Descobri hoje
uma melhoria em mim mesmo. Tirara a roupa da máquina para ir levá-la lá abaixo à
arrecadação, na garagem, e metê-la no secador, o que fiz. Mas no regresso e ao
subir as escadas, desde o acidente que subia escadas uma a uma como o caranguejo e não andando,
ou seja não pé esquerdo pé direito, esquerdo, direito, e por aí adiante, era só
direito, direito, direito. Hoje pela primeira vez desde há 6 anos e
involuntariamente a perna esquerda, digo o pé direito, avançou ! Alto, emenda,
perdão, digo a perna esquerda e o pé esquerdo, avançaram e subi as escadas a
andar ! Perceberam ? A coisa ainda ta torta mas já ta a funcionar ! Também as desço já do mesmo modo.
Mas tenho que
parar por aqui esta estória que o guarda-nocturno ta á minha espera p’ra irmos
tomar a bica. Matias Sebastião o guarda-nocturno e eu somos velhos conhecidos
e velhos amigos, daí que feita a sua obrigação e sempre que podemos, antes dele se ir à deita troque
dois dedos de conversa e beba uma bica cá com o rapaz, é que ele tem um fraquinho por
mim, além de me atribuir as culpas pelo seu rebate de consciência, mas essa é
outra história e já vamos a ela.
Foi há meia
dúzia de anos. Eu ouvia-os, não sei se chegaram lestos se demoraram uma
eternidade, ouvia-os a eles e ao reboliço à minha volta, ver não via por o muito sangue espalhado
e coagulado me ter empapado os cabelos e a vista, tendo contribuído para
que me tivessem considerado despachado, quer dizer, para o Matias e para o colega eu já estaria como todos havemos de ir um dia.
- Tá lá ?
Comando ? Escuto. – É o Matias, já chegámos, não, não é urgente, não precisam
mandar o helicóptero, é só um e já tá como há-de ir. Escuto – Mandem um
reboque buscar a viatura acidentada, cheira a gasolina que tresanda, um
descuido e pega fogo à serra toda. Escuto. – OK, daqui comando, certo, vai
seguir brigada de desencarceramento e o reboque. Escuto.
Eu já estaria
portanto como há-de ir um qualquer de nós, com os pés para a frente, pelo que não vi
mas senti terem atirado comigo despreocupadamente para uma maca que, por sua
vez foi displicentemente atirada para dentro suponho que de uma ambulância.
- E agora
Matias ? Évora, Beja, ou Évora ?
- É pá Beja
está mais perto mas o tipo é de Évora, depois teriam que o transladar de Beja
para Évora, deslocações, esperas, papéis, chatices, mais despesas, neste caso
temos que nos lembrar da família, Évora com ele que como está mais vinte ou
trinta minutos não irão fazer-lhe diferença nenhuma e a família ficar-nos-á
agradecida.
– Boa, é
mesmo assim Matias, é a gente pensar e agir SIMPLEX.
Atado à maca
lá segui, sentindo os balanços e os encontrões que o terreno provocava na
viatura até ser alcançada estrada firme. Agora que arrefecera as dores
começavam a assaltar-me, a cabeça parecia querer estourar e sentia o cérebro
chocalhar dentro da caixa craniana, sacolejado de um lado para o outro dentro
dela. Nada que os preocupasse, para eles eu já estava como havia de ir um dia,
com os pés para a frente, pelo que percebi o Osório desabafando para o
Matias:
- Não sei
como gostas dessa merda e não te cansas de rockalhada pá, um dia inteiro, muda isso
para a Rádio Nostalgia pá, ao menos essa tem música decente meu Rockabilly do
caraças.
- Não dá,
enquanto não passarmos o Mendro não dá, empurra a cassete. Eu seguia "morto" e mal instalado mas tinha direito a música.
Eles
entretidos fazendo saltar as frequências do rádio e eu sentindo pela inclinação
a subida do Mendro, parte do percurso da Vidigueira a Portel, sendo o Mendro** o
local mais alto da serra com esse nome e onde em tempos havia, ignoro se ainda
existe, uma estação e antena retransmissora da RDP e RTP. Nunca essa subida me
parecera tão íngreme, talvez por ter a cabeça a um nível mais baixo que os pés
e a subida estivesse a durar uma eternidade por onde a ambulância parecia
arrastar-se a passo de caracol.
