domingo, 28 de outubro de 2018

538 - MEU TESOURO by Maria Luísa Baião * inédito


O pino do Verão não impediu que nuvens negras me toldassem horizontes. Valeu-me a esperança à minha alma agarrada, e o saber bebido em tantas fontes quantos os anos que carrego. Cheguei a ver-me só, perdida na terra do sol que me ilumina, me dá vida. Poeiras ameaçaram tornar-me também a mim pó, uma e outra vez, como em pó se tornara velha e querida amiga que uma vez me dissera, uma única vez; 

           - Vou ali 


mas não voltou...

Curti mágoas, bastantes águas correram por baixo de tantas pontes que não sei, que pensei jamais tornar a ver. A vida volvida uma ferida. Que Inverno este que para mim chegou tão cedo, tão cedo e tão frio. Gelou-me o coração sentir somente o seu bafio. Estio que se prolongou em mim ainda que amenizado p’los arautos da fiança. Os incêndios lavrando em montes e serras e eu noutra guerra. Vi santos, anjinhos, orei, ouvi sinos, chorei, toldei sonhos que tinha, desesperançada já de me devolverem vida minha.

Saudades sofri sem estar ausente, arfar o peito, pulsar a corrente de vida em mim, temente Deus quisesse que assim fosse. Poderia ter sido. E passei horas inteiras, sem ter olhos para chorar, numa cadeira prantada, sonhando passado e futuro e, para mim, ali sentada, não havia presente, dia, noite ou madrugada, o mundo do outro lado da janela. Um dia, outro dia, aurora após aurora, me lembro agora, de ampulheta virada uma, duas, dez, cinquenta vezes e eu doida, ausente. Alheia aos luares, subindo como que encosta após encosta sem achar o caminho ou o fim à minha dor.

Até que um dia, Deus seja louvado! Louvado seja ! Gritei eu. E nessa, e noutras noites, até hoje, já vi, vejo de novo as estrelas no Céu e foram elas, baixinho, num murmúrio, em surdina, que me prometeram ir viver uma outra vez.

Ó quanto cismei, se é que cismava, basta um minuto, a vida nunca é eterna, agora sei que o amei como não amava. E a vida foi-me sendo devolvida aos solavancos. Alegria chorada afrouxou de novo o ritmo das lágrimas derramadas deixando-me a alma descansada. Lentamente se esfumava essa trovoada de Verão que não quero lembrar, sofrer, chorar. Óh ! Como é belo de novo o luar ! Esquecer os ais, deixar de ver sobre a minha cabeça tais punhais.

Já vou de novo, de vez em quando rindo uma e outra vez.

Arrumei a cadeira dos meus prantos, o medo, as incertezas, desencantos, e já sonho de mãos juntas viver a vida outra vez, recomeçar, tê-lo de novo nos meus braços.

Olvidei quanto no meu peito me matava e, extenuada agradeci aos santos, agradeci-Lhe a Ele ter-me ouvido quando pensava que me não escutava. Revivi memórias que te contarei de novo, contar-te-ei escolhas que fiz, escolhas que fizeste, contarei aos outros quanto contas para mim. Não adormeço já cansada, nem os dias rompem em nevoentas madrugadas. Acordo repousada, irada com a vida mas não magoada. Quem não teve já noites parecidas, padecidas ? E eu, que vivera soluçantes os dias, ergo-me de novo exuberante e salto da cama contente. Quero esquecer essas noites, esses dias, poços sem fundo, abismos, noites de mãos soldadas, erguidas, suplicantes.

Não ouço já sinos repicando, finados. Sinto o ar lavado, o coração batendo ritmado. E vejo águas prateadas, no horizonte esperanças a que me agarro e pelas quais choro. Esperança e choro quebram-me o desgosto. Vivi silêncios inaudíveis, sofri até não ter olhos para chorar, sem perspectivas, a vida em sofrimento e o futuro, o futuro outro tormento.

