradas cada dia com ousadia para os baldes ou lixeiras.

10.000 palhinhas por dia Milinha ! Dez, vezes 365 dias, dariam qualquer coisa como 3.650.000 palhinhas ao ano só em Portimão. Era muita palhinha. Eram demasiadas palhinhas. E quanto pesariam lembrou nos dias seguintes a professora de ciências, uma loira de Avintes. Com um peso de 3 gramas por palhinha X os tais mais de 3 milhões delas, seriam nada mais nada menos que Y toneladas. É muita tonelada, muitas mais que sardinhas pescava a traineira do paizinho do Morais, pescador e pecador diria o Padre Amador, que amava o senhor Deus e os demais.

Ademais com tanta palhinha à solta ou á deriva, algumas escapariam de ser enterradas no aterro Municipal, uma estrumeira descomunal, qual delas de todas a maior, já que quaisquer cidadezinhas as tinham, de Portimão a Campo Maior. Foi quando a Guiomar se lembrou de imaginar o percurso aleatório duma palhinha ocasional, fugida a um aterro monumental e andando p’la vida aos trambolhões, como se ao desterro tivesse sido condenada pelos beberrões.

Suscitou pesar, choro e Lágrimas entre a turma a sorte dessa palhinha perdida, e logo cada um se pôs a cismar o que lhe aconteceria até chegar um dia ao mar. Choveram redacções e composições que o professor Simões viu e reviu, gabando ou criticando o português de cada aluno e chamando a atenção para a língua pátria, para a gramática, a sintaxe e a semântica.

Que coisa mais romântica pensou a Milinha, sugerindo á turminha a compilação dos textos e que lhes dessem o nome de Romance Da Palhinha. Coisa mais engraçadinha. E já agora também eu vou meter a palhinha, ou melhor meter a perninha, o pezinho ou a mãozinha nesta história da palhinha, e juro oferecê-la á Leonor, a minha já nada pequenina netinha, ela como eu amante da palhinha, digo e emendo para que não haja confusões, amantes de chupar pela palhinha, digo chupar o leite ou qualquer outra bebida pela coisinha, pela palhinha.

Esclarecidos e esclarecidas ? Não quero aqui confusões !

E vai daí choveram lições, Isto é textos com milhentas razões pelas quais não devemos usar as simpáticas e práticas palhinhas, as piores inimigas dos animais em terra e nos ares, nos mares e oceanos, aspecto que atingiu dimensão tal estando fazendo dos humanos autênticos seres, mas desumanos. Pensemos e oremos pois a Isabel Avó, uma menina pequenina escreveu sozinha ela só, a história da palhinha Verdinha, uma história de meter dó e peninha. Ora vejam só;

Levada ao acaso pelo vento da mesa da Esplanada do Parque como se soprada por um cata-vento, a palhinha Verdinha rolou, voou, rebolou por um momento, até cair num terreno lamacento onde ficou a coitadinha da nossa palhinha Verdinha. Ali esteve dias, semanas e meses, até que um cão rabugento raspando o chão em busca de ossos, soltou do seu tormento e cativeiro a tal palhinha Verdinha, que nem um momento hesitou e se levantou para de novo e logo ser arrastada p’lo vento.

Todavia pouca sorte teve, pois foi parar a um tubo de descarga que na estação de tratamento de esgotos a descarregou, um sítio deveras fedorento que a aprisionou e donde só um milagre a soltou. Valeu-lhe ser magra e esguia, comprida e fininha, magrinha, flexível e ginasta contorcionista, o que lhe permitiria passar apertadinha entre os intervalos de uma rede já gasta, para de novo se encontrar livre a atribulada palhinha Verdinha, para que logo depois de novo uma rajada de vento pegasse nela, apesar de suja e mal cheirosa. Contudo na ânsia de ser livre, mesmo assim voou, voou, levantou e aterrou.

Voou, voou, levantou e aterrou, até que num golpe de sorte amarou em rio do barlavento algarvio, o qual lhe deu banho e ao mar a entregou, quando chegado á foz desaguou. Até que enfim o mar, o mar primevo onde tudo começou, a primeira célula, o primeiro ser vivo que do mar galgou para terra, evoluiu e viveu milhares de milhões de anos, até aprender ou desaprender a beber por mim, a palhinha Verdinha, verdinha como a cor que eles humanos elegeram na defesa de um ambiente limpo e são, mas que raio de contradição.

