domingo, 28 de agosto de 2011

87 - CONTIDO ...............................................................



Como, nem eu sei. Sei apenas que, contra todas as expectativas e contra tudo que são os meus hábitos e as atitudes repentinas que me caracterizam, contive-me.

A custo mas contive-me.

Assinalei o facto, lançando foguetes, dando ordens à banda para tocar e festejar, mas obriguei-me a ficar ali, contido, expectante, não fosse inadvertidamente tocar nalgum botão que disparasse coisa perigosa ou não pretendida. 

Por uma vez na vida terei que volver propositados sacrifícios, tanto mais se as coisas valerem a pena, mor das vezes, nem tanto pelo seu valor intrínseco, que nem estará em causa devido à incapacidade da sua avaliação ou estabelecimento dos seus limites, mas por uma questão de ética ou de princípios, coisa em que fui educado a rigor e jamais ousaria pensar sequer que tal alvitrar pudesse.

Ali fiquei portanto, quieto e calado, mudo e quedo, numa alegria interior que, por cinismo nunca repartiria e egoisticamente fruía. Por momentos pareceu-me o planeta ter parado, estacado, enquanto eu, contido, gozava, desfrutava essa sensação inenarrável que cambiou em remanso toda a visível inquietude do mundo. Até o sol me pareceu ter ficado por momentos suspenso no seu aparente movimento de translação, as aves quietas, pairando imóveis nos ares, enquanto eu, travando a fulgurante, impetuosa ou arrebatada e fogosa exuberância que permanentemente me anima, estoicamente subjugava o espartano que já era, que sempre fui.

Por uma vez na vida tomara uma decisão em três minutos, e por uma vez na vida me pareceu ir pagar cara essa decisão. Ainda hoje não sei se por ter sido demasiado breve e espontâneo na resposta, se por ter demorado muito mais que habitualmente demoro em qualquer aspecto da minha vida. Viver comigo é, por vezes ou quase sempre, como que viver com o cobrador de bilhetes de uma montanha russa. Muita gente o sabe e jamais lhes ouvi um queixume, os meus amigos mais próximos o sabem melhor que ninguém, sem que lhes tenha escutado um único lamento, comigo nunca há desânimo, ninguém tem a vida parada, mas por esta vez, três semanas de meditação me aconselhei e impus, porquanto sei quão pesadas analisadas e ponderadas vão ser as minhas atitudes e palavras.

Arriscar-me-ia apostar que à milésima, e submetidas no final a um escrutínio de coeficiente de ponderação cuja amplitude, ou margem de erro, que por certo adivinho ínfima. Tudo porque contra todas as expectativas e contra tudo que são os meus hábitos e os comportamentos repentinos que me caracterizam, me contive, a custo mas contive-me. Agora é já um outro tempo, é tempo de dar tempo ao tempo, de deixar assentar a poeira, de me remeter a mim mesmo a um período de resignação, de contenção, de renúncia, contemplação, abdicação, de sujeição a outros desígnios.

Com paciência me conformei já, e de antemão confirmo não ser o mesmo, agora privado da minha impetuosidade orgânica, da minha impulsividade natural, pelo que, durante nem sei quanto tempo, provavelmente nem me reconhecerão como eu, mas um outro, a quem a espontaneidade tenha sido roubada que, cabisbaixo, sonhador e saudoso, caminhe por uma vez como alguém designou, nem sei com que autoridade, de “caminhada com os pés assentes no chão”. Pois que pelo menos a alguém sirva esta atitude, esta imolação, a alguém cuja subtileza capte quanto sacrifício cabe neste meu tão pequeno quão grandioso gesto.

Durante dias, qual estilita, ou asceta, de olhos em baixo, observarei as condutas do mundo, as consciências do mundo, a elas me submeterei com parcimónia, examiná-las-ei sem a mínima severidade, e vos juro, tentarei pela segunda vez saber para que serviu e qual o proveito de quase cinquenta anos de vida exemplar. Mas igualmente vos garanto, que se o resultado a que chegar, concluir, como por uma vez aconteceu já, nada ter de proveitoso ou sequer valer a pena, erguer-me-ei do meu retiro, do meu recolhimento, e farei o que não fiz então, gritar-vos que NÃO !

NÃO VALE A PENA O QUE QUEREIS !

NÃO ACEITO A VOSSA VIDA !

