735 - ELIZABETH COTTEN, A ETERNA VOZ DE MENINA
Foi simplesmente
pura casualidade ou mero acaso, ou isso ou um golpe sorte, mas como nada
acontece por acaso fico devedor do Smithsonian,* devedor e grato, já que este
preservou as músicas da minha surpreendente descoberta de hoje, um filão, uma
velhinha com voz de menina e seu violão.
Gosto de
música folk americana antiga, de blues, da sua história e dos seus intérpretes
ou personagens, que por sua vez alimentaram a erudição ou inspiração d’outros
grandes como Bob Dylan Cash, Willie Nelson, Dolly Parton, Kris Kristofferson, Brenda Lee, Patsy Cline e tantos
outros e outras que me deliciaram, nos deliciaram. Foi numa dessas pesquisas
casuais e aleatórias que dei com ela, com essa menina, perdão essa senhora com
voz de menina mas de uma sensibilidade e inteligência raras, sobretudo naqueles
tempos em que a raros era dada alguma oportunidade.
Ouvi-a e depois de a ouvir
quis conhecê-la, porque foi um fenómeno em vários aspectos, porque nunca se
deixou arrastar por contrariedades, embora tenha vivido num tempo em que elas
eram o pão nosso de cada dia. E quanto
mais e melhor a conhecia mais a admirava e tanto a admirei que me vieram as
lágrimas aos olhos por aquela menina que aprendeu a vida sozinha sem nada lhe
ter pedido, nunca, mas a quem deu tudo sem que tal alguma vez lhe tivesse
sido exigido.
Por sorte
a primeira canção que ouvi foi a primeira que escreveu e musicou, aos 12 anos, Freight Train, trem de carga, comboio de
carga, o tipo de comboio em que nos EUA os negros do sul fugiam da escravidão para os estados
do norte, estados abolicionistas da escravatura, comboios que faziam parte rota
da celebérrima Underground Railroad, rota
de fuga usada pelos negros antes e depois da guerra da secessão (1850) e usada
até aos princípios do século XX. Esse famoso tema, o seu tema
de revelação "Freight Train", somente seria gravado em 1957, 50 anos
depois de o ter composto, tinha então como dissera, 12 anos.
https://www.youtube.com/watch?v=43-UUeCa6Jw
https://www.youtube.com/watch?v=X9nzFLKsNZk
Aos sete
anos começou a tocar banjo e aos 11 já havia juntado algum dinheiro, com o qual
comprou uma guitarra. Tornou-se muito boa a tocar esses instrumentos e escreveu
'Freight Train', depois de ver um comboio passar pertinho da sua casa na Rua
Lourenço em Raleigh, Carolina do Norte. Mas o que surpreende é que uma criança
tenha tido a sensibilidade de plasmar isso, esses factos e esses perigos na sua
primeira e melhor canção de sempre, basta que olhemos o poema que dá corpo à
canção e atentemos em especial nos versos sublinhados a negrito;
TREM DE CARGA
'Freight Train'
Trem de carga, trem de carga, corre tão rápido
Trem de carga, trem de carga, corre tão rápido
Por favor,
não diga em qual trem eu estou
Eles não
saberão por qual caminho eu fui
Quando eu morrer e na minha sepultura
E não almejar mais bons momentos aqui
Coloque as pedras na minha cabeça e nos meus pés
Diga a todos que eu fui dormir.
Quando eu morrer, senhor, enterre-me bem fundo
No caminho para a velha rua Chestnut
Então eu poderei ouvir a velha Number 9
Conforme ela vem rolando.
Elizabeth
Cotten teria uns 10 anos quando Mark Twain faleceu, e não sei se chegou a ler
as Aventuras de Tom Sawyer e as de Huckleberry Finn ou não. Num tempo em que poucos
brancos saberiam ler e escrever é pouco provável que a menina que ela foi, negra
ainda por cima, os tivesse lido. Talvez mais tarde o tivesse feito ou lhe
tivessem lido essas duas obras que tão bem caracterizam a época em que viveu e
as dificuldades que a mesma comportava e Twain tão bem retratou, ele que foi
considerado o maior romancista americano de todos os tempos.
Saber história por
vezes só nos faz e traz infelicidade e eu vi o que a sua ligeira biografia não
mostrou, uma biografia aligeirada em demasia. Não
esqueçamos que os movimentos cívicos pelos direitos dos negros nos USA
começaram por volta de 1950, já Elizabeth Cotten teria quase 60 anos e uma vida
vivida, uma vida de submissão e sacrifício que contudo não lhe coarctou a
lucidez de que já em menina dera provas.
Sim, estou
a falar-vos de Elizabeth Cotten, nascida negra em 1893 no Estado da Carolina do
Norte, grande produtor de algodão e numa zona do planeta e data histórica em
que ser negro era ser menos que nada. A biografia de Elizabeth Cotten a que acedemos
ou acedi na Net é omissa em muitos aspectos, e descontextualiza a cantautora da sua época, como que branqueia aqueles tempos, pelo menos esquece-os, olvida-os, ou
esconde-os, com que intenção não percebi. Somente aos 60 anos começou a gravar
e executar publicamente concertos, tendo sido descoberta pela família
folk-singing de Charles Seeger enquanto trabalhava para eles como governanta. Quanto aos Seeger tratava-se
duma linhagem de músicos então muito respeitadíssimos no círculo folk.