E de contradição em contradição caminha para a perdição o ser humano, anuiu Sebastião Transmontano, filósofo e coveiro no cemitério dos Remédios, onde acabam por ir parar aqueles para quem a vida não encontrou remédio ou condenou, c’o amianto, c’a legionela, com os gases de estufa, com as mil e uma doenças que as alterações climáticas com que as agressões ao ambiente ripostam, qual vingança contra quem sem pudor e sem vergonha, como ferro que brilha mas oxida, enferruja, devolvendo-nos todas as malfeitorias de que contra este mundo somos capazes de urdir e perpetrar.

Perpetrar e não amar, o busílis da questão. Quanto às palhinhas verdinhas, amarelinhas, azulinhas, vermelhinhas ou branquinhas, matam nos oceanos tudo que se lhes atravesse na frente, dizem-nos com palavras e vídeos a Isabel Avó e a Greta. Matam que se fartam e são aos milhões, caso para termos pesadelos e visões. Saberemos nós quantos animais essas palhinhas e outros objectos plásticos diariamente matam ? 

E tu ainda usas a palhinha ou vais mudar de intenções, de práticas ou de orações ? E são Veras essas tuas intenções ? Parabéns á Zabelinha e á Milinha e a quantos deram azo esta pequena historiazinha.

Milhões de beijinhosss <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3 <3




terça-feira, 10 de dezembro de 2019

ALCÁÇOVAS, DIA DE DOÇARIA, O DESASTRE…



Este domingo podia ter sido bem melhor passado, não tivessem sido aqueles grandes camelos, mas nem o problema foi de monta nem deixei que gente tonta me estragasse o dia.

 A coisa teve porém a sua graça pela ignorância que demonstra e põe à vista, e não somente ignorância como falta de visão, falta de mundo, de viagens, quando nem teria sido necessário ir a Paris, Roma, Londres ou Madrid, bastava ter dado um salto a Arraiolos, Montemor-o-Novo ou Portel, falo pelo que vi e vivi.

O quid pro quo conta-se em poucas penadas e menos palavras ainda, pois quisera o destino que eu visitasse mas não visse a Mostra de Doçaria das Alcáçovas, doçaria que aliás abunda por todo o Alentejo e por todo o país, mas que ali funcionará como chamariz para a paróquia, ou para a Freguesia, sendo que a ideia até não está mal pensada. Estará até melhor idealizada que a especulação com os misteriosos e duvidosos Segredos do Endovélico ou o mirabolante aproveitamento de colocar à noitinha os pategos todos olhando para o céu mirando as estrelinhas como se faz na minha terra.

Doces ao menos alegram-nos a alma e confortam-nos o estômago, não é por aí que o gato vai às filhoses, mas foi, para mim aquilo não passou duma louvável iniciativa parcamente pensada e porca mente organizada. Curiosamente já vai na 20ª edição, longa vida lhe desejo, mas por mim evitarei passar pelas Alcáçovas nos próximos 50 anos ou mais, pelo menos enquanto lembrar os jograis medievais que pensaram e deram corpo à iniciativa. Tirando isso, os doces, a comezaina, que mais tem as Alcáçovas para oferecer a quem lá vá ?

Chocalhos, mas já lá iremos.

Organizara o meu passeio de modo a aproveitar bem o domingo, visitar a Mostra de Doçarias, comprar algumas iguarias, almoçar e regressar a Évora a tempo de terminar a jorna como a tinha premeditado porém, há sempre um porém, um todavia, um contudo, a Mostra só abriria nesse dia, não de manhã mas pelas duas da tarde.

No problem, invertem-se os termos, almoça-se primeiro e visita-se a Mostra depois, qual o problema ?

Absolutamente nenhum. Vamos ao almoço.

E foi aí que começou o todavia. O pessoal era mais que muito, os restaurantes nem eram assim tantos, e com uma soberba estranha para meio tão modesto corriam com quem não tivesse mesa marcada pois os comensais eram mais que as encomendas.

Não somente eu e a minha Fátima corremos tudo como tudo nos fechava as portas, a nós e a muitos outros, a todos, num deles a quase totalidade das mesas estava reservada à Câmara Municipal de Viana do Alentejo.


Nada contra, a câmara lá há-de ter os seus colaboradores, afilhados, boys, tios, sobrinhos e outros multicores a quem agradecer, a quem homenagear, a quem honrar, a quem pagar, a quem engraxar etc etc e tal, ninguém leva a mal, estamos em Portugal e mais tarde ou mais cedo, mais hora menos hora a câmara há-de pagar e é entidade que não se pode hostilizar.

Brinco é certo, mas não lhes nego o direito, nem à câmara nem ao restaurante, embora ache que a vida não são dois dias nem o Carnaval três, o ano tem mais 362 ou 363 dias em que há que pensar e sobreviver.