A VOSSA UNILATERAL, FALSEADA E REDUTORA FORMA DE VIDA !

QUERO SER EU PORRA !

DEIXAI-ME SER EU ! DEIXAI-ME !

LARGAI-ME DA MÃO ! VOCÊS ESTÃO LOUCOS !

SOIS TODOS LOUCOS !

MAS EU AINDA NÃO !!!!!




quarta-feira, 24 de agosto de 2011

86 - UMA SIMPLES PERGUNTA ? ...



Uma pergunta fácil tem por vezes uma resposta difícil, “Qual a importância de Vasco da Gama e de “Os Lusíadas” no Processo de Globalização”?
A pergunta foi-me atirada por um painel de gente, motivada e interessada neste fenómeno que nos rouba empregos e dificulta a vida, numa sessão ricamente participada de uma Associação Cultural e Recreativa de uma vila dos arredores de Évora, há bem pouco tempo elevada a cidade e que busca, com estes encontros culturais, suprir o que a economia lhe recusará sempre, seja por falta de dimensão ou massa critica.
Mas essa é outra questão que não desejo abordar aqui hoje, pois se repararem a minha preocupação do momento é portar-me bem, como se portam os homens cultos, e dar-vos de mim uma imagem que não conhecem, também ela verdadeira, tanto que nem vou botar aqui alarvices nem excessos desses a que me dou liberdade sempre que de coração nas mãos escrevo para o meu blogue.
Voltando ao discurso, diria que não foi uma pergunta fácil, muito exigiu que eu dissesse, muito ficou por dizer, como aliás ficará em todas as perguntas que a este título façamos, por muito bem organizado que tenhamos o discurso o saber e o pensamento.
Esta questão teve o desaforo de amigos chegados, alguns velhos alunos, hoje homens de ciência e, como eu, amantes da história e do saber, ainda que não tenhamos tido o apoio da “Comissão Para os Descobrimentos”.
Mesmo essa comissão, acredito, teria sido insuficiente para recordar tudo que aprendemos na escola sobre o tema, e que hoje é, enquanto fenómeno global, uma preocupação essencial de países pobres, sobretudo como Portugal, agora atirado para a periferia do centro de gravidade económico e europeu.
Em primeiro lugar, como terão sido os encontros de culturas e trocas de influências a esse nível durante os descobrimentos? 
Sabemos alguma coisa, delas nos falam “Os Lusíadas”, de Camões, “A Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto, e um ou outro testemunho que foi ficando da nossa presença, um ou outro escrito de historiadores e sábios nossos de então, ainda que pouco acesso tenhamos ao que de importante em nós contou para os outros.
Não é despicienda esta posição, éramos os melhores na altura, demos mundos ao mundo. Como então e ainda hoje se diz, revolucionámos os saberes, levámos a dianteira na observação directa das cousas, directa e sistemáticamente, exercida sobre a natureza e seus fenómenos, sobrepusemo-nos ao empirismo vigente, subvertemos lentes e escolásticos, fizemos ciência...
Mitos mantidos durante séculos viram a sua gratuidade e inutilidade despedaçada pela realidade concreta das nossas observações e experimentações. Fizemos verdades.
Matámos os monstros falados em textos eruditos e velhos de séculos, que deixaram de o ser, demos a conhecer novos povos, novas raças e cores, novos costumes, novos animais e plantas, novidades inimagináveis, explicado fica o eco " ter Portugal dado novos mundos ao mundo "...
Esses novos mundos, ou o novel conhecimento de outros povos, raças, nações e sistemas, foi o princípio de uma nova era de que Portugal foi a vanguarda, mas do qual é hoje, tristemente, a periferia.
Ainda hoje é incalculável o preciosismo que demos ao surto do espírito europeu moderno. Foi nosso o maior contributo para a revolução cultural da Idade Moderna, já que o valor da experiência se impôs ao saber livresco estabelecido até então.