A repentina
sequência de curvas e contra-curvas deu-me a indicação de que abandonáramos a
estrada principal correndo paralela a Portel e conduzindo a Évora e nos
embrenháramos na vila. Iriam meter gasóleo, andariam estes tipos na estrada com
o depósito na reserva ? Mas não, não se tratava de nenhuma imprevidência dessas
como erradamente eu julgara. Ouvi-os parar, puxar o travão de mão, abrir as
portas e um deles para o outro:
- Já agora
aproveito e compro tabaco.
Aproveitem e
mijem também cabrões de merda ! Não me
façam é perder mais tempo, pensei eu a quem o maxilar, que devia estar partido,
doía p’ra caneco e o inchaço estava a sufocar e a dificultar a respiração,
provocando-me aflição e por certo causa de dores lancinantes das quais nem me
conseguia queixar. Era sobretudo na anca que se concentravam as dores cuja
imobilidade me provocava um formigueiro na perna e estando a tornar-se insuportável. Ocorreu-me que poderia ter a anca deslocada ou a bacia partida,
no entretanto estes merdosos em vez de correrem de sirenes abertas paravam para
tomar uma bica e comprar tabaco. Afinal de contas eu já estava despachado, que
diferença me poderiam fazer mais vinte ou trinta minutos ?
Lembrei-me da
minha amiga Zéza, que de vez em quando ficava hirta do pescoço como quem ao
apertar-lhe os gasganetes lhe tivesse provocado um torcicolo, chegando a andar
assim semanas a fio e com um formigueiro apanhando-lhe a cabeça e lhe provocava uma dor imensa. Queixava-se ela dessa forte dor e digo eu que só não lhe apanharia a língua
porque calar-se era coisa que nunca a vira fazer, sã ou doente cantava como uma
grafonola e, tal como as gralhas, nunca se calava. Dava gosto ouvi-la.
Finalmente
chegados a Évora fui largado nas urgências. A lei obriga ou para efeitos
burocráticos é aconselhável largar os corpos nas urgências, por serem mais
rápidas uma série de formalidades, certidões de óbito e outras que, quanto a
mim felizmente não foram necessárias nem cumpridas pois acabaram por reparar
estar eu mais vivo que morto. O resto da história é banal, lavagem, medicação,
internamento, serviço de observação, reparação, raios X, raios Gama, raios
Beta. Está lá, escuto, afinal não era nada de cuidado, num ano reaprendi a
falar, reaprendi a comer, reaprendi a andar, reaprendi a equilibrar-me numa
bicicleta, reaprendi a dominar de novo a mota, recuperei o gosto pela
leitura, recuperei o gosto pela escrita, estou pronto para outra, obrigado Luisinha, obrigado Dr.ª Cármen Corzo, obrigado enfermeiro Agostinho
Monteiro, estou aqui para o que der e vier e até para um dia estar como hei-de
ir, como havemos de ir todos, com os pés para a frente …
* https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/tanglomanglo
** https://pt.wikipedia.org/wiki/Santana_(Portel) Actual posto retransmissor da TDT.
** https://pt.wikipedia.org/wiki/Santana_(Portel) Actual posto retransmissor da TDT.
O TANGO-LO-MANGO *
Eram nove irmãs numa casa,
Uma foi fazer biscoito;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão oito.
Destas oito que ficaram
Uma foi amolar canivete;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão sete.
Destas sete que ficaram
Uma foi falar francês;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão seis.
Destas seis que ficaram
Uma foi pelar um pinto;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão cinco.
Destas cinco que ficaram
Uma foi para o teatro;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão quatro.
Destas quatro que ficaram
Uma casou c'um português;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão três.
Destas trêsque ficaram
Uma foi passear nas ruas;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão duas.
Destas duas que ficaram
Uma não fez cousa alguma;
Deu o tango-lo-mango nela,
Não ficaram senão uma.
Essa uma que ficou
Meteu-se a comer feijão;
Deu o tango-lo-mango nela,
Acabou-se a geração.
* (Versão POPULAR recolhida por Sílvio Romero)