segunda-feira, 2 de abril de 2018

496 - PÁSCOA - SMALL STORY, SHORT STORIES


Esta é uma história de Páscoa, mas é também uma história verídica. Verdade que terá já a provecta idade de cinquenta anos, ou perto disso, porém não será menos vera. Ao certo só lembro ter sido na Páscoa, num dia quente, radiante de sol, uma segunda-feira, como hoje, mas dos meados da década de 70, e a esta distância sou incapaz de precisar com exactidão, lembro somente que o 25 de Abril não tinha inda ocorrido, se tivesse lembrar-me-ia pois desde aí o país passou a andar em alvoroço e todas as liberdades à solta, consentidas, usadas e abusadas.

Portanto ponto assente, naquela tarde de segunda-feira usou-se e abusou-se da liberdade que ainda nem havia, talvez o tenham feito com anuência, com consentimento, a liberdade exige algo mais que naquele dia ninguém tinha, ninguém teve, e todos pisaram essa linha ténue entre o eu e o outro que o 25 de Abril marcou, delineou, gritou, e grita, grito a que todos fizeram e fazem orelhas moucas.

Mas a intenção desta história não é a de pregar aos peixinhos, mais a mais sermões já ninguém os ouve, e naquela tarde eu procurara sossego, levara a Micas comigo numa Casal K181,uma mota bonita e robusta que adaptara a meu gosto e deitara no meio dos mesmos arbustos em que nos acoitámos e ficámos pensando na culpa, na penitência, na absolvição, morte e ressurreição, comendo carne claro, era a segunda-feira do borrego bolas e tradição é tradição, é para se cumprir, mais a mais nenhum dos dois berrou, não fosse a carne a maior tentação de todos nós.

Estávamos nisto, falando, comendo e retoiçando quando vimos a uns cem ou cento e cinquenta metros um grupo indistinto aproximando-se. Baixámo-nos mais ainda e ficámos à coca. Ela era bonita, de cara e de corpo, tão bonita quão a A.P.B. e espigada para a idade, digo como se diria na época, boa, uma bomba, uma mulheraça, boa como o milho, pernas altas, peito cheio, e linda, sorridente, como quem tem a vida toda pela frente, confiante, e também se chamava Ana.

Devíamos andar todos entre os dezasseis e os dezanove, vinte, não mais, não o creio, ela era única, viva, vivaça, tal qual a A.P.B. sei já o ter dito mas é importante frisar quanta alegria havia naquela vida, naquele corpo, espírito, mente. E eles, oito ou nove, ou mais, não eram muito diferentes dela, aliás notava-se à distância e em todo o grupo o deslumbramento que na altura eu entendi mal e hoje os direi fascinados pela descoberta da sensualidade, da sexualidade, do sexo, andavam feromonas pelo ar e a testosterona fez daquela tarde uma loucura.
               
(1)
Vi-os, de longe mas vi-os, melhor será dizer vimo-los, nada fizemos por isso mas vimo-los, inadvertidamente deixaram-se ver, e quando demos por eles estavam possuídos de uma alienação insensata, descontrolada, irreflectida, estavam todos endoidecidos, tudo aquilo era demais, desinteressámo-nos, era demasiado até para a nossa ideia de amor, mesmo a de amor livre como ficou conhecida essa época que então se iniciava por cá e assentava num slogan curioso, make love not war (1) oriundo do movimento flower power, pelo que eu e a Mica nos virámos um para o outro ignorando o agreste e insensato mundo que nos envolvia.

Depois fiz a tropa, mobilizações, desterros, abriladas, contra abriladas, e só voltei a ouvir falar naqueles fulanos e naquela Ana passados muitos anos. Casara com um deles, não sei qual o critério seguido, ou se houve critério, ou ordem judicial, nem tão pouco se essa ordem terá caído sobre o primeiro se sobre o último, aquilo foram todos à vez, a cena parecera-me a duma cadela no cio rodeada de cães famintos, ou se de entre todos ela escolhera o que amava, não deixa de ser igualmente uma hipótese válida.


Não foram felizes, sei que não foram embora não vos saiba dizer por quê. No máximo posso conjecturar, ele teve que gramar mas não aceitou uma mulher que foi de todos, cagou-se na tolerância, no amor livre, parece que em casa lhe batia, nunca lhe fez filhos. Ela perdeu o sorriso, a alegria de viver, o brilho dos olhos, e por muito amor que lhe tivesse certamente e somente isso não a preencheria.

Tudo isto se passou há quase cinquenta anos, ela matou-se há vinte, ou trinta, não sei precisar, toda a história me ficou sempre atravessada na garganta como uma espinha, fui incapaz de a engolir, há verdades que nos mutilam, e desde então, cada segunda-feira de Páscoa é para mim um martírio.

Houve culpa mas não houve perdão, ao invés houve castigo, ela morreu, matou-se, talvez tenha havido crime, crime moral, crime psíquico. Quer a matilha quer o moralista que destruiu Ana continuam cá, estão entre nós, vivos e bem vivos, este último desnudando-se na protecção da sua casa frente às alunas da UE no outro lado da rua, um exibicionista, um valente.