Quanto mais os nossos descobridores recorriam aos livros legados pelos antigos, mais os crassos erros de que enfermaram durante milénios eram por nós denunciados de forma evidente. Pela observação directa se chegou à verdade, a experiência tornou-se a matriz de todas as coisas; “Sabe-se mais agora num dia pelos portugueses que se sabia em cem anos pelos romanos”, o que destronou de um dia para o outro todo o saber das autoridades clássicas.
A cultura letrada, livresca, tornou-se prisioneira do cepticismo em toda a parte e em todas as latitudes era confrontada com as verdades que diariamente dávamos ao mundo. Ptolomeu, aquele que foi um dos maiores “geógrafos” da antiguidade clássica estava enganado, nós não somente redesenhámos as suas “cartas marítimas”, como evidenciámos e corrigimos outros erros seus, como o da inabitabilidade dos equadores, erro que permaneceu até que os portugueses o desmistificaram, e desmentiram, foram portanto os portugueses quem revelou à Europa a forma geográfica e correcta do mundo.
Como nos víamos por essa época uns aos outros? 
Nós europeus, desde a antiguidade, sempre víramos os Africanos como caricaturas grotescas e monstruosas, fruto do pouco conhecimento que sobre eles tínhamos.
Durante a Idade Média o africano e o ameríndio eram assimilados à noite, ao mundo das trevas, às forças do mal, ao diabo, com origem num misto de animal e vegetal.
Não esqueçamos que durante este período da história o negro era a oposição do branco, o branco a pureza, o maravilhoso, a luz, o que levou a que não tivesse havido dificuldades em associar a cor negra dos africanos e ameríndios ao diabo, o senhor das trevas.
Mais tarde os mesmos africanos e ameríndios são vistos ou representados como servidores domésticos, fruto da sua sina na época da escravatura, mas sempre como selvagens.
Veja-se a este propósito como estão caricaturados no lado direito do Claustro da Sé de Évora os personagens negros ali esculpidos.
E africanos e ameríndios, e outros, como nos viam eles a nós europeus?
Naturalmente como seus senhores, e ainda que a arte seja por natureza e regra subjectiva, obras há, gravadas ou esculpidas em bronze ou em dentes de marfim, dentes de elefante, em pau-preto, e outras cenas e gravuras ou relevos que nos dão essas imagens. Que imagens?
Imagens em que o europeu é identificado pelas roupas, pelos narizes pontiagudos, lábios finos, cabelos longos e lisos, barbas aparadas. Mais tarde, em plena época colonizadora, essa imagem irá reflectir a sátira social e a crítica, englobando o lado grotesco do colono e ou do cipaio, funcionário negro ou mulato, (este ultimo filho da rica miscigenação que promovemos) ao serviço do branco.
E desta forma, prenhe de empatia e vinhos alentejanos, acabámos a nossa noite cultural, rica de conteúdo e ensinamentos, em que me portei como um senhor, vejam só, provavelmente nunca me imaginariam assim, tão franco e directo sou noutras crónicas espetadas neste blogue.
Na realidade não fora o excesso de acolhimento a estragar a festa e tudo teria corrido pelo melhor. A minha participação foi muito aplaudida, considerada e comentada, não fora isso e não teria apanhado a bebedeira que apanhei, de caixão à cova, acordei com um rosto angelical erguendo-me a cabeça a tempo de não me afogar no meu próprio vomitado, com a mão segurei-me ao seu corpete, que de imediato se rompeu deixando antever quatro seios alvos e mais redondos que a bola com que jogou a selecção, e ainda não sei como, mas recuperei a tempo de um internamento a soro no hospital local, pois acabei de ver a primeira janela do dia sem ser em duplicado !
Estou pronto para outra mas, conferências, a partir de hoje só pagas, ficam já sabendo, bem caro me custou o último fato que caguei todo.
Ficou sem conserto.

