Tremendo, D. Carminha gritava por mim
apavorada e ferrada ao escadote. Larguei de imediato os brinquedos e pronto lhe
acudi segurando-o firmemente, ao erguer a vista deparei-me com as suas pernas longas,
brancas como o mármore do altar, de um branco leitoso, encimadas por umas
cuecas mais brancas ainda de onde sobressaía o rendilhado em filigrana,
igualzinho ao das irmãs Doroteias e que eu sabia o padre Tiago detestar, por
uma vez o ter visto arrancar-lhas à força sem que a D. Carminha tivesse dado um
pio sequer.
Empoleirada no escadote decorava a
improvisada igreja do bairro onde eu vivia em criança, com folhas de palmeira,
fitinhas coloridas e balões em papel. Estávamos na novena, D. Carminha
capitaneava um grupo de bem-intencionadas benfeitoras, cuja beatitude as levava
a dedicar muito do seu tempo às famílias pobres do bairro operário do Salvador,
o único lugar da cidade que se poderia gabar de uma equipa de voluntariado
assim, onde militavam num propósito comum as mais prendadas e caridosas senhoras.
Sorridentes e devotas organizavam e
comandavam o exército de pobrezinhos da paróquia, especialmente em datas como
esta, de festa, ou nos dias em que a caminheta da Legião Portuguesa vinha
descarregar as ofertas dos United States of América, dias em que os homens eram
escalados para descarregar e as mulheres se dedicavam a limpar e decorar a
pequena e improvisada igreja a que o padre Tiago a D. Carminha e o seu exército
de almas carinhosas davam vida.
Arrastando os meus carrinhos de lata
e os modelos à escala da Corgi Toys e da Western Models pelos compridos bancos
da igreja eu sentia e vivia todo este clima de festa e de emoção, atrevo-me até
a dizer de competição. No dia da dádiva de bens alimentares era visível em
todos nós o empenho e o orgulho em relação às outras paróquias e aos outros
bairros. Hoje sorrio de ironia, na época achava que ninguém tinha tantas
voluntárias da Cáritas, da Misericórdia, do Movimento Nacional Feminino, das
Escravas de Maria, ou das Doroteias como nós, nem tão boas como as nossas,
quero dizer tão bonitas, e perfumadas, e por essa ordem de ideias nem tantos
pobres nem tão miseráveis quanto o éramos no bairro do Salvador.
Gosto de patê de sardinha, e antes de
cada almoço só não me empanturro de o barrar no pão faltando na mesa. Vem
desses tempos longínquos o meu gosto por ele que, pressionado contra o palato
me deixa aquela impressão de granulado miudinho, um pouco como as ovas de
peixe, e me recorda ao passar-lhe a língua, arrastando-o, esses tempos em que
dos USA vinham como dádiva embalagens e embalagens de manteiga de cor neutra, um
pouco sonsa, mas que barrada no pão me proporcionava essa sensação do patê e
das ovas, como as ovas.
A modesta igreja tinha vários anexos,
a sacristia, também ela improvisada, onde o padre Tiago me surpreendera ao
vê-lo insurgir-se contra as rendas em filigrana da D. Carminha, que num ímpeto
rasgara sem que ela largasse um pio que fosse, aflita com falta de ar, e uma
sala enorme, decerto a divisão mais antiga, pois nela inda se via uma
manjedoura, agora servindo de prateleira para arrumações, portanto devia ter
sido em tempos a cocheira da quinta do Sacramento. Pelo chão de terra ali se
passeavam as galinhas, tantas vezes abafadas pelos galos, contudo cacarejando e
intentando livrar-se deles, já a D. Carminho, de nada parecia desejosa de
livrar-se, nem da apneia induzida pelo padre Tiago e se era asmática ou não nunca cheguei a sabê-lo, mas adiante,
divisão enorme esta e que nos dias de distribuição alimentar custava a albergar
todos quantos aflitos com a vida ali acorriam, solícitos.