Sofri saudades, sofri, sem estar ausente, arfou-me o peito, senti pulsar a corrente de vida em mim, minha, temente que Deus quisesse que tivesse sido assim. Não foi ! Filhos são mar de saudades, vida que nos agiganta. Mas a tristeza também mata e não só se o pranto solta. Noites escuras, horas surdas, coração batendo em descontrolo, a alma tão plena de amargura que nem a lua a desperta, a vida, via-a deserta.

Meu filho meu tesouro, no teu rosto a luz, o dia transformado em melodia p’rós sentidos, frescura p'ra minha alma. Obrigado vida que me deste tanto, voltou-me de novo toda a calma, submergiu-se o desgosto, galguei uma ponte ao ver de novo flores na tua alma, tornei a olhar as cores nos campos, e  ver de novo no arco-íris vida.

Graças a Deus conheço de novo a esperança e o seu encanto. 

NOTA DO BLOGUE: * Escrito terça-feira, ‎12‎ de ‎Setembro‎, ‏‎cerca das 10:00h por Maria Luísa Baião‎. No início do verão de ‎2006 o nosso único filho sofrera um grave acidente de mota em 24 de Julho de 2006, fora operado de urgência ao fígado que ficara desfeito com o embate, e fora muito dificil e demorada a recuperação desse acidente.



sexta-feira, 26 de outubro de 2018

537 - PEDISTE-ME POESIA, by Maria Luísa Baião*...


                        PEDISTE-ME POESIA

Pediste-me poesia, sem qualquer noção real do desafio não percebido que acabaras de lançar. Não perceberas afinal que te andara a enganar. Sempre adorei poesia, mas por favor entende lá que uma coisa é poesia, outra aquilo que eu fazia.

Não mais que enfeitar palavras, alinhá-las bem juntinhas, polvilhá-las redondinhas, pintá-las de fantasia. Quem vê nisto poesia? Tu talvez, porque acreditas inda haver coisas bonitas em que embalar ilusões e nem reparas que és tu, o embrulho de emoções em que reptícia me intrometo.

Prometo-te alegria, agradeces querendo mais, como quem se delicia com a quimera inventada, a utopia intuída mas que se afunda em abulia como galera perdida na sangria que é a vida.

Baixela de pechisbeque, diria para ser sincera, pois mais não julgo esta escrita que a teus olhos me enobrece. Quem me dera ser poeta, falta-me a arte, o engenho, contudo a ela me entrego, porque quero, porque gosto, me permite divagar, me dá gozo e asas de ouro para com empenho chegar ao que tu dizes gostar.        
                                                               
Também sonho, também almejo alcançar, voando nos céus do desejo o que a essência tem para dar. Se grande a ânsia, a impaciência, maior a agonia e a demência. A vida é tormento, náusea, estertor afã e agonia, fulmine-se a apatia, estoire-se com a anemia em que teimam controlar-nos e, em sôfrego ou vibrante arquejo, revoltemo-nos, impunhamos o desejo como bandeira adejante, vençamos de rompante a opressão ímpia e vegetal desta existência brutal vivida no dia-a-dia.

Nunca dês azo a livranças, letras, rendas e algemas, furta-te a tal tenaz, andanças e contradanças de quem te faz contumaz, sê ferrabrás desse algoz, qual sado carrasco atroz que os dias te põe a prazo. Candeia que vai à frente alumia duas vezes, não deixes escoar a vida como areia em ampulheta, faz finca-pé, não creias nessa tese, não engulas essa peta, renega essa chupeta.

Dou-me a mim mesma alforria, ergo cânticos, alegria, ávida de desassossego incito-me ao sobressalto, agito a perturbação, parto os cântaros, quebro os cânones mas excito-te o coração. É isso que esperas de mim, confundes com poesia a alma que eu abro assim. Poesia não é isto, poesia é uma espia de alma bem luzidia e de mais alta fasquia, o que lês, se comparada é atonia, nostalgia se o quiseres, de quem, c'a desculpa de afazeres, aspiraria ao que tu queres.