85 - MULHER DE TRINTA ANOS * ...


Percorro o cais devagar, e enquanto mantenho um olho na moto à minha frente, pelo canto do outro espreito o Sado, ali ao lado. Longe vai o tempo em que nos obrigavam à sua travessia nos velhos ferrys até Tróia.

Jovem ainda eu deliciava-me então com essas travessias, cavalgando as ondas mansas e buscando reter no rosto os salpicos arrancados às águas pela afiada proa do barco. A travessia era coisa para menos de meia hora, um quinhão de fantasia em que, ancorado nas imagens dos navios amarrados às docas, deixava a imaginação deambular pelos mares das Caraíbas logrando ver um paquete, coisa rara nesse estuário. Júlio Verne despertava em mim à simples visão de um submarino se calhava vê-lo, dada a proximidade de uma base da nossa marinha na península. Como disse, tal bastava para que as “20.000 Léguas Submarinas” me acudissem ao espírito.

Grandes petroleiros descansavam nas docas secas da SeteNave, num sono reparador que se prolongava por meses, mas eram as “dragas” que, quando jovem, mais me impressionavam, quais “catrapilas” dos fundos aquáticos, raspando e cavando caminhos no imenso espelho de água, com os seus mecanismos, veros alcatruzes da “nora” de Neptuno, e para mim a maravilha das maravilhas. Olhando-as perdia-me no tempo, e, tal como as formigas humanas que nas docas secas rodeavam infatigavelmente os monstros marinhos em hibernação revitalizadora, também os seres humanos que nelas manobravam impressionavam os meus pensamentos de jovem imberbe e cru adolescente. Corpos de Adónis, despidos cintura acima, deixando reluzir ao sol o aço de músculos que invejava, troncos em V, bíceps e peitorais ameaçando abandonar aqueles corpos suados. Numa ocasião dei por mim pensando a minha sexualidade e a licitude da inveja que esses corpos me provocavam. Dúvidas de jovem, que, se desde cedo me assaltaram, também depressa as transpus. Outras ficariam anos esperando resposta, foi-me difícil a adolescência, é difícil a vida. Pior se a não interrogamos, questionamos, provocamos.

De modo que talvez pela inveja desses corpos cedo pendi para o culturismo. Recordo-me vagamente de um dia, na brincadeira, ter imaginado um homossexual naquela equipa de machos, a bordo de uma draga dançando nas águas do Sado. Coitado, pensei, e por aí me fiquei. Cada um no seu mundo, e o mundo das dragas e dragões é o das grandes obras, tendo o meu pensamento derivado para as épicas e heróicas aberturas do Canal de Suez e do Panamá, as dragas ainda meninas à época, ao pé de super-homens que morreram aos milhares para que as obras ficassem.

Regressei pelas complexas e eternas obras do Porto de Sines, um elefante branco em transformação, e deslumbrei-me mirando veleiros na marina, de onde derivei para uma draga acostada ao cais, onde Apolos se atarefavam manobrando pesadas cordas de amarração, suados, musculados, corpos batidos por leve brisa correndo apressada, agitando pavilhões de navios, flâmulas tremeluzentes, mantendo pairando no ar as gaivotas, como magia, e tornando o mundo menos real. 

Uma mulher de trinta anos passeava-se pelo cais, parecendo deixar-se conduzir pelo vento ébrio que de tempos a tempos lhe levantava a saia azul clara e pregueada. Ao fazê-lo descobria-lhe as pernas altas, esguias, bem desenhadas, coxas firmes, bronzeadas, contrastando com o negro rendilhado das calças. Cabelo louro, revolto, a que ela não ligava e mais acentuava a ideia de que a brisa a conduzia, fechada em pensamentos por adivinhar.

Uma horda ululante de dragões largou a draga, de mimos e vernáculo a rodearam mal se aproximou. Cães que ladraram porque lhes invadiram o território, mas cujos latidos se esfumaram nos seus sentidos à medida que ela, indiferente, se afastou. Não se deixou intimidar, altiva, e de sorriso nos lábios seguiu o seu caminho até desaparecer na intensa luminosidade do dia. Os cães calaram-se, voltaram ao cordame, deixaram de ladrar à lua, lua que a técnica conquistara, e onde o homem ensaiara os primeiros passos. Agora promete-se Marte para breve, não se sabe quanto teremos que esperar, mas teremos.

Para onde vamos? Porque será que o homem teima transpor difíceis obstáculos, tão longínquos, descurando a miséria que o rodeia, a pobreza, o analfabetismo... Mas essas parecem metas que não seduzem ninguém. Só queremos o que não temos, desgraças já temos quanto baste. Agora queremos Marte, Vénus, o Sol na eira e a chuva no nabal, estamos vendendo a alma a troco de missangas e lantejoulas.

A draga vai cavando devagar devagarinho, parando, partindo, até que descobriu, enterrado na lama dos fundos, o corpo daquele rapaz que se matou num domingo. Paro de pensar, paro para pensar, como vão longe estas recordações, como a vida depressa me fez homem, esquecer o culturismo, Adónis, gays, mulheres de trinta anos, homens perdidos, vento, gaivotas, docas, dragas e dragagens.

