terça-feira, 30 de outubro de 2018

540 - MEU AMIGO DURÃO by Maria Luísa Baião*…



           Logo que, vai para três ou quatro semanas atrás, cheguei de férias, procurei saber novas do meu amigo Durão. Não que outras situações não fossem para mim preocupantes, simplesmente o mundo hoje coloca-nos tanta complexidade em simultâneo que nos obriga a andar numa autêntica roda-viva. Isto quando não nos atira com enormes problemas para cima, que nos submergem completamente, e tão inacreditáveis que nos fazem perder a fé em tudo e todos. Ao Durão, bom rapaz, um pouco tímido até, aconteceu-lhe há pouco algo que não esperava, para o que não se encontrava preparado e que o deixou muito mal.

Não consegui chegar à fala com ele, mas informaram-me estar a aceitar menos mal o seu destino e a recompor-se do choque que essa brusca mudança na sua vida lhe provocou. Adiantaram-me estar confiante, gente próxima mo afirmou; “que o rumo que está a percorrer é o certo”, fiquei contente, assim ele saiba encontrar depressa o seu caminho, nada de mais sincero posso desejar-lhe.  Foi difícil encontrar alguém que dele me desse novas, todos parecem estar em férias, com nada se preocupando, outros não sabem nem querem saber do que quer que seja, o mal é uma pessoa ver-se numa situação daquelas para conhecer ingratidão e esquecimento.

Nesta busca de novas do meu amigo Durão contactei velhas amigas e amigos, falámos disto e daquilo, tendo ficado a saber, entre outras novidades, ter havido um ilustre académico, aliás ouvido por uma “ Comissão para a Reforma do Sistema Político”, que teve a lucidez de afirmar; “...ter de haver coragem para aumentar os políticos, de entre eles os deputados”. Estou plenamente de acordo, até porque em tempo de vacas magras, se os deputados não forem aumentados mais ninguém o é.

Eu iria até mais longe, seria mais ousada, indexaria ordenado mínimo e pensões de reforma ao vencimento dos deputados e, de cada vez que estes fossem aumentados, quer o ordenado mínimo quer as pensões subiriam automaticamente, não seria justo ?
 
Até por ser tudo uma questão de produtividade, questão para a qual parece só termos acordado agora, é que por este andar qualquer dia ninguém quer ir para deputado, trabalhar a valer. Vejamos, com as reformas que alcançam, as imunidades de que gozam, as incompatibilidades a que são obrigados, e tendo que viver quase exclusivamente do seu parco vencimento, quem quererá um dia trabalhar nestas condições? coitados dos políticos.

Se queremos o que não temos, eficiência, responsabilização, clarividência, produtividade, competência, se queremos melhor saúde, justiça, educação e fiscalidade, é limpinho que teremos que aumentar os deputados! já deveria até ter sido feito há bem vinte anos atrás, talvez os problemas de hoje não existissem! agora assim? assim não iremos lá, temos que pagar a quem trabalhe, e quem trabalhe decerto o merecerá!

Mais conversa para aqui e para ali, contra-ataquei a minha amiga; que o nosso mal está no modelo de desenvolvimento económico e social, que o país está sem rumo, sem estratégia, sem investimento estrangeiro! Sim, sim, respondeu-me ela, na verdade o país não tem controle, cada português que arranja um estratagema para melhorar a vidinha é logo alvo de invejas, é ver o caso dos portageiros da Brisa, dos gestores de falências no norte, da Moderna! não pode ser! Isto como está a ficar não deixa que ninguém se governe! lá está! os deputados têm que ser aumentados! por arrastamento o povinho terá a sua parte e prescindirá destes arranjinhos com que vai endireitando a vida! doutro modo não é possível ! temos que nos preparar! vem aí o alargamento a leste e o fim dos fundos comunitários, isto não pode governar-se só com a fuga e a fraude fiscais !

Bom, chega de conversa disse eu a dado ponto, folguei em saber o Durão mais arrebitado, andava muito tristonho. Vocês conhecem o Durão ? um moço na casa dos quarenta, técnico na edilidade, está em franca recuperação e ainda bem, é bom rapaz, dos meus tempos de escola, meu amigo e amigo dos meus.

Liguei de seguida a uma outra amiga que, malandreca, me atirou logo com esta; ouve lá ó cronista! porque foi que o governo anterior, nos seus piores momentos, não teve nunca sondagens tão baixas como este novo governo agora? Ao que eu respondi que;

- não sei querida!  já não percebo nada ! vou deixar de me meter em política !
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* Escrito por Maria Luísa Baião, domingo, ‎15‎ de ‎Setembro‎ de ‎2002, ‏‎pelas 19:57h e em homenagem a este seu amigo de infância e que sofrera um grave acidente.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

539 - UM OUTRO OLHAR, by Maria Luísa Baião*...


Passei um destes dias frente à Igreja de S. Vicente. Um panejão adejava levemente, a figura nele desenhada prendeu-me a atenção, uma perspectiva das arcadas da cidade, alongada propositada e verticalmente aproveitava o pano, lembrando os arcos da loggia superior de uma catedral, ou a sua nave, vista de viés. É certo que não passava de uma imagem trabalhada das arcadas da cidade, todavia, vistas sob um outro olhar.