Não confundas estas palavras cruzadas com emoções bem profundas de inspirações mais letradas. Quem me dera ser capaz, quem me dera a Primavera e, como a hera, trepar severa às alturas e canduras daquelas a quem invejo venturas e a quem num bocejo imito. O que escrevo, não é poesia é um grito, grito que enfeito a meu jeito, a que dou forma e substância, plataforma para a distância a que me guindo atirá-lo. Não confundas, não me obrigues a passar pela vergonha de medonha imitadora de mente alva e criadora.

São momentos de prazer que daqui tiras ao ler, mas poesia? Isso era sim o que eu mais queria. Prometo-te alegria, se entendes ver mais que tal garanto-te que é simpatia e, se assim for agradeço. Só isto, nada mais peço, quem não gosta de jogar? Que é o que faço afinal. O que não posso dizer, disfarço bem ao escrever, tão bem que por vezes sucede veres escrito no papel, não o que eu penso, não o que eu digo, mas o que para ti sabe a mel.

O que tu gostas, no fundo, é do ar de Carnaval girando em redor dos textos, que nada tendo de profundo, te retiram por minutos do contexto deste mundo. São jogos de palavras, nada mais, são modos de te dizer ou perguntar como vais, são como jogos florais no florir das Primaveras, mas uma coisa podes crer, brincando brincando verdades te vou contando, porque as palavras são veras, porque as palavras são tudo e porque saem bem sentidas, quantas vezes doridas, prenhes e, de um sentimento que folgo atirar ao vento.

      * Publicado por Maria Luísa Baião‎ em Diário do Sul, coluna KOTA DE MULHER, escrito na Segunda-feira, ‎dia 25‎ de ‎Outubro‎ de ‎2004, ‏‎pelas 15:13:56

domingo, 21 de outubro de 2018

536 - ESTE TRISTE OUTONO EM QUE TE FOSTE...


Somente agora, que permanentemente me convocas o pensamento, reparei nesta imagem por ti escolhida para capa da página na rede social onde pontificas.

Só agora atentei nela com olhos p'ra ver e cabeça p'ra pensar, para cuidar de a observar e, andando isto tudo ligado, nada nem ninguém me convencerá não ter havido aqui criteriosa escolha, tu que nada deixavas ao acaso nem davas ponto sem nó.

Talvez ao escolhê-la já sentisses em ti a melancolia de Outono, um Outono contudo rico de cor e prenhe de significado, talvez sentisses já em ti a nostalgia e o apelo astral do universo para que o teu Karma se cumprisse pois nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. 

Talvez tivesses sido convocada pelo Outono para um outro e novo desafio. Nasceste, amadureceste, deste fruto, foi chegada a hora da metamorfose e, para que tudo em nosso redor rejuvenesça, tal como as folhas que caem, qual húmus, qual Fénix, talvez tenha chegado para ti o tempo e a hora de nova viagem e somente agora eu me tenha apercebido disso, olhando enquanto caminho as suaves cores desta paisagem tua, desta desolada paisagem que me deixaste.

Sim porque é aqui que radica esta tristeza profunda que sinto duradoura, este desgosto incomensurável, este abatimento indefinível contido pela estranha serenidade deste peculiar momento, p’la acalmia da vida em que, diminuindo a passada, apurando a atenção, me parece ouvir o sussurro do vento trazendo-me a tua voz, desculpa Berto, estava na hora de partir para outra, sinto o apelo do meu signo, a coragem do Leão, outros mistérios me esperam.

É debaixo deste sol de Outono que caminho, agasalhado na solidão que me vestiste, todavia sinto paz, contigo partiu a inquietação que a ambos assaltava e finalmente encontrámos a paz calma que Outono permite, este Outono, o Outono da vida, de calma, da paz que apesar de tudo tanto ambicionáramos porque o sofrimento não é catarse nem é divisível, mas propaga-se e multiplica-se sem controlo, como a divisão celular que numa citocinese imparável origina a vida. 