Também eu, no meio dos outros
estendia as mãos ao alto na ânsia de um pacote de manteiga de cacau ou de
amendoim, não lembro já, o barulho era ensurdecedor e somente recordo as mãos,
muitas mãos ao alto, e a D. Carminho, e cada uma das senhoras da equipa,
cuidando dos seus pobres, atentas, pressurosas, enxotando os que lhes não
pertencessem, altivas no seu desprendimento, sisudas na sua beatitude, felizes
na sua entrega à causa, mirando pelo canto do olho o padre Tiago e diligentes
da sua aprovação.
Repentinamente um clamor ! Os homens
carregavam e traziam as latas de 5 quilos de queijo flamengo vindas dos EUA,
uma bênção, quilos de queijo alaranjado oferecido pela Cáritas aos pobrezinhos
das senhoras do bairro, saboroso, gracioso, nunca eu comera queijo assim, ainda
recordo o seu sabor, o sabor e as letras azuis, uma estrela grande, a águia em
vermelho, estrelinhas brancas, como mais tarde veria na bandeira, muitas
estrelas, as latas de queijo brilhantes como prata, como os aviões nos filmes
da guerra do pacifico no cinema, reluzentes, apetecia-me tocar-lhes,
toquei-lhes, e quando os meus dedos escorregavam pelas latas resplandecentes
numa caricia e o padre Tiago se preparava para lhes furar o fundo com um punção
alguém gritou :
- Não as furem se faz favor ! Preciso
delas, precisamos delas ! São boas para tirar água do poço ! Não as furem !
Demorei anos a perceber aquele homem,
decerto até aos meus doze, ou treze, e a Dra. Escária Santos nos explicar a
pressão atmosférica, o peso e a densidade do ar, a sua omnipresença, as
pressões a as altitudes, a coluna de mercúrio e a experiencia de Torricelli, os
barómetros, a adivinhação do tempo, as altas pressões e os anticiclones.
Só então percebi a irritação do padre
Tiago e o porquê do queijo não querer sair das latas mesmo que abertas, mesmo
que viradas ao contrário, não saindo apesar das pancadas e o milagre do furo
que afinal ninguém lhes fez.
Até que um dia, sem aviso, tudo se
acabou. Os homens falavam excitados ao balcão da taberna do senhor Saúl,
tanques, cravos, mfa, espingardas, liberdade, eleições, o meu pai não saiu pra
trabalhar nesse dia, solidariedade, soldados unidos jamais serão vencidos, pão
paz habitação, pessoas aos magotes na rua, o senhor Saúl bebendo e brindando
com os outros homens, nesse dia nem uma única vez puxou do chicote para enxotar os
cães, nem para nos enxotar a nós.
Havia uma nova epifania na cidade. Sem
aviso tudo acabou, as senhoras, a equipa, a manteiga, o queijo flamengo, o
padre Tiago, o leite em pó que eu tanto adorava comer à guloseima e de boca
cheia, às colheradas, até as novenas se acabaram, e o terço e as missas.
Passados poucos meses cruzei-me com a
D. Carminho, carregava olheiras, os cabelos desalinhados, imagino que ainda
tivesse a pele branquinha que tanto me impressionara e as rendinhas em filigrana
como a minha mana feminista então se gabava de também usar, ainda que tirasse o
sutiã, pra se libertar dizia ela.
Cresci, mudei o vocabulário,
patronato, luta, greve, opressão, saneamento, ocupação, liberdade, povo, num
ápice os heróis judeus passaram a vilões na guerra do médio oriente, e os
americanos de combatentes da liberdade a fascistas capitalistas que tiveram que
abandonar com o rabo entre as pernas o glorioso Vietname, fugindo das forças
progressistas e libertadoras do vitorioso povo indochino que desferiu a machadada final
no explorador ocupante e no opressor exército fascista capitalista dos EUA.
Acabei de ver há momentos pela 4ª ou
5ª vez o Império do Sol, de Steven Spielberg, deliro quando já perto do final
do filme vejo passar frente aos olhos do jovem protagonista o Mustang P 51 com
as cores dos States, as mesmas cores que vi há tantos anos nas latas reluzentes
de queijo flamengo. O piloto acenando, sorrindo por trás da carlinga aberta, o
motor rugindo, a fuselagem brilhando ao sol nascente daquela manhã libertadora.
Aqui, na terra aonde vivo, até das
janelas e portas das casas em alumínio, apesar de proibidas na cidade eu gosto,
e vocês ?