Triste, faminto, esfomeado, revoltado, regressei a Évora onde também se come bem ou melhor ainda, também Évora é digna dos melhores doces. Voltei pois á minha terra, virei as costas às Alcáçovas onde jurei nunca mais meter os pés nem para mijar, jurei eu e juraram provavelmente mais umas largas dezenas ou centenas de visitantes.

As últimas semanas têm sido um corrupio, fui á Mostra Gastronómica de Arraiolos, exemplarmente organizada e onde ninguém ficou sem almoçar, aliás almoçou-se num espaço digno, capaz, acolhedor, depois passei pelo Festival de Sopas de Montemor-o-Novo onde igualmente e num espaço idêntico, e de idêntica forma os restaurantes da zona estavam representados, tinham o seu lugar reservado e próprio, tal como as sopas, doces e vinhos, ninguém ficou em pé, ninguém ficou sem almoçar nem ninguém teve que andar correndo e saltando procurando onde o fazer e toda a gente certamente terá jurado voltar. Lá, não às Alcáçovas.

No fim-de-semana passado calhara-me a Feira do Montado em Portel e também aí, numa tenda enorme foram acolhidos os restaurantes da terra e dos arredores, que encheram a barriga aos visitantes com maravilhas e doces, não tendo dado por ninguém se queixar, todos almoçaram, todos visitaram a Mostra e todos saíram fartos e contentes.


Contudo em Viana e nas Alcáçovas optou-se, por ignorância, desconhecimento, incompetência, falta de originalidade e de visão por correr a pontapé os visitantes famintos, e eram muitos. Ora não havia nexexidade. Como diria o padre do Herman, o diácono Remédios.

Se em vez de passarem a vida na terrinha os organizadores da Mostra de Doçarias dessem de vez em quando uma voltinha pelas paróquias vizinhas só teriam a ganhar e nem gastariam muita gasolina. Nem todos na Junta de Freguesia de Alcáçovas ou na Câmara Municipal de Viana do Alentejo serão culpados, mas aos que o são deviam pendurar ao pescoço de cada um deles um chocalho bem pesado e bem lustroso, para que todos nós soubéssemos quem eram as alimárias e luminárias cuja cabecinha não merece nem de perto nem de longe o pecúlio que nós, contribuintes, lhes pagamos mensalmente. E sempre era dada à freguesia uma outra e original oportunidade de as Alcáçovas mostrarem os seus famosos chocalhos.

E eu que tão empenhado tenho andado em mostrar à minha Fatinha as belezas e as maravilhas do Alentejo, vi-me naturalmente compungido e comprometido, pelo que só me restou pegar nela e levá-la dali daquele pesadelo quanto mais depressa melhor, o que fiz enquanto fui rabujando e praguejando;

Perdoa-lhes Fatinha que não sabem o que fazem… Fazem uns belos chocalhos p’ra vacas, bestas, cavalgaduras, mas faltam-lhes polimento, etiqueta, modos, formação, educação, consideração pelos forasteiros e boas maneiras…



quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

624- OUTRA VEZ DE NOVO NOS TEUS BRAÇOS...


E cá estou eu de novo mergulhado nos teus braços sem que tal imaginasse. Mal meti o pé fora da estação de Entrecampos e tudo num repente se me tornou familiar. Dantes nem estação havia, somente um viaduto debaixo do qual todos se acoitavam se chovia, se havia que estacionar o carro, não passava de um terrado cheio de pó, chovendo tornava-se lamacento, eivado de poças e contudo gaiatos ranhosos chutavam por ali permanentemente bolas de trapo. Esse viaduto simples tem agora 4 linhas, vários pisos, níveis, andares, interfaces para o Metro, para o Alfa, para a CP/ Fertagus, para as linhas urbanas e regionais, chegam e partem dele diariamente mais comboios num só dia que em Évora durante um ano, porém continua o mesmo sitio desabrigado por onde o vento rugia.  

Ruge de novo agora e com força nesta lembrança, paro, escuto, olho, há muito mais movimento agora na Avenida da República mas tudo me continua familiar à esquerda e à direita. Avanço pela direita rumo à João XXI e à Caixa Geral de Aposentações agora funcionando no edifício majestoso da Caixa Geral de Depósitos.


É o mesmo o sol que mima o Campo Pequeno, já restaurado, na vinda entro no Apolo 70, tomo uma bica e parece-me até ver o teu sorriso, ouvir o teu gargalhar se acontecia calhar ouvires uma piada, ou qualquer outro motivo ridículo e digno de risota. Vejo nitidamente os teus olhos vivos brilhando, os dentes brancos santificando-te o fácies, o modo, os trejeitos, e nós de mãos dadas, agora como dantes. Na volta faço tempo, fui despachado bem mais cedo do que esperava e depois de uma breve passagem pela 5 de Outubro e pela Caixa Nacional de Pensões, queimo tempo até ao comboio que me levará de regresso.