Entrei, Évora era a personagem da história contada por Joaquim Carrapato, uma história contada pelo seu olhar de fotógrafo amador que aquela exposição credita como profissional. Ele que o não negue, a sua mestria no aproveitamento e uso da luz e da cor, dão-nos novas perspectivas da simultaneamente voluptuosa e indiferente passagem do tempo, parecendo sussurrar-nos os textos maravilhosos de Paulo Barriga, sobre Évora, e que tive oportunidade de apreciar num evento da Feira de S. João.

Este outro olhar de Joaquim Carrapato, as novas imagens por si encontradas dos velhos recantos e encantos do nosso burgo, todas elas de uma riqueza cromática inigualável, ali despidas da desatenção que quotidianamente atiramos aos pormenores, criam novas perspectivas que nos repovoam o imaginário, desconstruindo aparências, criando novas probabilidades como se de novos lugares se tratasse.
Carrapato não procura acasos, elegeu Évora para nela subverter o observado ali feito incógnita, dando novo corpo à nossa condição de voyeurs, através de nuances lumínicas novas, exteriorizando uma reflexão visual e intencional muito próprias e um sentido delirante do percepcionista calmo, malabarista no manuseio da objectiva, marcando a presença da intenção e da calma inerentes a quem comanda a mão que manuseia a máquina, oferecendo-nos um trabalho todo ele fruto de labor e da insistência de um autodidacta gentleman, roubado às horas livres do bancário cativante e simpático, todo ele e sempre um contínuo esforço ou jogo de paciências, empatia e delicadeza para connosco.

Fica mais que provado ser a fotografia o repositório da sua paixão, permitindo-nos descobrir nele uma apurada complexidade dos sentidos, redundando no encantamento transitivo de si para a imagem e para os supremos valores clássicos desta arte que por vezes aflora assomos místicos, fundindo temas, recriando novos e novas imagens pictóricas, testemunho da objectividade documental arrancada à objectiva.

Joaquim Carrapato é já um mestre nestes jogos com a luz, na graduação de cores tons e vislumbres que nos desestabilizam o sistema perceptivo para nos ciciar a intimidade do misticismo messiânico que o anima, oferecendo-nos novas e subtis metamorfoses dos mesmos lugares de sempre, através da sua criativa construção das imagens que tornam enigmático o espaço enquadrado.

Quem olhar aquela exposição não negará haver ali uma fúria de vencer a estética vigente, num esforço simultaneamente hierático e de erotismo, ao abominar a rotina, deixando descobrir uma forma muito pessoal de olhar para a cidade, descobrir-lhe a poesia e as sombras da noite.

Parabéns a Joaquim Carrapato, que, recriando memórias se vai aos poucos tornando o nosso Koda. Vá vê-lo, esta crónica saiu mais cedo para que tenha tempo para isso. A exposição está aberta até Domingo, 29 do corrente. Só ganhará com isso.


* Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito num Domingo, ‎a 15‎ de ‎Outubro‎ de ‎2006 e como homenagem a um amigo.           


domingo, 28 de outubro de 2018

538 - MEU TESOURO by Maria Luísa Baião * inédito


O pino do Verão não impediu que nuvens negras me toldassem horizontes. Valeu-me a esperança à minha alma agarrada, e o saber bebido em tantas fontes quantos os anos que carrego. Cheguei a ver-me só, perdida na terra do sol que me ilumina, me dá vida. Poeiras ameaçaram tornar-me também a mim pó, uma e outra vez, como em pó se tornara velha e querida amiga que uma vez me dissera, uma única vez; 

           - Vou ali 


mas não voltou...

Curti mágoas, bastantes águas correram por baixo de tantas pontes que não sei, que pensei jamais tornar a ver. A vida volvida uma ferida. Que Inverno este que para mim chegou tão cedo, tão cedo e tão frio. Gelou-me o coração sentir somente o seu bafio. Estio que se prolongou em mim ainda que amenizado p’los arautos da fiança. Os incêndios lavrando em montes e serras e eu noutra guerra. Vi santos, anjinhos, orei, ouvi sinos, chorei, toldei sonhos que tinha, desesperançada já de me devolverem vida minha.

Saudades sofri sem estar ausente, arfar o peito, pulsar a corrente de vida em mim, temente Deus quisesse que assim fosse. Poderia ter sido. E passei horas inteiras, sem ter olhos para chorar, numa cadeira prantada, sonhando passado e futuro e, para mim, ali sentada, não havia presente, dia, noite ou madrugada, o mundo do outro lado da janela. Um dia, outro dia, aurora após aurora, me lembro agora, de ampulheta virada uma, duas, dez, cinquenta vezes e eu doida, ausente. Alheia aos luares, subindo como que encosta após encosta sem achar o caminho ou o fim à minha dor.

Até que um dia, Deus seja louvado! Louvado seja ! Gritei eu. E nessa, e noutras noites, até hoje, já vi, vejo de novo as estrelas no Céu e foram elas, baixinho, num murmúrio, em surdina, que me prometeram ir viver uma outra vez.