Deus deixou-nos o livre arbítrio mas, egoísta, guardou pra Ele mesmo a última palavra, deixou que chegasses a Outono, deixou que amadurecesses, que desses fruto, frutos, tão frutuosa foi a tua vida, cumpriste o teu papel, foste marioneta nas mãos Dele e agora o Outono, o cenário ideal para saíres de cena, o silêncio outonal, o dever cumprido, apesar de tudo obrigado meu amor.

É por entre os espinhos do silêncio que caminho, lembrando-te, concentrado nas memórias de ti qual porto de abrigo precipitadamente procurado e nas quais me refugio, habituado a que aí encontre a abundância pois sempre colhi do que semeaste, sempre fui bafejado p’la felicidade enquanto viveste e agora o silêncio, somente o silêncio e estas constantes lembranças de ti. 

Penso-te e, inconscientemente pontapeio as folhas multicoloridas que o Outono espalha neste lugar de desolação em que, numa atitude comodista me vejo, ignorando a transformação que diante de mim se processa, não reparando, não estranhando, não dando atenção nem contemplando a metamorfose, a renovação, a recôndita regeneração que esta abundante miríade de odores e cores anunciam.

No céu está agora mais uma estrela, dos cambiantes cromáticos de Outono renasce como Fénix a vida, enrolando no seu âmago a vitalidade que matura secretamente o recomeço. Por isso doravante te recordarei em cada Outono, a estação tua. Nem só, mas em cada Outono recordar-me-ei especialmente de ti que sempre recusaste a tristeza, a rendição, a renúncia, o declínio, a resignação. 

Nasceu uma estrela, “Sois pó, e em pó vos haveis de converter” disse o Padre António Vieira citando a Bíblia, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, apostrofou e provou Lavoisier e no que creio firmemente. Também eu saberei manobrar os meus Chakras, transmutando esta dor melancólica numa lição correctora, qual recompensa que me tenha sido dada, qual fruto maduro deste Outono singular em que te vi partir, abalar, Outono que não esquecerei jamais, como jamais te esquecerei a ti meu amor, Outono que recordarei sempre como aquele em que foste incensada e me foi concedido o privilégio de ver-te subir aos céus.

Algo renascerá das cinzas, tenhamos esperança, após a tempestade sempre sempre sobreveio a bonança.

Adeus meu amor de sempre, adeus meu amor eterno.


Maria Luísa Baião quando começámos namorando. 

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

535 - UMA MUI QUERIDA ESTRELA NASCEU ...


         Queridas amigas e amigos, apesar da minha imensa dor sinto o dever de vos informar e a cortesia a isso igualmente me obriga, que a minha extremosa esposa já não se encontra entre nós.


A minha Luisinha deixou-nos na passada terça-feira, dia 16, pelas 18:30h e quando, internada em Medicina 2 do Hospital do Patrocínio, em Évora, aguardava vez e transferência para uma unidade de cuidados paliativos em Montemor-o-Novo, integrada na Fundação S. João de Deus.

Eu próprio me obriguei a um período de nojo a que a perda dessa extremosa esposa me compeliu, como sabeis o luto é uma catarse. Acreditem que perdi uma mulher com M grande ao ter perdido a minha Luisinha, porém ela teve tempo para deixar entre todos nós e especialmente em mim a sua marca, nunca conheci dor tão lancinante, nunca até a ter perdido me apercebera quão importante para mim era a sua presença.

Todas as vontades expressas por ela estão sendo cumpridas integralmente, por isso não houve lugar a velório nem a funeral, sobretudo devido ao facto, altruísta, de ter doado o corpo à ciência. Infelizmente fê-lo com prejuízo de todas as amigas e amigos que desejariam ter-lhe deixado o testemunho duma última despedida.

Felizmente deixou-nos sem dor, ascendeu aos céus com o vagar duma chama que lentamente se extingue, sinto que Deus a terá chamado a si para lhe poupar sofrimentos desnecessários, foi assim que vi esta dolorosa partida que vos estou comunicando. Faço-o com imensa dor, nunca eu conheci dor tão lancinante, espero que me compreendam e, apesar da minha infundada rebeldia deixo-vos o testemunho da minha amizade.