Sem querer passeio-me ao sol e faço de novo o percurso que tantas vezes palmilhámos, arrasto-me ao lado do que fora a Feira Popular e onde tantas vezes nos perdêramos no tempo, agora um Central Park sem garden. Dantes o frango assado, a roda onde de mãos dadas e tremendo de medo e emoção experimentávamos a força centrífuga que nos empurrava contra a parede daquele poço da morte, girando sem cessar e sem desacelerar, para logo desafiarmos o vómito nos braços de um polvo gigante rodando sem parar e ora levantando ora descendo os tentáculos. Por vezes sardinhas assadas, música, as mãos dadas, os dedos engalfinhados como quando no quarto que tínhamos logo ali mais acima, ao Rego.



Está quente o sol, caminho devagar no sentido do Campo Grande, no cruzamento da Avenida das Forças Armadas com a Avenida dos Estados Unidos da América paro, contemplo a estátua a que nem ligávamos e erguida em honra dos heróis da Guerra Peninsular. Para lá dela só o Santa Maria onde cursavas, toda a nossa vida era deste lado por isso me virei, olhei para trás em busca do lugar de hortaliça onde vezes sem conta nos abastecemos e pela primeira vez nos confrontámos com os códigos de barras e a leitura por laser, mas também com a atenção solícita e pressurosa de D. Guiomar, sempre olhando-nos com um sorriso maroto tal qual uma catequista sem fé e;

- Voltem sempre meus queridos.

e nunca nos cobrava os sacos de plástico que cobrava a toda a gente, como se quisesse penitenciar-se da sua matreirice.

 Mas não, não perguntei por ela pois ninguém me saberia dar novas ou velhas notícias da D. Guiomar, porque a loja, esse lugar de hortaliça já foi, é agora uma moderna loja Dia da rede Continente, portas automáticas, uma pipa de automatismos, ninguém ri, ninguém fala, autómatos entrando mudos e saindo calados, é a IA, a inteligência artificial dizem, é a mesma estupidez e ignorância de sempre, é o individualismo digo eu, a frieza dos números e da vida nesta metrópole a que já nem acho graça, a graça e o fulgor que tu lhe davas, por isso e ainda que fosse cedo para tal apontei ao restaurante onde tantas vezes nos empanturrávamos. Cinderela se chama agora, talvez em tua homenagem, naqueles tempos confesso que nem o nome lhe conheci, nem tal interessava, abarrotava de estudantes oriundos do ninho de faculdades que por ali havia, e há, comia-se bem e barato e agora nem pensar, cheio de azulejos nas paredes, luzes no tecto, toalhas de pano, empregados solícitos e empertigados escrevendo numa máquina quando dantes gritavam para a cozinha ou para o balcão, no fim uma outra maquineta cobra-nos o almoço, virtualidades destes tempos virtuais.


Já nem sei se estarei mesmo no mesmo restaurante que guardava para ti as garrafas de Casal Garcia e de Mateus Rosê, tu que nunca as acabavas numa refeição e desse modo lhes garantias voltar, por isso eu agora só rosés e mais rosés como se tu voltasses, pudesses voltar e eu acreditasse no que sei impossível de acreditar mas contudo teimo, tal qual eles teimavam em guardar para ti, para nós, sempre a mesma mesa no meio da sala, no centro da sala como se tu um candelabro irradiando luz e animando tudo e todos com a tua alegria e os teus modos brejeiros.

E depois do jantar o Nimas, o Apolo 70 ou o Roma, uma fita romântica, ou outras, algumas vezes o piolho no Rego, sempre na berra com a revolução Cultural de Mao e o Destacamento Vermelho Feminino heroicizando a mulher guerreira, lutadora. Aquele verão quente exigia muito de nós, exigiu sempre muita cerveja fresca e esqueci quantas vezes as noites acabaram na Feira Popular e depois era comigo, apanhar o 32 até Alcântara não sem que antes te deixasse no Santa Maria, era hora e meia dali até ao meu destino, balançando no segundo andar do autocarro como se na ponte do NRP Pereira da Silva sulcando os mares, os mares de cobalto tantas vezes sulcados para te depositar nos dedos um rubi, uma esmeralda, e agora nada, agora só um mar encapelado, hostil, indesejado, quando não um mar chão, aplanado, liso, parado, quando ao invés e contigo estava sempre picado e tu, e eu, e nós na crista da onda, surfando antes desta moda do surf, vivendo ao ritmo de um país novo que se fez velho, sem graça, sem presente nem futuro, apenas passado, foi tudo um sonho, nada passou de um sonho, de uma oportunidade perdida, bem o dizias, tinhas razão, e dantes tudo em frente e tudo sim e agora tudo parado, regredindo, e tudo não.