Ó quanto cismei, se é que cismava, basta um minuto, a vida nunca é eterna, agora sei que o amei como não amava. E a vida foi-me sendo devolvida aos solavancos. Alegria chorada afrouxou de novo o ritmo das lágrimas derramadas deixando-me a alma descansada. Lentamente se esfumava essa trovoada de Verão que não quero lembrar, sofrer, chorar. Óh ! Como é belo de novo o luar ! Esquecer os ais, deixar de ver sobre a minha cabeça tais punhais.

Já vou de novo, de vez em quando rindo uma e outra vez.

Arrumei a cadeira dos meus prantos, o medo, as incertezas, desencantos, e já sonho de mãos juntas viver a vida outra vez, recomeçar, tê-lo de novo nos meus braços.

Olvidei quanto no meu peito me matava e, extenuada agradeci aos santos, agradeci-Lhe a Ele ter-me ouvido quando pensava que me não escutava. Revivi memórias que te contarei de novo, contar-te-ei escolhas que fiz, escolhas que fizeste, contarei aos outros quanto contas para mim. Não adormeço já cansada, nem os dias rompem em nevoentas madrugadas. Acordo repousada, irada com a vida mas não magoada. Quem não teve já noites parecidas, padecidas ? E eu, que vivera soluçantes os dias, ergo-me de novo exuberante e salto da cama contente. Quero esquecer essas noites, esses dias, poços sem fundo, abismos, noites de mãos soldadas, erguidas, suplicantes.

Não ouço já sinos repicando, finados. Sinto o ar lavado, o coração batendo ritmado. E vejo águas prateadas, no horizonte esperanças a que me agarro e pelas quais choro. Esperança e choro quebram-me o desgosto. Vivi silêncios inaudíveis, sofri até não ter olhos para chorar, sem perspectivas, a vida em sofrimento e o futuro, o futuro outro tormento.

Sofri saudades, sofri, sem estar ausente, arfou-me o peito, senti pulsar a corrente de vida em mim, minha, temente que Deus quisesse que tivesse sido assim. Não foi ! Filhos são mar de saudades, vida que nos agiganta. Mas a tristeza também mata e não só se o pranto solta. Noites escuras, horas surdas, coração batendo em descontrolo, a alma tão plena de amargura que nem a lua a desperta, a vida, via-a deserta.

Meu filho meu tesouro, no teu rosto a luz, o dia transformado em melodia p’rós sentidos, frescura p'ra minha alma. Obrigado vida que me deste tanto, voltou-me de novo toda a calma, submergiu-se o desgosto, galguei uma ponte ao ver de novo flores na tua alma, tornei a olhar as cores nos campos, e  ver de novo no arco-íris vida.

Graças a Deus conheço de novo a esperança e o seu encanto. 

NOTA DO BLOGUE: * Escrito terça-feira, ‎12‎ de ‎Setembro‎, ‏‎cerca das 10:00h por Maria Luísa Baião‎. No início do verão de ‎2006 o nosso único filho sofrera um grave acidente de mota em 24 de Julho de 2006, fora operado de urgência ao fígado que ficara desfeito com o embate, e fora muito dificil e demorada a recuperação desse acidente.



sexta-feira, 26 de outubro de 2018

537 - PEDISTE-ME POESIA, by Maria Luísa Baião*...


                        PEDISTE-ME POESIA

Pediste-me poesia, sem qualquer noção real do desafio não percebido que acabaras de lançar. Não perceberas afinal que te andara a enganar. Sempre adorei poesia, mas por favor entende lá que uma coisa é poesia, outra aquilo que eu fazia.

Não mais que enfeitar palavras, alinhá-las bem juntinhas, polvilhá-las redondinhas, pintá-las de fantasia. Quem vê nisto poesia? Tu talvez, porque acreditas inda haver coisas bonitas em que embalar ilusões e nem reparas que és tu, o embrulho de emoções em que reptícia me intrometo.

Prometo-te alegria, agradeces querendo mais, como quem se delicia com a quimera inventada, a utopia intuída mas que se afunda em abulia como galera perdida na sangria que é a vida.

Baixela de pechisbeque, diria para ser sincera, pois mais não julgo esta escrita que a teus olhos me enobrece. Quem me dera ser poeta, falta-me a arte, o engenho, contudo a ela me entrego, porque quero, porque gosto, me permite divagar, me dá gozo e asas de ouro para com empenho chegar ao que tu dizes gostar.        
                                                               
Também sonho, também almejo alcançar, voando nos céus do desejo o que a essência tem para dar. Se grande a ânsia, a impaciência, maior a agonia e a demência. A vida é tormento, náusea, estertor afã e agonia, fulmine-se a apatia, estoire-se com a anemia em que teimam controlar-nos e, em sôfrego ou vibrante arquejo, revoltemo-nos, impunhamos o desejo como bandeira adejante, vençamos de rompante a opressão ímpia e vegetal desta existência brutal vivida no dia-a-dia.

Nunca dês azo a livranças, letras, rendas e algemas, furta-te a tal tenaz, andanças e contradanças de quem te faz contumaz, sê ferrabrás desse algoz, qual sado carrasco atroz que os dias te põe a prazo. Candeia que vai à frente alumia duas vezes, não deixes escoar a vida como areia em ampulheta, faz finca-pé, não creias nessa tese, não engulas essa peta, renega essa chupeta.