Só agora reparo como tenho andado ocupado com a vida, demasiado ocupado, tão ocupado que pensar, recordar, parece um sonho lindo, um luxo caro, mas não é ainda uma heresia pois não?
                    
                                Eu, 30 anos depois do passeio relatado...                  

* Nota: texto escrito e publicado no Diário do Sul no ano de 1998 

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

10 HISTORIAS ALEATÓRIAS SEM CAUSALIDADE OU NEXO...............


 1 - Firmou as costas no encosto, baixou-se para forçar a patilha e fez deslizar lenta mas resolutamente o banco para trás. Debruçou-se sobre o manipulo das velocidades, repuxou-lhe com a violência das urgências incontidas o elástico do fato de treino beijando-o sofregamente, sorvendo-o…
  
2 - Mal a viu esbugalhar os olhos atirou o banco para trás recostou-se no assento, semicerrou as pálpebras, cruzou as mãos acima da nuca e não conseguiu evitar um sorriso largo, rasgado, que somente o sol, incidindo-lhe no rosto de forma obscena o distraíu da tão adivinhada e desejada fruição. Para se proteger deu uma sapatada na pala do sol com a ponta dos dedos e inspirou profundamente o cheiro a eucalipto que inundava a manhã…

3 - Quase oito da manhã, sentindo fome dirigiu o caminhar no sentido da vila, até lá ainda havia muito a palmilhar, o bosque parecia não ter fim, nem fim nem caça, até a espingarda lhe pesava já, mais meia hora e sairia dali, a mata de eucaliptos nunca lhe tomara mais que esse tempo e se a sede não atormentasse tudo estaria bem no reino da Dinamarca.
  
4 - Mas, olha esta, por esta não esperava eu. Reconheceu-a de imediato, já uma vez ou duas o atendera por causa de assuntos de licenças, de caçador e da arma, involuntariamente encolheu-se sob a protecção de uma ramada. Era demais, aquele descapotável também não lhe era estranho, algumas vezes se cruzara com ele na cidade. Sem saber porquê apontou cuidadosamente e disparou três ou quatro vezes se tanto, não mais porque o telemóvel acusando bateria fraca se foi abaixo desligando-se.

5 - Sim, era ela, Sonja Santos Madevski , e era dela também o apelido ainda que errado, o apelido teutónico prestava-se a erros, tivesse ela tantas notas de cem euros quantas as vezes que o apelido lhe aparecera errado e estaria podre de rica, mas para a frente que atrás vem gente, que lhe queriam ? Um envelope ? Anónimo ? Nunca lhe acontecera, nem era seu hábito, mas sendo a curiosidade maior que o gato, ou a gata, viesse ele, sim, devia ser para ela, nem havia na repartição mais ninguém com aquele nome, muito menos com aquele apelido, ainda que errado, e esta ? Mas, olha esta, por esta não esperava eu, pensou ao abrir no recanto e no recato da sua secretária o misterioso envelope.
Merda.
Mas que é isto ? 

6 - Encostou nele ternamente a face inflamada, soltou a patilha da coluna de direcção e levantou o volante ao máximo para que não lhe trilhasse a orelha. Viu-a desenhar um anel fechando o indicador contra o polegar, e, dizer que não se lembra de mais nada será mentir, lembra-se e bem, aliás duvido até que alguma vez esqueça, recostado, sorriu e distendeu-se, o que pensou não se lembra mesmo, aliás nesse momento nada mais interessava, nem saberá dizer quanto durou a eternidade, segundos ? Minutos ?
E ela, e ela e a manhã, tão frescas… Não aguentava mais, não aguentaria mais, repentinamente retesou-se, sentiu os dentes ranger, fecharem-se os olhos, a terra tremer… 
E, oh ! E esta ? Era por esta que eu esperava ! Já está, tão bom, tão bom mas acabara, tudo tem um fim, amanhã há mais, sorriu, adormeceria se pudesse, se adormeceria…