NÃO HÁ DINHEIRO, o Gaspar tinha razão, não havia nem haverá tão depressa, fomos felizes, ainda vivemos no tempo das vacas gordas, agora nem gordas nem magras, não há vacas, só vaquinhas e panelinhas como tu dirias, e padrinhos e afilhados e outros depravados. Esta democracia virou obscenidade, pior que o Ballet Rose. Olhai esta cidade padecendo de modernidade mas morta de vacuidade, esta novel estação prenhe de escadas rolantes subindo e descendo, máquinas automáticas para bilhetes, bebidas, doces, tabacos, refrigerantes, camisas, digo camisinhas, acessos a metros, aos intercidades, aos alfas, e tudo e todos correndo sem o vagar que tivemos, sem a vida tão calma quão turbulenta que levámos, sem o amor que partilhámos.

Estás em tudo, neste sol que me aconchega, nos passeios que calcorreio, nos lugares onde paro, nas ruas e avenidas que percorro, nas lembranças que me acodem, nas memórias que reavivo e contigo disputam esta manhã ensolarada em que me perco em ti, nos lugares partilhados, nos sonhos vividos e realizados, por isso esta dor, esta mágoa com princípio mas sem fim de que padeço, alimento e cresto, qual chaga a que metodicamente arranco a crosta, porque só ela me liga a ti e não te quero perder, por isso esta tortura que alimento, este silício a que não ponho fim pois esquecer-te é perder-te e não consigo, antes a morte que tal sorte.

Viro para norte, traço um azimute que me levará ao Rego, à Avenida de Berna, ao muro baixo do Jardim da Gulbenkian onde tantas vezes descansámos as pernas e demos corda às conversas sem fim que desfiámos. Lá mais adiante a Praça de Espanha, o largo das camionetas da Rodoviária Nacional antes das modernas estações como a de Sete Rios, à direita o IPO, a Columbano Bordalo Pinheiro à esquerda, e a IBA, em cuja montra espreitávamos as Hondas, depois e devagar o regresso, o Rego, o quarto, o desassossego, o sono dos justos, o aconchego.

Quem me dera adormecer e jamais acordar.

Esta visita a Lisboa volveu viagem ao passado, nem vou contar nada disto à Fatinha, decerto não iria gostar, ela que tanto me tem amado e ajudado a esquecer, a superar, a aguentar…


***** https://www.youtube.com/watch?v=TxkX23cOndw

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

623 - SINA PARA UMA DÉCADA, OU DUAS ...


Isto não é o mesmo que ir à bruxa pelo que não faço, leio ou deito sinas a torto e a direito, só o fazendo a nível particular por até nesse particular ser enorme o risco e grande a possibilidade de errar pelo que evito enganar-vos e, descurando esses casos pessoais, as ditarei somente em prol do geral, do mundo em geral e especialmente sobre o país.

Ditadas ao geral poucas mudanças ou emendas teria eu que fazer-lhes se as ditasse, quando é sabido ser o geral uma ciência, p’lo menos é-o em relação à lei dos grandes números, daí não hesitar em fazer-vos, à borla, este prognóstico;

- É muitíssimo provável que daqui a 10 anos alguns de vós estejam enterrados, outros casados ou divorciados, alguns ricos, outros pobres, pouquíssimos podres de ricos, e muitos na pobreza, pobres, miseráveis. Quantos de vós exactamente não sei, e quem ou qual é ou deixará de o ser ainda sei menos. No geral aceito deitar a sina, sei que no futuro seremos menos e sobretudo seremos pobres, muito mais pobres.


Senão vejamos, em primeiro lugar a corrupção continuará como bandeira, além disso vai-se notando estar até cada vez mais ousada e descarada, em segundo lugar um ponto fulcral para que tudo fique na mesma, é muito importante este item, para parecer alguma coisa ter sido mudada nada será mexido, nada será alterado, a não ser no supérfluo, nunca no essencial refiro-me concretamente à lei eleitoral.

Uma outra variável a considerar para quem deita as sinas ou se atreve a deitar a sina é a observação do incontornável PIB, cujo crescimento é agora como sempre foi, assente em valores baixíssimos e que na prática não significam crescimento nenhum, rondando eternamente à volta de dois por cento, um bocadinho a mais, um bocadinho a menos, levando a que se discutam décimas, nem sequer unidades, pelo que derivado da contínua sangria migratória da nossa juventude e da sangria fiscal das empresas, dos trabalhadores e da actividade económica em geral se produzirá cada vez menos, e portanto o PIB e a concomitante taxa de crescimento tenderão a baixar muito mais no futuro malgrado estarem já vergonhosamente em valores baixíssimos.