Dou-me a mim mesma alforria, ergo cânticos, alegria, ávida de desassossego incito-me ao sobressalto, agito a perturbação, parto os cântaros, quebro os cânones mas excito-te o coração. É isso que esperas de mim, confundes com poesia a alma que eu abro assim. Poesia não é isto, poesia é uma espia de alma bem luzidia e de mais alta fasquia, o que lês, se comparada é atonia, nostalgia se o quiseres, de quem, c'a desculpa de afazeres, aspiraria ao que tu queres.

Não confundas estas palavras cruzadas com emoções bem profundas de inspirações mais letradas. Quem me dera ser capaz, quem me dera a Primavera e, como a hera, trepar severa às alturas e canduras daquelas a quem invejo venturas e a quem num bocejo imito. O que escrevo, não é poesia é um grito, grito que enfeito a meu jeito, a que dou forma e substância, plataforma para a distância a que me guindo atirá-lo. Não confundas, não me obrigues a passar pela vergonha de medonha imitadora de mente alva e criadora.

São momentos de prazer que daqui tiras ao ler, mas poesia? Isso era sim o que eu mais queria. Prometo-te alegria, se entendes ver mais que tal garanto-te que é simpatia e, se assim for agradeço. Só isto, nada mais peço, quem não gosta de jogar? Que é o que faço afinal. O que não posso dizer, disfarço bem ao escrever, tão bem que por vezes sucede veres escrito no papel, não o que eu penso, não o que eu digo, mas o que para ti sabe a mel.

O que tu gostas, no fundo, é do ar de Carnaval girando em redor dos textos, que nada tendo de profundo, te retiram por minutos do contexto deste mundo. São jogos de palavras, nada mais, são modos de te dizer ou perguntar como vais, são como jogos florais no florir das Primaveras, mas uma coisa podes crer, brincando brincando verdades te vou contando, porque as palavras são veras, porque as palavras são tudo e porque saem bem sentidas, quantas vezes doridas, prenhes e, de um sentimento que folgo atirar ao vento.

      * Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito na Segunda-feira, ‎dia 25‎ de ‎Outubro‎ de ‎2004, ‏‎pelas 15:13:56

domingo, 21 de outubro de 2018

536 - ESTE TRISTE OUTONO EM QUE TE FOSTE...


Somente agora, que permanentemente me convocas o pensamento, reparei nesta imagem por ti escolhida para capa da página na rede social onde pontificas.

Só agora atentei nela com olhos p'ra ver e cabeça p'ra pensar, para cuidar de a observar e, andando isto tudo ligado, nada nem ninguém me convencerá não ter havido aqui criteriosa escolha, tu que nada deixavas ao acaso nem davas ponto sem nó.

Talvez ao escolhê-la já sentisses em ti a melancolia de Outono, um Outono contudo rico de cor e prenhe de significado, talvez sentisses já em ti a nostalgia e o apelo astral do universo para que o teu Karma se cumprisse pois nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. 

Talvez tivesses sido convocada pelo Outono para um outro e novo desafio. Nasceste, amadureceste, deste fruto, foi chegada a hora da metamorfose e, para que tudo em nosso redor rejuvenesça, tal como as folhas que caem, qual húmus, qual Fénix, talvez tenha chegado para ti o tempo e a hora de nova viagem e somente agora eu me tenha apercebido disso, olhando enquanto caminho as suaves cores desta paisagem tua, desta desolada paisagem que me deixaste.

Sim porque é aqui que radica esta tristeza profunda que sinto duradoura, este desgosto incomensurável, este abatimento indefinível contido pela estranha serenidade deste peculiar momento, p’la acalmia da vida em que, diminuindo a passada, apurando a atenção, me parece ouvir o sussurro do vento trazendo-me a tua voz, desculpa Berto, estava na hora de partir para outra, sinto o apelo do meu signo, a coragem do Leão, outros mistérios me esperam.

É debaixo deste sol de Outono que caminho, agasalhado na solidão que me vestiste, todavia sinto paz, contigo partiu a inquietação que a ambos assaltava e finalmente encontrámos a paz calma que Outono permite, este Outono, o Outono da vida, de calma, da paz que apesar de tudo tanto ambicionáramos porque o sofrimento não é catarse nem é divisível, mas propaga-se e multiplica-se sem controlo, como a divisão celular que numa citocinese imparável origina a vida. 

Deus deixou-nos o livre arbítrio mas, egoísta, guardou pra Ele mesmo a última palavra, deixou que chegasses a Outono, deixou que amadurecesses, que desses fruto, frutos, tão frutuosa foi a tua vida, cumpriste o teu papel, foste marioneta nas mãos Dele e agora o Outono, o cenário ideal para saíres de cena, o silêncio outonal, o dever cumprido, apesar de tudo obrigado meu amor.

É por entre os espinhos do silêncio que caminho, lembrando-te, concentrado nas memórias de ti qual porto de abrigo precipitadamente procurado e nas quais me refugio, habituado a que aí encontre a abundância pois sempre colhi do que semeaste, sempre fui bafejado p’la felicidade enquanto viveste e agora o silêncio, somente o silêncio e estas constantes lembranças de ti. 