Não sei onde querem que o país vá ou chegue com esta gente, com gente desta…






(1) Panfleto largamente espalhado pela PIDE em 1973 numa manobra de contra-informação e contrariando um idêntico, e original, oriundo dos USA, versando a guerra do Vietnam (e todas as guerras) e dizendo algo como:  "MAKE LOVE NOT WAR" parecendo a mesma coisa, não o era, reparem bem.

sexta-feira, 30 de março de 2018

495 - O HOMEM PÕE MAS É DEUS QUEM DISPÕE

               Resultado de imagem para ENTERRADO DESENHO HUMOR

Morreu, coitado do Joaquim,

Deus o trouxe e o levou,
a terra lhe seja leve,
e sobre a campa um ramo de alecrim.

Como qualquer um pensou,
mas pensou só no haver e no deve,
e nunca se atrasou nem descuidou,
a César o que é de César.

Pensou também que era gente,
mas não era,
nunca passou dum prepotente,
não fica fazendo falta,
nem deixa saudades,
pena não ter aqui a gaita,
p’ra fazer umas habilidades.

Mas se houver justiça no céu,
eu acredito em todas as trindades,
Deus o meterá a canto escuro como breu,
e o nosso amigo Camões,
ele merece coitado,
não deixará de levar valente apertão nos…
era má rês o amado.
                     Imagem relacionada

quinta-feira, 29 de março de 2018

O QUADRO, SMALL STORY, SHORT STORIES ...

Isto sim é um corpo são e uns braços bem desenhados.

Estão vendo esse quadro em baixo, não esta foto encimando o texto mas a pintura em acrílico de tons cinzentos ? Inda que prenuncie ou assinale um momento feliz, no-lo diz a descontracção do modelo, o seu sorriso maroto, misterioso e a pose abandonada a si mesma, confiante, satisfeita, sendo óbvio que se não trata de um retrato a preto e branco, é uma pintura acrílica de tom acinzentado, 70 x 100, tem uma história, é por essa história que a guardo e a tenho exposta onde bem a veja mal entre na salinha que faz de escritório, não para que a relembre sempre a ela, mas para que não me esqueça de mim. O pintor há muito o olvidei, ele que nem a obra assinou e de quem somente recordo o nome e o parentesco.

Mas olhai bem a pintura, que vedes nela ? Que conseguis de extraordinário observar nela ? Que pensamentos suscita em vós ? Que mais conseguiram ver ? Que vos diz o vosso olhar ? Atrever-se-iam a uma observação crítica por escrito ?

Nada contra, podeis fazê-lo, mas desde já vos aviso que, para além do que nela vejais ou encontreis, nela pintura, o mais importante, o motivo pelo qual a guardo e exponho não está lá, pelo menos não está visível, inda que seja muito mais gritante que a distorção dos cânones ou a facada vitruviana na divina proporção e que os áureos braços deixam ver, especialmente o esquerdo dela, dessa feliz modelo e momento o qual, a ser projectado p’la nossa mente com base no que nos é dado perceber por certo nos mostraria um braço com dois metros de comprimento, se não mais ainda, ora vejam bem, voltai a olhar e observai de novo aquele braço esquerdo, tenho ou não tenho razão no que vos digo ? Terá sido por isso que o pintor não assinou a obra ?

E porque terá sido que a comprei com tão ou apesar de tão visível defeito, aliás a primeira coisa que nele notei e calei ?

Bem, é aqui que devo confessar-vos não ter comprado o quadro quer pela excentricidade do erro quer pelo amor, carinho e satisfação nele visíveis, não adquiri o quadro pelo quadro, comprei-o porque precisava armar-me, estava a armar, a armar aos cágados, e em boa hora o fiz pois os meus objectivos foram atingidos, e nem foi mui difícil ! O preço ? Um quadro que ninguém quereria mas do qual não me desfaço não tem preço, lembra-me a minha própria prosápia, lembra-ma em todos os seus sentidos e recorda-me que naquele dia me armei em cagão, cagão de cagança, me armei em maniento.

O facto de ter atingido o objectivo pretendido, impressionar a mesa e em especial alguém que nela também se encontrava pelo preço de um quadro passa para segundo plano, o beneficio alcançado foi de longe muito superior, fechei um bom negócio embora muito me pese na consciência essa minha atitude de manobrista, de manipulador, mas também de novo-rico, de pato-bravo.

A cultura devia ter-se sentido ofendida mas ela não fala, ai de mim se ela falasse, ai do que me diria quanto a esse dia, esse dia onze de Junho do ano da graça de dois mil e quatro, já lá vão catorze anos, catorze anos em que aprendi muito mas não me isentam da merda que fiz. Era um dia de festa, cem ou duzentos convivas comemoravam num almoço uma qualquer vitória ou aniversário da CHC no restaurante Páteo Alentejano* e entre essas duzentas pessoas estaria alguém mais parvo que eu e a quem dei a volta com a minha erudição, erudição e um quadro para a história a que poderia dar o nome de “Menina dos Xico-Espertos” ou dos Xico-Parvos acudiu-me agora à mente, a menina essa tem arcaboiço para nos meter a todos debaixo dum só braço, não sei quem será ela, mas ele sei, é o Miguel Araújo de quem nunca mais ouvi falar e que nunca mais vi e nem reconheceria passados todos estes anos, espero que pinte agora muito melhor do que pintava. A levantar o cheque foi ele bom, lépido, lesto, e se um dia vier a negar a autoria do quadro este tem entalado no verso, no caixilho de madeira o extracto bancário respectivo.