Fácil se torna mediante estas provas prognosticar o futuro, será miserável, paupérrimo, e de sol para os mesmos, sempre os mesmos, cada vez menos esta peculiar democracia será para os outros, para a populaça, essa que coma brioches, de pneus velhos, de borracha...

Chegará uma altura em que não valerá a pena trabalhar ou será mais aconselhável ou conveniente não trabalhar mesmo ou trabalhar menos, ou mesmo nada e viver de subsídios e rendimentos de inserção ou sociais. O aperto fiscal levará á resignação e por arrastamento à inacção, o Simplex por mais Simplex que seja não derribará a desmotivadora burocracia nem o edifício legal do país, todo ele mais parecendo uma superestrutura criada para complicar e proibir, e que eleva a extremos a mentalidade destrutiva e desmotivadora em que a nação há mais de quatro décadas se empenha.


A entropia ganhou já foros de maturidade, os tugas continuarão a aderir à ideia e a votar com os pés, migrando, abalando, levando com eles a esperança de renovação demográfica e de repovoamento, em especial do interior deste depauperado país.

A contra emigração será um recurso, mas ter imigrantes está muito longe de ter o país habitado por indígenas pois o imigrante trará força nos braços mas complicações na cabeça, dará mais trabalho do que aquele que produzirá, originará contestações e convulsões sociais, as quais por sua vez promoverão o crescimento da extrema-direita, obrigando a que esta esquerda finalmente acorde do seu sono e sonho de lirismo Idealista, sendo aí que encontraremos a única vantagem em repovoarem isto de gente estranha, diferente e esquisita ao invés de terem criado condições aceitáveis, senão mesmo agradáveis para que os autóctones não se tivessem pirado deste país enredado em si mesmo e nas contradições que há mais de quarenta anos anda tecendo mas não resolvendo.

Por várias razões os salários baixarão, não só porque a vinda de imigrantes famintos os levará a vender a mão-de-obra ao preço da chuva ou da uva mijona, como entretanto o governo em geral encherá o país de pretos para satisfazer os construtores civis nacionais e os governantes Angolanos, também eles a braços com desemprego alto e galopante.

Imigrantes caucasianos ou chinocas, digo asiáticos, e pretos farão descer o custo da mão-de-obra e as empresas agradecerão esse balão de oxigénio. Mas com os salários em queda os tugas emigrarão ainda mais, deixarão para trás montes de problemas sociais que as empresas descartarão como não sendo culpas suas, a GNR e a PSP que se amolem e amouxem, e aturem a pretalhada e a canalha imigrante. A par disso a Segurança Social que derrame sobre eles subsídios atrás de subsídios, para os manter e conter dentro de uma violência minimamente aceitável mas que nunca serão suficientes, inda que provoquem a destruição da coesão e solidariedade nacionais. Enfim, o último a sair que apague as luzes e feche a porta.

Quanto ao emprego ou desemprego, sempre umbilicalmente ligados ao grau de criminalidade observado numa sociedade, pouco mais haverá a dizer que aquilo que atrás ficou dito, brigas entre imigrantes pretos e tugas, na babugem de apanharem os restos nesta depauperada democrazia. Quanto ao mais os mais inteligentes já se foram ou estarão fazendo as malas para zarpar.

O desemprego manter-se-á alto, a inactividade é má conselheira, e ainda que sejamos um país de baixa criminalidade, somo-lo porque nem sabemos roubar sequer, porque nem bandidos dignos desse nome temos e alguma da criminalidade de teor mais elevado tem sido prática de gangues oriundos de outros países, os quais aqui vêm fazer um biscatinho. Não sabemos roubar nem proteger, há quem repare nessas coisas e aproveite, a fraqueza de uns é a riqueza de outros.

        O tipo de criminalidade praticada no nosso país dá-nos a medida do povo que somos, sendo mais do tipo faca e alguidar, atestando os nossos baixos instintos e valores, ou ao nível do terceiro mundo e da pretalhada, mata-se para comer ou para surripiar uma nota de vinte, somos básicos. Há quem faça ou cometa assaltos e deixe lá o cartão de cidadão ou a carteira toda. Risível.

        Algum emprego que surja, e será pouco, como sempre manter-se-á restrito a áreas e funções desqualificadas, no turismo haverá pratos para lavar, camas para fazer,  a relva nos jardins a aparar. Dar banho a cães e passear os animais de estimação dos vips será outra função que nos destinarão, enquanto isso os robots roubar-nos-ão cada vez mais postos de trabalho e os tugas não terão nem lugar lavando carros pois as estações de serviço foram entretanto automatizadas.