Penso-te e, inconscientemente pontapeio as folhas multicoloridas que o Outono espalha neste lugar de desolação em que, numa atitude comodista me vejo, ignorando a transformação que diante de mim se processa, não reparando, não estranhando, não dando atenção nem contemplando a metamorfose, a renovação, a recôndita regeneração que esta abundante miríade de odores e cores anunciam.

No céu está agora mais uma estrela, dos cambiantes cromáticos de Outono renasce como Fénix a vida, enrolando no seu âmago a vitalidade que matura secretamente o recomeço. Por isso doravante te recordarei em cada Outono, a estação tua. Nem só, mas em cada Outono recordar-me-ei especialmente de ti que sempre recusaste a tristeza, a rendição, a renúncia, o declínio, a resignação. 

Nasceu uma estrela, “Sois pó, e em pó vos haveis de converter” disse o Padre António Vieira citando a Bíblia, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, apostrofou e provou Lavoisier e no que creio firmemente. Também eu saberei manobrar os meus Chakras, transmutando esta dor melancólica numa lição correctora, qual recompensa que me tenha sido dada, qual fruto maduro deste Outono singular em que te vi partir, abalar, Outono que não esquecerei jamais, como jamais te esquecerei a ti meu amor, Outono que recordarei sempre como aquele em que foste incensada e me foi concedido o privilégio de ver-te subir aos céus.

Algo renascerá das cinzas, tenhamos esperança, após a tempestade sempre sempre sobreveio a bonança.

Adeus meu amor de sempre, adeus meu amor eterno.


Maria Luísa Baião quando começámos namorando. 

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

535 - UMA MUI QUERIDA ESTRELA NASCEU ...


         Queridas amigas e amigos, apesar da minha imensa dor sinto o dever de vos informar e a cortesia a isso igualmente me obriga, que a minha extremosa esposa já não se encontra entre nós.


A minha Luisinha deixou-nos na passada terça-feira, dia 16, pelas 18:30h e quando, internada em Medicina 2 do Hospital do Patrocínio, em Évora, aguardava vez e transferência para uma unidade de cuidados paliativos em Montemor-o-Novo, integrada na Fundação S. João de Deus.

Eu próprio me obriguei a um período de nojo a que a perda dessa extremosa esposa me compeliu, como sabeis o luto é uma catarse. Acreditem que perdi uma mulher com M grande ao ter perdido a minha Luisinha, porém ela teve tempo para deixar entre todos nós e especialmente em mim a sua marca, nunca conheci dor tão lancinante, nunca até a ter perdido me apercebera quão importante para mim era a sua presença.

Todas as vontades expressas por ela estão sendo cumpridas integralmente, por isso não houve lugar a velório nem a funeral, sobretudo devido ao facto, altruísta, de ter doado o corpo à ciência. Infelizmente fê-lo com prejuízo de todas as amigas e amigos que desejariam ter-lhe deixado o testemunho duma última despedida.

Felizmente deixou-nos sem dor, ascendeu aos céus com o vagar duma chama que lentamente se extingue, sinto que Deus a terá chamado a si para lhe poupar sofrimentos desnecessários, foi assim que vi esta dolorosa partida que vos estou comunicando. Faço-o com imensa dor, nunca eu conheci dor tão lancinante, espero que me compreendam e, apesar da minha infundada rebeldia deixo-vos o testemunho da minha amizade.

Entendei que não o podendo fazer pessoal ou individualmente, deixo contudo o meu muito obrigado a todas e a todos. Uma vez mais obrigado pela vossa franqueza, despeço-me com um grande abraço que nos quite por toda a simpatia, carinho, humanismo e ternura com que sempre a trataram.

Por tudo isso me despeço de vós, que sois credores de um meu abraço,

Sempre considerando-vos,

Humberto Ventura Palma Baião




sábado, 6 de outubro de 2018

534 - ALBERTO, O NOSSO PRÍNCIPEZINHO …


 Bem sei que ela não resolveu puto, que só nos demostrou solidariedade, que somente vincou a necessidade de se colocar um fim naquele flagelo,

- Mas a sua figura frágil de princesinha teria sido boa publicidade pra ti amigo Alberto, “Irmão, ela não resolveu o teu problema mas o mano Alberto resolve. Vem ter comigo quanto antes”. A gente tem que puxar pelo cabeça ó Alberto.

Esta conversa teve lugar há poucos dias, talvez uns dois meses, ele tomava a bica com o nosso amigo Lopes que por sua vez o levara a ver a sua artística exposição fotográfica e eu, sentado e mordiscando à boca cheia o meu suspiro topei-o pelo canto do olho, mas reconhecei-o logo.

Conhecera-o numa época em que pouco se pensava em coxos, manetas, pernetas, manetas e noutros amputados e aleijados de variada índole, tão poucos parecia haver. Alberto, encerrado num mal enjorcado cubículo do hospital ia improvisando umas próteses com recurso a madeira, correias de coro, rebites, ilhoses, pano felpudo, espuma densa, falando, acordando e acertando pormenores com os médicos. Através de apreciações efectuadas a olhómetro e experimentações, lá ia gizando milagres mercê de muitíssima habilidade e ainda mais paciência e sensibilidade.