LIBBA o Filme – Após
muitas e longas pausas ela voltou a pegar no violão para gravar em filme o seu
álbum de 1958. LIBBA foi baseado nas
canções de Elizabeth (Libba) Cotten, construindo com elas uma ponte abrangendo 40 anos da
sua vida.
Autodidacta,
Elisabette Cotten desenvolveu o seu próprio estilo original. Não sei se era
canhota, mas tendo aprendido cedo e sozinha a tocar violão (tocava também banjo) por ser ainda pouco mais que uma criança só se ajeitou com ele do lado esquerdo, o que lhe deixava livre a mão direita
para dedilhar mas colocava escala e cordas uma ao contrário do usual, outras de
cabeça para baixo, logo obrigando-a a usar não o polegar para fazer vibrar
estas mas sim os dedos mínimo, anelar e médio, estilo que ficou conhecido como
a sua assinatura, e tornou-se conhecido como "Cotten picking".
Uma
curiosidade o estilo que criou, um estilo, o seu estilo, aliás muito peculiar e
que nos deixaria mais de 500 canções, das quais o Smithsonian nos preservou a
memória das melhores e mais populares, tanto pela qualidade da letra quanto
pela qualidade da música, torná-la-ia um fenómeno inesquecivel, imortal.
Foi ao observar
a destreza instrumental de Cotten que o irmão mais velho de Peggy Seeger, Mike
Seeger, ficou extremamente sensibilizado tendo-a levado imediatamente para um estúdio
onde gravou o álbum que mudaria a sua vida: Folk Songs and Instrumentals with
Guitar,1957. Elizabeth Cotten, só em 1970 largaria a vida de doméstica tornando-se
atracção nos grandes festivais de folk até ao resto da sua vida e, já com quase
90 anos veio a ganhar um Grammy, tendo dito ao recebê-lo;
- Que pena não ter aqui o meu violão para vos oferecer uma musiquinha.
Mas é
preciso não esquecer e gritar que aquela menina que tudo sofreu e nada nos negou,
que tudo nos deu, viveu no pior momento da história para a raça negra sem se
deixar abater, tudo aprendeu à sua custa, e em boa hora o Smithsonian preservou
a memória daquela que aos 94 anos e no fim da vida foi agraciada com o Grammy
de "Melhor Gravação de étnicos ou tradicionais" com o seu álbum “Elizabeth
Cotten Live” da etiqueta Arhoolie Records.
Durante
muito do tempo da sua idade bem adulta continuou excursionando e lançando
discos por bem mais de 20 anos. Em 1984 ganhou o Grammy e usando os lucros das
suas turnês e do lançamentos de
discos, assim como de numerosos prémios que lhe foram atribuídos pela contribuição
para a arte popular, Elizabeth mudou-se com a filha e os netos, comprou uma
casa em Syracuse, Nova York, onde anos mais tarde viria a falecer. Sem dúvida
uma vida cheia, vida à qual foram beber os ensinamentos encerrados nas suas canções,
que inclusivamente já foram gravadas e replicadas por Peter, Paul, e Mary, Jerry
Garcia, Bob Dylan, Devendra Banhart, Matt Valentine, Laura Veirs , His Name Is
Alive e Taj Mahal.
Resta
dizer para terminar que esta mulher admirável foi escolhida em 1989, uma das 75
influente mulher Afro-americana tendo sido incluída no documentário fotográfico
“ Dream a World.” Mais uma mulher admirável ... Cada vez são mais ...
Obrigado
Elisabette, paz à sua alma.
BIOGRAFIA DE ELIZABETH COTTEN
Background information
Birth name Elizabeth
Nevills
Born January 5, 1893
Carrboro, North Carolina, U.S.
Died June 29, 1987 (aged 94)
Syracuse, New York, U.S.
Genres Folk, blues
Occupation(s) Musician,
singer-songwriter
Instruments Guitar, banjo,
vocals
Cortesia do Smithsonian Folkways Recordings
https://www.youtube.com/watch?v=7HG6JsG0OfU&list=OLAK5uy_njWqQLqN9T0U_H_f0xd1gTiDLS51ox0SI&index=25
* https://www.facebook.com/Smithsonian
* https://www.si.edu/
* https://www.si.edu/museums
* https://naturalhistory.si.edu/visit/virtual-tour
* https://americanhistory.si.edu/
* https://americanart.si.edu/
* https://www.si.edu/museums/natural-history-museum
* https://folkways.si.edu/
* https://music.si.edu/
* https://www.si.edu/unit/smithsonian-music
https://www.letras.com.br/elizabeth-cotten/biografia
** https://pt.wikipedia.org/wiki/Underground_Railroad
https://www.letras.com.br/elizabeth-cotten/biografia
https://open.spotify.com/artist/1eTZGzLkukATM7FoGltyFs
https://acousticguitar.com/remembering-folk-icon-elizabeth-cotten-and-her-distinctive-guitar-approach/