O subsídio de desemprego será cada vez mais reduzido para motivar a malta a procurar o trabalho que não há, mas é uma patranha bem metida esta ou não é ? A escola não ensinará nada a ninguém, já não ensina e a muito poucos prepara para a vida, nem ao menos ensina uma profissão decente, todavia mete cada vez mais gente na rua com a escolaridade obrigatória terminada, gente que uma vez cá fora não encontrará nada à medida da sua ignorância, e já vamos na terceira geração queimada após o 25 de Abril… Felizmente nota-se uma redução de crianças e de alunos e, como nada disso foi pensado, nem planeado, chegou em massa a vez de os professores ficarem desempregados.

Isto anda tudo ligado, salários baixos, dificuldades económicas, vida difícil, não há casamentos, não há filhos, não há crianças, não há alunos, não há trabalhadores, não há crescimento, há emigração, voltar de costas, abandono, deserção, problemas com a diminuição de contribuições e fundos para segurança social para acudir aos velhos, aos desempregados, aos doentes, aos inválidos, todos ralhando e ninguém tendo razão.

É assim numa casa ou num país onde não há pão, o consumo desce, o desemprego aumenta, as falências surgem, a poupança rareia e o investimento desaparece. Há muito que todos estes sintomas se vêm fazendo notar sem que ninguém os combata e o resultado está aí, é o salve-se quem puder, os bancos as finanças e as câmaras lançando taxas e taxinhas, os preços subindo, o pessoal gemendo, a dívida sem controlo, vamos demorar mais trezentos anos bem sofridos a pagá-la.


O défice esse continuará a ser contido unicamente graças ao emagrecimento de um povo por via dos impostos cobrados, enquanto a dívida nos estrangula (o saldo das contas externas, importações X exportações acelera loucamente) e tece nova forca onde nos pendurarem enquanto nos deslumbramos parva e alegremente com as maravilhas da Web Summit. 

        Pois pois, 25 de Abril sempre, democracia sim fascismo nunca mais, e a malta pá ? Em que parte da equação esqueceram a malta ? A malta, o pagode vai-se distraindo e endividando em inutilidades, telemóveis, smartphone e plasmas caríssimos, ares condicionados, carros e carrinhos, fazemos as delícias e a alegria e riqueza de espanhóis, coreanos, japoneses, italianos, franceses, ingleses, alemães e americanos, só não mexemos uma palha em prol da nossa própria riqueza, incapazes que somos de um mínimo de organização, de autoridade, de responsabilidade, de competência, de inteligência, de decência, de integridade, de isenção e de razão, de racionalidade…

A igualdade democrática espera-nos ao virar da esquina e, já que não podemos ser todos ricos seremos pelo menos todos igualmente pobres, a pobreza e humildade esperam-nos, haja saúde e dinheiro para pagar aos privados que o SNS já deu o que tinha a dar.

A culpa ? A culpa é minha de quem haveria de ser ?

O problema como sempre são as pessoas, que se esquecem de fazer as perguntas que nunca devem ser esquecidas.



segunda-feira, 18 de novembro de 2019

622 - JER E O AERODINAMISMO DAS FORMAS…



 Dei com ele a meu lado quando menos esperava, mastigando alarvemente um pastel de toucinho na mostra gastronómica de Arraiolos há umas semanas atrás. Eu acabara de sentar-me e encomendar uma sangria, no entretanto debatia-me com uma costeleta de novilho, pelo que ambos apesar da boca cheia não deixámos contudo de sorrir um para o outro e apertar vigorosamente as mãos.

E lá fomos entremeando o mastigar e a conversa, ele estava sozinho o que muito me admirou, todavia não chegou para lhe ter tocado nos dois assuntos para ele mais candentes e que mais o alegram, pois para tocar no primeiro, automóveis, eu não me conteria e iria forçosamente tocar no segundo, mulheres, e aí chiaria mais fino. Mantemos uma amizade de décadas e não penso sequer em beliscá-la, mas que a coisa me dá gamas de rir cada vez que a lembro lá isso dá, e bastantes.

O Jeremias, é assim que se chama esse meu amigo glutão, tão glutão como o Baião diga-se em abono da verdade, é um homem feliz, feito, vivido, na casa dos cinquenta e tal mas mantendo o vigor e a frescura que a vida ociosa consentem, não estando porém eu apodando-o de ocioso pois tem atrás de si toda uma vida de trabalho, aliás bem conduzida e bem proveitosa que lhe permite agora viver dos rendimentos e viver bem, melhor que bem.