Eu viera de licença de férias, estaríamos aí por 76 e depois de uns bons dez minutos observando a arte, habilidade e imaginação com que ele ia pondo coxos a andar e manetas capazes de fotografar, digo de ser vistos e fotografados, luva disfarçando a prótese fixa, rígida, bonita mas não tão prestável quão uma boa perna de pau ou um par de muletas em madeira resistente mas leve. Tão absorto que às tantas larguei a minha sem sequer pensar;


- Ó amigo Alberto, em Angola é que você se iria safar bem com este negócio amigo, há por lá coxos, pernetas, manetas e gente sem fim para quem você seria Deus, para quem você seria um milagre.

Que não respondeu-me,

- Baião, chegaram-me os 24 meses que lá passei, gosto disto, gosto de Évora, da pacatez alentejana, até deste nosso calor, tão diferente daquele.

E deste modo ficámos conversados, não voltaríamos a ver-nos até, salvo erro 82, data do meu regresso definitivo a estas planícies, estava o amigo Alberto de malas aviadas e bilhete na mão, ia de abalada, a evolução da técnica e o progresso do país tinham-lhe acabado com o improviso, a imaginação, a habilidade e o emprego. Doravante próteses só biónicas ou robóticas, assim o ditavam as regras da CEE, modernidade, recurso a técnicas e materiais evoluídos, aparelhómetros e soluções com que ele nunca sonhara, a sua arte ultrapassada, a habilidade desprezada, agora eram exigidas habilitações, técnicas e conhecimentos que ele não dominava nem apresentava, não perdera o emprego, o emprego, aquele emprego é que simplesmente se extinguira, agora mãos robóticas seguravam ovos sem os partirem e pernas sintéticas dobravam o joelho e davam a passada sem se lhes pedir, perna de pau agora, quero dizer então, só um gelado que a Olá vendia, não sei se ainda vende.


Depois disto perdi-lhe o rasto por uma catrefa de anos, para ser sincero esqueci-o completamente, o meu problema são pedras nos rins, foram demasiados anos a beber água de charcos, riachos, ribeiros, rios, lagoas e até de poças, pelo que nem o Alberto me poderia valer nem que se prontificasse a fazer-me dois rins em marfim ou em pau-preto.

Não fora ele com a sua cara de pau encostado ao balcão beberricando uma bica e jamais o teria lembrado ou reconhecido. Voltara, o negócio correra-lhe bem mas a princesa rebentara com ele e, vendo a minha cara de espanto,

Outro capitão pensei eu, recordando um oficial da cavalaria do exército britânico James Hewitt* o militar que dera aulas de equitação à princesa, querem ver que este Alberto também andou enrolado com a princesa…

Coisa que ele, prontamente adivinhando os meus pensamentos me esclareceu,


- Nada disso, ela não foi lá desminar coisa nenhuma, foi incentivar e convidar a que outros desminassem… Levou com ela agentes da poderosa indústria inglesa, farmacêutica, protésica, em especial a de material ortótico, representantes da banca, uns promovendo os produtos, de pacemakers nucleares a muletas de um alumínio brilhante que a pretalhada adorou, outros abrindo linhas de crédito, oferecendo dinheiro para lhes comprarem tudo o que vendem, achas que eu tinha hipóteses Baião ?  Ainda falei com o gerente do Totta Aliança, quem financiara o primeiro carro que tive e que me respondeu já estar reformado e o banco ser agora do Santander e espanhol, o Banco do Alentejo foi-se, o Banco Português do Atlântico foi-se, o de Fomento foi-se, o Totta Aliança foi-se, o Fonsecas & Burnay, o Crédito Predial Português, o Pinto & Sotto Mayor, o Lisboa e Açores idem, isto está tudo mudado e já nada é nosso amigo Baião, nem Angola é nossa nem Portugal é nosso, olha, pretos nunca mais os quero ver na frente e brancos ainda menos.


Baião, como deves calcular voltei há pouco tempo mas já deu para notar, isto por cá está bom é para quem não faça nada e é a isso que me vou dedicar, vou auto reformar-me, já não tenho cabeça nem paciência para estas merdas, nem p’ra estes merdas. Vou meter baixa, preencher uns papéis, dizer que sou sírio, croata ou líbio, tunisino, libanês, tudo menos português… 



https://www.sabado.pt/social/internacional/detalhe/ha-20-anos-diana-foi-pedir-o-fim-das-minas-em-angola

terça-feira, 2 de outubro de 2018

533 - EM ABSTRACTO NEM HAVERÁ QUADRO…


              

Comecemos pelo princípio, o dia e o facto de alguém ter afirmado não perceber patavina do quadro acima e da autoria do Pintor Eborense Marcelino Bravo. Confesso que fui apanhado desprevenido pela afirmação, tanto mais que eu mesmo ficara atrapalhado pois já em tempos confessara ao próprio autor não entender esta sua nova tendência. Mas homem que é homem nunca deixa uma senhora de mãos a abanar, sobretudo sendo tão linda como a que me cutucou, e logo ali lhe garanti não ficar sem resposta, desse-me uns dias e lhe diria de minha lavra não somente o que este quadro me diria mas arriscaria mesmo dizer-lhe o que p’la cabeça do autor poderia ter passado quando o pintou.