7 – Espero estejas atento e vigies, bem sei que tão cedo o risco é pequeno, quase nem há risco, mas nunca fiando, detestaria ser apanhada com a boca na botija, salvo seja, com as calças na mão, merda, saiu-me pior a emenda que o soneto, há dias em que mesmo que a gente não queira nos foge a boca para a verdade, gosto desta colónia, gosto do cheiro intenso do after shave pela manhã, ainda activo, não queria mas temos que despachar isto, não gosto da fazer estas coisas a correr mas detesto chegar atrasada ao serviço, tipo bombo da festa na repartição, temos que passar a encontrar-nos mais cedo, mais cedo ou mais tarde, e a trazer o meu jipe, este carro da mau jeito, aleijo sempre os rins. Adoro quando começas aos estremeções, não deixarei que fiques retesado ainda,
tens que sofrer mais um cadinho amorrrr
onde puseste a caixa dos lenços que não a encontro merda……

8 – Já vais ver cabra, há sempre complicações ? Aposto que se me vão acabar as complicações cabra de merda. Há mais marés que marinheiros.
Quando não são as fotografias são os documentos, ou as datas expiradas, e quando não são os documentos é qualquer outra merda, e quando não é outra merda qualquer são os exames psicológicos ou psicotécnicos ou o caralho, a carta, a arma, a licença, o BI, o cartão do cidadão, o NIF ou o número de contribuinte ou simplesmente a merda da puta que te pariu ?
Já vais ver cabra, verás minha grande cabra, vais ver que se me vão acabar as complicações, todos temos esqueletos no armário minha puta de merda, e o teu é bem grande minha putéfia, aposto que se acabaram as complicações grande cabrona, já vais ver cabra, depois me dirás cabra … o ultimo a rir será o que rirá melhor, a ver vamos…

9 – Isto dos carros é uma coisa tramada. Nunca os escolhemos pelas boas razões, nem pelas más, depende da opinião claro, do ponto de vista e do que esperamos ou queremos deles.
Este dá cabo dos rins, nem me permite distender-me se quiser tirar uma soneca, para alem de dar muito nas vistas claro, e nem é por ser ou não claro ou escuro este… O jipe é bom mas é claro, vê-se a milhas, ou a léguas, vê-se ao longe até de noite e só passaria despercebido no pólo norte e o meu outro carro é aerodinâmico demais e a superior inclinação do pára-brisas tira-lhe espaço por dentro, tudo que não seja ficar quietinho e sentadinho tem limitações.
Já não fazem carros como dantes, nem a tradição é como antigamente, veja-se como planeavam um carro, veja-se o espírito que presidiu à concepção do Renault Twingo em 1993… Vão ver à net, e como sei que a preguiça vos alimenta deixo aqui o link e algumas palavras tiradas desse site e desse projecto…

10 – Extractos verídicos extraídos de publicidade, divulgação, informação e conversas sobre o Renault Twingo  “ O Renault Twingo é um citadino de porte mini da Renault Surgido em 1993. Inicialmente foi concebido para apenas possuir um tipo de carroçaria uma versão e um motor. A carroçaria é de 3 portas tipo monovolume (foi este modelo que impulsionou outras marcas a fazerem citadinos tipo monovolume).
O nome Twingo é uma mistura de "Twist" e "Tango" versão inicial apenas possuía como opção o Ar Condicionado, o tecto de abrir panorâmico e estava disponível em várias cores claras e alegres.
Os seus bancos traseiros rebatiam e deitavam, o que juntamente com os da frente, tornavam-no uma cama. tornou-se objecto de culto em muitos países e deu lugar a vários clubes de fãs e entusiastas. Com um conceito verdadeiramente intemporal.
O grande trunfo do Twingo original é o facto de ser pequeno por fora, grande – enorme! - e modular por dentro. A possibilidade de optimizar ao máximo o volume do habitáculo fazia com que o Twingo, aquando do seu lançamento, fosse claramente o líder do seu segmento em altura, largura e no espaço para os joelhos, graças, ao seu inovador banco traseiro deslizante.
Os bancos do Twingo original podem ser completamente rebatidos e formar uma “cama” com dois lugares e esta era outra prestação única no panorama automóvel da altura. 
O Twingo é um modelo citadino da Renault, também conhecido como o carro de fazer filhos. (Uma revista espanhola elegeu-o como «o carro do amor»).  84/85 




http://youtu.be/z4H_NvhAAnA 


84 - O LIVRO QUE NUNCA LI ..........



A vida é por vezes tramada, como neste caso insólito, em que tanto fez por mim um livro que nunca li, e também precisamente por isso, eu seja hoje quem sou, e como sou. Estávamos em finais da década de sessenta ou princípios da de setenta, festejava-se o “Dia do Lusito”, em que por todo o país a Mocidade Portuguesa promovia essa habitual encenação do Estado Novo.