 Não o invejo, a vida também não me tem sido madrasta e ainda que não seja um homem rico sou um rico homem e isso basta-me. O que nele me faz rir são algumas opções por si feitas ao longo da vida e que dificilmente entendo, percebo-as mas não as aceito, nem tenho que as recusar ou aceitar, nem criticar tão pouco, mas que me fazem rir de modo tragicómico fazem pois colidem fortemente com as minhas linhas éticas e morais. Mas lá iremos.

O bom do Jeremias foi comerciante, negociante, visionário, matreiro, sabido, estulto, e muito ajudado pela mulher, com quem se casara cedo e de quem tem duas filhas lindas como a mãe e fortes como o pai. Enriqueceu, o Jeremias quando deu por si estava rico, tendo-me confessado uma vez que nem sabia como, mas estava, tudo lhe corria bem e o país abundava de parvos, ora quem tem olho é rei, e ele teve.

Depois de rico acometeu-lhe necessidade de diferenciação, que não era como a maioria não era mesmo, notava-se, e havia que comemorar isso tanto quanto assinalá-lo, o Jeremias queria reconhecimento, consideração e deferência, tendo escolhido para tal uma nova identidade, tornou-se ele mas outro, passou a fumar charutos, ele que nunca tocaram num cigarro, e adquiriu em mais um bom negócio dos dele um Mercedes lustroso, um carrão quase novo, nem um ano tinha, carrão que o catapultou para as bocas do mundo e cujas linhas aerodinâmicas lhe deram noção de que a vida fluía, podia ser boa, ser melhor, ser diferente, tão notória era a diferença por ele já sentida quando sentado no Mercedes se arrastava vagarosamente com o fito de dar a toda a gente oportunidade de o ver e de o invejar e cumprimentar.

Uma coisa leva a outra e, quando deu por si a mulher estava velha, feia, pouco lustrosa, marreca, ficando mal quando sentada ao seu lado no tal carrão, de linhas curvas e aerodinâmicas, curvas que ela não tinha e talvez nunca tivesses tido assim tão arrojadas quanto as daquele carro que tanto o impressionava, e mudava.

Rico já estava, e quando a crise veio limitou-se a viver dos rendimentos aforrados, tendo-se habituado a não arriscar nada, sobrando-lhe tempo para passear e para pensar.

E o pior é quando um homem se põe a pensar…

Da mulher, que tanto o havia ajudado nos negócios pois não era nada parva ele já não precisava, tinha o vagar a ociosidade e os charutos, o carrão, as filhas criadas e vai daí pensou dar nova demão em si mesmo e, se bem o pensou melhor o fez, duma só penada desfez-se da mulher, da empenada, da enjeitada e arranjou novo modelo mais conforme com as suas aspirações, toda ela aerodinamismo, linhas e curvas, não tinha nem um ano de divorciada mas foi Igualmente um bom negócio, imagino eu, tão feliz o via todos os dias.

Finalmente uma coisa que o não envergonhava e estaria à altura de competir com o carro e até com ele, pois se muita gente já se virava quando ele passava, agora mais gente ainda pararia e pasmaria ao vê-lo passar. Muito mais gente o glorificaria.

Nunca com ele comentei as mudanças, mas pela surdina via e calava. Ela não dizia uma para a caixa mas na cama imagino as voltas que dava ou daria tal o grau de satisfação que Jeremias arvorava. Montou-lhe casa, por sinal perto de mim, e não sei se lhe arranjou aquela ocupaçãozinha que lhe dá um ar de Madre Teresa de Calcutá e julgará ele a livrará de piores más-línguas que a deste escriba. Ela agora veste uma bata branca e é voluntária, ajuda os doentinhos e os pobrezinhos, e eu sei lá quem mais, não posso imaginar, não posso especular, seria pecado.

Seria pecado, preconceito, juízo de valor, precipitado, errado, sei que não devo ir por aí, não devo especular mas não pude deixar de me lembrar quando mais novo adorava brincar aos médicos, doentes, enfermeiras e outras fantasias tais. E gostava tanto que ainda guardo num velho baú uma farda de enfermeira alva de brancura e cheia de folhinhos e cruzes vermelhas.

Mas não, de Madre Terezinha de Calcutá não tenho nenhuma fantasia, talvez o Jeremias, perguntem ao Jeremias, talvez tenha uma quem sabe ? Só sei que nada sei, só sei que cada macaco no seu galho e ele Jeremias, e a sua mania da ginástica e da eterna juventude lá terá um galho onde se pendurar e a Madre Teresa de Calcutá alguém a quem ajudar se ele cair, a imaginação não tem limites meus amigos.

Nem a imaginação tem limites, nem a fé ou a devoção …