Precisamente no pp 15 de Dezembro de 2016 visitara eu na Biblioteca Pública de Évora uma exposição do pintor Marcelino Bravo, artista e pessoa que em casa apreciamos e admiramos, sobretudo a sua particular visão do Alentejo e temáticas afins, cousa que este eborense magistralmente reproduz com traços e cores peculiares e inconfundíveis. Porém nesse dia deparei-me com um Marcelino Bravo fora dos carris, quero dizer descarrilando dos temas a que eu estava habituado e esperava ir encontrar, eu explico melhor, digamos que metade da instalação era ocupada por temas normais, habituais nele, Alentejo & Cª, mas a metade restante apresentava telas inovadoras, diferentes, sem título nem tema, aleatórias, de uma corrente anormal ou inusual nele, uma dessas telas a que acima vos apresento, coisa que me confundiu, e disso dei conta ao autor logo que a oportunidade surgiu, os novos quadros apresentados eram uma coisa da psico, um abstraccionismo tido em moda há umas boas décadas e geralmente fruto de estados mentais alterados, mentes provocadas, excitadas por uma linha de branquinha ou uma pastilha de LSD, coisa que não me parecia ser o caso do nosso amigo Marcelino Bravo.

Depois fui à vida, cuidar de, antes de voltar a pronunciar-me sobre o tema, averiguar primeiro a fundo essa coisa dos abstraccionismos e que para ser franco eu tinha muito enterrado ou esquecido na memória. Não esqueçamos que a corrente abstracta caracteriza-se pelos aspectos aparentemente inusitados e duma criatividade que poderíamos considerar sem regras ou limites, aspectos que poderão ter estado presentes na mente do pintor quando da realização da obra, os quais de igual modo podem causar idênticas interferências na nossa percepção dela quando a olhamos.

Como se esta complexidade aleatória e sem limites não bastasse, existe ainda uma corrente de críticos entretidos em demonstrar que se usadas, ou havendo recurso a drogas psicotrópicas, propositado ou casuístico, expandir tal os limites da mente, limites cujas expressões pictóricas, pois é de pintura que falamos, nos são dadas por essas experiências (alguns chamam-lhes alucinações), causadoras tanto de mudanças de expressão quanto de percepção e fruto de sinestesia (sentir várias sensações em simultâneo) experiências cujos estados nos darão a complicada pintura abstracta. É o que eles dizem, eu nunca fui chutado a uma exposição, pelo que a vendo como ma venderam a mim. Marrei uma vez na ombreira duma pastelaria mas essa é outra história, um dia vos contarei.

“Decididamente” alvitrou um amigo com quem discutia esta questão quando lhe expus o pormenor da seta laranjinha curvando abnegadamente à esquerda e como que terminando o movimento no próprio umbigo, o nosso amigo Marcelino já andaria preocupado com o centrão e com esse tal partido o qual só pensará em si mesmo e nos seus interesses, ao que o Zé me respondeu prontamente, como se a seta lhe tivesse sido atirada a ele;

- Repara pá ! Aquilo não e uma setinha laranja, antes um cogumelo alaranjado e não foi o nosso amigo Marcelino que andou fumando, porque quem como tu, qual olho de lince ibérico perscruta as profundezas da arte é que certamente foi buscar essa acutilância visual a uma qualquer linda chupaça gânzica !

portanto o fumador quântico ou gânzico terei sido eu, chupaça gânzica, esta nunca a tinha eu ouvido, era Dezembro, inverno, frio, chuva, vento, nuvens, escuridão, e eu certamente para me aquecer e esquecer o bucolismo inbernal amandei um charro abaixo debaixo dum qualquer chaparro antes de me apresentar na exposição.

Aceito ter sido eu a despoletar a polémica trazendo o quadro à baila, ter sido eu quem viu no dito cujo uma curvilínea barriga de perna acabando num sapatito verde de salto alto, verde, um gadget anti Prada portanto, um verde lindo, lindo verde meu verdinho, não há cor igual à tua, tinta verde dos teus olhos…

Tinta verde dos teus olhos
Escreve torto no meu peito
Amores tenho eu aos molhos
Se pró teu me faltar jeito…

No meu peito escreve torto
Na minha alma a dar a dar
Nunca mais eu chego ao Porto
Se lá for por este andar

Nunca mais eu chego ao Porto
Ao porto de Matosinhos
Adeus verde dos teus olhos
Estão cá outros mais escurinhos… (2)


Mas uma seta laranjinha guinando nada subtilmente à esquerda, uma perna bem feitinha e um sapatinho verde de cristal não foi tudo quanto eu vi ali, vi igualmente um fantasma da ópera carregando os pavores que o pintor provavelmente terá em relação ao futuro, à sua condição, ao valor da pensão, e naturalmente torci o nariz, foi o bastante para que a Olinda, olhando o céu límpido, fruindo a calma do fim da tarde, orelhas espetadas na música clássica do vizinho e afagando dois gatos preguiçosos enquanto alertava para as brincadeiras duas crianças algures na rua e simultaneamente toda ela puro ócio… Como se estivesses no meu terraço, preguiçando numa cadeira debaixo do guarda-sol, atirei-lhe eu.