Palavra que lamento não lhe lembrar a cara, não lembro a cara mas lembro esta história, ambas recordações caricatas, ele por ser filho de artista, eu por me ter armado em artista e armado aos cágados.

       De acordo com o novo AO teremos todos armado aos cagados, no mínimo todos teremos assim ficado nesta verídica mas curiosa historieta, cagados …
      
ATENÇÃO !!!! Procura-se morta ou viva, dão-se alvissaras consideráveis a quem der indicações precisas e verdadeiras sobre a sua identificação e / ou paradeiro actual.


quarta-feira, 28 de março de 2018

MÃE, MEMÓRIAS MANUSCRITAS DE UM SOLDADO DESCONHECIDO *

               

MÃE *


Sim era uma Berliet, perdida no Namibe,

entre Xangongo e Ondjiva, ou Ondijiva,

sim, estava ali o camião,

nem à tua nem à minha nem à nossa espera,

mas estava ali, jazia ali, parado, a jeito.

 

No ar areias rodopiavam

folhas, paus, pequenas pedras,

como bátegas de chuva fustigando-nos,

chicoteando-nos o rosto.

 

Semicerrei os olhos,

avancei às escuras, ás cegas,

o sol teimando, vencido,

acendendo chispas nesse névoa vermelha,

traiçoeira, arenosa.

 

Ondas de pressão cortando os sons e

no silêncio do tumulto,

gritos mudos de aflitos, ecos de trovoadas e

pairando sobre as nossas cabeças,

espadas,

empurrando-nos contra a parede.

 

Peguei em ti,

recostei-te contra o rodado da Berliet,

passei o braço pelos teus ombros,

reconfortei-te, enganei-te,

os teus últimos minutos foram mentira piedosa,

contigo gritando apavorado,

espantado com a brevidade da vida.

 

Bem clamaste por ela, e p’la mãezinha mas,

o inferno era ali e nem uma nem outra te atendeu,

nenhuma estava, estava eu, tu lembraste a Fátima,

e a mãezinha.

 

Sim, eu farei por ela, sim dir-lhe-ei quanto a amavas,

as amavas,

sossega,

sossegaste.

 

Arfavas ao  beijar-te a testa,

abracei-te, apertei-te contra mim,

o teu corpo de cera quente ainda,

lembrando-me promessas e velas num altar,

e enquanto o barulho surdo da refrega emudecia,

tu gelavas,

calavas-te e gelavas.

 

Depois fechei-te os olhos,

para que não visses a natureza do homem,

a Berliet tombada,

os destroços em redor,

o adeus dos camaradas,

e chorei…


Humberto Ventura Palma Baião in manuscrito de "MEMÓRIAS DE UM SOLDADO  DESCONHECIDO", Évora, 28 de Março do ano da graça de 2018                   

 








terça-feira, 27 de março de 2018

JOSÉ CARDOSO PIRES, A NEW SMALL STORY


JOSÉ CARDOSO PIRES, novamente ele. Já tínhamos de Vergílio Ferreira a “Conta Corrente”, a “Conta Corrente Nova Série” e os “Cadernos do Invisível”, ou de Saramago “Os Cadernos de Lanzarote”, obras indo além das suas, obras onde é possível, ou quase, dialogar com os autores, compreender melhor a sua obra, as suas razões, o seu caracter, a sua persona.

Era isso que não tínhamos de J. Cardoso Pires, mas a D. Quixote se encarregou de compilar. “Dispersos”, uma colectânea que se estenderá por uma ou duas dezenas de volumes e reunirá textos ou contribuições deste autor ao longo da sua vida, dados à estampa prefaciando obras de amigos, catálogos de exposições, textos dispersos por jornais, suplementos literários e revistas. Enfim, contributos vários de J. Cardoso Pires através dos quais melhor se nos dá a conhecer e que versarão sobre literatura, liberdade, ditadura, artes, desporto, contos, crónicas, cinema, reportagens, diversões e o que mais se verá.
  
O primeiro texto deste volume versará sobre literatura e intitula-se “A Outra Tendência”, datado de 1957 e publicado no Diário Ilustrado poderia ter sido escrito hoje mesmo… O segundo, “ A Estratégia do Requiem” é uma preciosidade que não quero tirar-vos da boca, leiam, comprem e confirmem por vós mesmos. Para os incondicionais do autor e da sua obra uma pérola, para os restantes filigrana de literatura do mestre, inda que duma forma avulsa. À incontornável Fonte de Letras,  * que me deu a conhecer esta obra e este projecto, o meu muito obrigado.