Eu terminava nesse ano a minha quarta classe, e depois das cerimónias da praxe, deixaria um ramo de flores no padrão dos “Descobrimentos”, ali à zona da Nau e cantaria o hino nacional de braço estendido, bem à moda nazi, marchando, bem alinhado, rumo ao antigo Liceu (hoje Universidade), onde no respectivo ginásio (agora um moderno anfiteatro) tiveram lugar as solenidades do dia. Não o sabia, só o descobri quando reclamaram a minha presença no palco, tinha sido considerado, ou indiciado para receber o prémio do aluno mais aplicado, (obrigado professor Pulga) pelo que, juntamente com os melhores alunos das restantes escolas desta cidade, fui contemplado com um exemplar do tal livro que nunca li, “O 2º Cerco de Dio”, rubricado pelo autor, que nunca vi nem conheci, como não recordo quem, para além do meu professor, me tenha cumprimentado ou dado os parabéns.

Fiquei orgulhoso, desci as escadas impando de glória, e só no regresso a casa, na companhia de um colega que recebera as “Aventuras de Tintim”, o Ananias Quintano, constatei que o livro nada me dizia, e mais indicado seria para gente como o Prof. Vitorino Nemésio, cuja conversa na TV de igual forma eu não entendia minimamente. Mas é curioso como tanto fez por mim um livro que nunca li, aquele prémio, aquele louvor, teve o condão de me dar tantas vezes coragem para superar o insuperável. 

E tantas foram as vezes em que conquistado o “Quadro de Honra” me senti eufórico e redobrei a força anímica para prosseguir, quantas as que me levou a não desanimar quando algumas vezes as pautas acusavam num vermelho bem carregado; “reprovado”, sinal de que ia por mau caminho e havia que arrepiar, sinal que me fazia cair em mim e meditar sobre o que andava fazendo, sinal ou expressão que nunca me causou os traumas ou desvios emocionais que, alegam agora os novos pedabobos, ameaçam as criancinhas. Chumbava em Julho? Repetia em Setembro, era só uma questão de trabalhar mais e melhor, como tudo na vida era uma questão de trabalho, e quando me sentia vacilar lá me vinha o livro à memória; se foste capaz uma vez, és capaz cem vezes, o remédio é sempre o mesmo, trabalho trabalho trabalho e muita aplicação. Resultou.

Mas porque não li o livro, perguntar-me-ão? Primeiro porque sendo uma criança, um jovem, não me senti minimamente atraído por um livro para adultos, depois porque já homem não considerei o dito com qualidade suficiente que justificasse a sua leitura. Mas foi no percurso da criança até ao homem que o livro mais me ensinou; ensinou-me o porquê de certos prémios, o que era o Estado Novo, o fascismo, o nazismo, a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa, a PIDE, o corporativismo, o colonialismo, o partido único, a guerra, a subversão, a sublevação, a subserviência, a emigração, a censura e a repressão. Conheci os rostos que emoldurados na parede da sala de aulas pensavam por todos nós, que velavam por todos nos; o Senhor Presidente do Conselho e o Senhor Presidente da República. Aprendi o que era a esperança e a democracia, a diferença entre elas e tirania ou vilania, foi por isso que, como muitos portugueses, assisti com ironia ao desmoronar desse mundo tão caricato quanto as razões de quem o mantinha de pé.

Curiosamente um livro de história que nunca li traçou o meu percurso, licenciei-me em História e em Ciências Sociais na mesma casa que serviu de palco à cena relatada. Nunca o li, mas já o folheei, não é história, nem sequer um romance histórico, antes um rol de subjectivas vãs e vagas ideias de quem pretendeu com ele dotar o país de glórias pelas quais não passou, nem no tempo dos Castros e Albuquerques, nem mesmo no tempo áureo do Salazarismo, que a todos tentou sacrificar face ao poderio militar da União Indiana, que nos reclamara o que era seu em 1956.

Está na estante há tantos anos que para mim não é já um livro, é uma taça, um troféu, a seu lado, e sobre quem cai já a mesma desconsideração e lástima, obras de políticos actuais, vivos e activos ou reformados, mas igualmente condenados na minha escala de valores a serem fuzilados numa urgente oportunidade.