- Achas? Eu vi tudo isso mas não me atrevo a interpretar um quadro. Sou demasiado realista não achas ? Eu vi isso aqui ao pé de mim mas não me atrevo a interpretar um quadro. Sou demasiado realista.

Do que eu deduzi afirmar ela ser a arte um artificio, lembrei então dum diálogo com Marcelino Bravo e em que ele me respondera;

- Amigo é a incontestável e incontornável beleza feminina, o homem deve conservar presente essa memória dela e expressar com grande tolerância os elementos constituintes dessa beleza, e dentre esses elementos esforçar-se por harmonizar cores e formas.

Claro que entendi conservar como lembrar e deixar memória, testemunho, e ser liberal, não só literalmente como com a palete e as cores, harmonizá-los entre si, tornar o real ainda mais belo, estás a captar Olinda ? Muito me disse em poucas palavras o mestre Marcelino eu sabia ou no mínimo intuía haver ali Maria...

A conversa/debate tomou às tantas uma dimensão que dificilmente acompanhei tal era a profusão e a confusão gerada pelos intervenientes, sei que alguém questionou se a arte seria de quem a produzia ou de quem a consumia, ao que de pronto respondi ser a arte de todos, ter a arte duas faces como as moedas, e duas caras como o juiz do fresco de Monsaraz, uma expressando a ideia de quem a produz, a outra espelhando a ideia de quem a observa, à arte, não à Maria, ou à Olinda, ou à Fatita.

Devo fazer notar que nesta parte da minha intervenção fui longa e entusiasticamente aplaudido, alguém não se contendo e de modo arrebatado, como que inspirado, gritou mesmo:

- Muito bem observado meu !!

Naturalmente tomei um ar grave, sério e professoral, tendo aproveitado para fazer um brilharete e acabar por dar o resto da lição;

- Quem pinta, quem compõe, esculpe ou escreve, expressa uma ideia que pode não ser coincidente com a ideia de quem mais tarde observa essa pintura, partitura, escultura ou romance... Temos o caso grave e extremo de Richard Wagner e da sua "Cavalgada das Valquírias" cuja música lhe valeu ser acusado de enaltecer o nazismo... Não há provas a não ser circunstanciais, mas a simpatia dos povos Wagner perdeu-a para a sua arte soberba, pois afogadas em soberba lhe sobravam as manifestações anti-semitas que entre o fim da República de Weimar e a ascensão do Nazismo foi acumulando e lhe valeram o repúdio mundial que hoje não lhe perdoa a superior arte de compor aliando-a a investidas bélicas, em especial a partitura que aqui abordei umas linhas acima, a "Cavalgada das Valquírias" (2)

Mas em frente que atrás vem gente, pois o bom do Marcelino não anda somente com as pernas da Maria na ideia, noto ali à direita o esvoaçar duma borboleta, se é isso que lhe anda dando volta no estômago, a Maria ou as suas pernas, nunca saberei, a lembrança foi minha, mas que ele teve o cuidado de marcar essa cena com um X teve, e se é o X dos Xutos ou não ignoro, fico na mesma como a lesma, nunca o soube apreciador dos Xutos, em boa verdade nem desapreciador. Será que ele xuta ?

A amiga Fatita que é de Guimarães aventou a ideia de serem visíveis ali uma igreja, igreja ou catedral de cristal e os raios cósmicos da fé, nascidos das ondas do mar, mar de onde sairá numa curva parabólica um engraçado golfinho, saído do mesmo mar de onde se ergueu o Mostrengo, ou quem sabe se o Fantasma da Ópera, vindo das profundezas do Sena, enleado em teares que ela jurou ter ouvido tique taque tique taque tique taque num ensurdecedor martelar de máquina de costura, por sua vez olhada com surpresa por um veado... Juro que depois disto pedi ao Nuno que não trouxesse mais bebidas para a mesa ou a análise temática da composição poderia sair adulterada, ao que ele anuiu propondo um sumo de figos da índia, agora anda nessa, cada um com a sua pancada…

É que em boa verdade uma pintura, um simples quadro, tem uma miríade de perspectivas sob as quais pode e deve ser analisado, da composição ou distribuição dos elementos na tela, desde a relação figura principal - fundo envolvente, ao conteúdo ou natureza temática, às linhas, sejam curvas, rectas ou quebradas, aos pesos visuais ou ao peso dado a cada elemento e naturalmente também ao equilíbrio entre eles que por sua vez determinarão a tensão dinâmica da obra. Daí a importância dos centros e dos eixos nela, devendo tender p'rá simplicidade, não esquecendo evidentemente a textura, formas e cores seleccionadas.

Isto quem vê almas não vê corações e quem vê corações não lhes enxerga a alma, a verdade é que cada cabeça sua sentença, a do Marcelino uma, cada um de nós soma outra e num ápice aparecem meia dúzia delas dissertando sobre o quadro, que de tão abstracto tanto pode ser uma coisa quanto pode ser outra, ou outras e, em abstracto, poderá não passar de pura imaginação nossa e nem sequer existir quadro nenhum…

Ai o Malandro do Marcelino que terá ele andado a fumar ??? ! ! !