Entendei que não o podendo fazer pessoal ou individualmente, deixo contudo o meu muito obrigado a todas e a todos. Uma vez mais obrigado pela vossa franqueza, despeço-me com um grande abraço que nos quite por toda a simpatia, carinho, humanismo e ternura com que sempre a trataram.

Por tudo isso me despeço de vós, que sois credores de um meu abraço,

Sempre considerando-vos,

Humberto Ventura Palma Baião




sábado, 6 de outubro de 2018

534 - ALBERTO, O NOSSO PRÍNCIPEZINHO …


 Bem sei que ela não resolveu puto, que só nos demostrou solidariedade, que somente vincou a necessidade de se colocar um fim naquele flagelo,

- Mas a sua figura frágil de princesinha teria sido boa publicidade pra ti amigo Alberto, “Irmão, ela não resolveu o teu problema mas o mano Alberto resolve. Vem ter comigo quanto antes”. A gente tem que puxar pelo cabeça ó Alberto.

Esta conversa teve lugar há poucos dias, talvez uns dois meses, ele tomava a bica com o nosso amigo Lopes que por sua vez o levara a ver a sua artística exposição fotográfica e eu, sentado e mordiscando à boca cheia o meu suspiro topei-o pelo canto do olho, mas reconhecei-o logo.

Conhecera-o numa época em que pouco se pensava em coxos, manetas, pernetas, manetas e noutros amputados e aleijados de variada índole, tão poucos parecia haver. Alberto, encerrado num mal enjorcado cubículo do hospital ia improvisando umas próteses com recurso a madeira, correias de coro, rebites, ilhoses, pano felpudo, espuma densa, falando, acordando e acertando pormenores com os médicos. Através de apreciações efectuadas a olhómetro e experimentações, lá ia gizando milagres mercê de muitíssima habilidade e ainda mais paciência e sensibilidade.

Eu viera de licença de férias, estaríamos aí por 76 e depois de uns bons dez minutos observando a arte, habilidade e imaginação com que ele ia pondo coxos a andar e manetas capazes de fotografar, digo de ser vistos e fotografados, luva disfarçando a prótese fixa, rígida, bonita mas não tão prestável quão uma boa perna de pau ou um par de muletas em madeira resistente mas leve. Tão absorto que às tantas larguei a minha sem sequer pensar;


- Ó amigo Alberto, em Angola é que você se iria safar bem com este negócio amigo, há por lá coxos, pernetas, manetas e gente sem fim para quem você seria Deus, para quem você seria um milagre.

Que não respondeu-me,

- Baião, chegaram-me os 24 meses que lá passei, gosto disto, gosto de Évora, da pacatez alentejana, até deste nosso calor, tão diferente daquele.

E deste modo ficámos conversados, não voltaríamos a ver-nos até, salvo erro 82, data do meu regresso definitivo a estas planícies, estava o amigo Alberto de malas aviadas e bilhete na mão, ia de abalada, a evolução da técnica e o progresso do país tinham-lhe acabado com o improviso, a imaginação, a habilidade e o emprego. Doravante próteses só biónicas ou robóticas, assim o ditavam as regras da CEE, modernidade, recurso a técnicas e materiais evoluídos, aparelhómetros e soluções com que ele nunca sonhara, a sua arte ultrapassada, a habilidade desprezada, agora eram exigidas habilitações, técnicas e conhecimentos que ele não dominava nem apresentava, não perdera o emprego, o emprego, aquele emprego é que simplesmente se extinguira, agora mãos robóticas seguravam ovos sem os partirem e pernas sintéticas dobravam o joelho e davam a passada sem se lhes pedir, perna de pau agora, quero dizer então, só um gelado que a Olá vendia, não sei se ainda vende.


Depois disto perdi-lhe o rasto por uma catrefa de anos, para ser sincero esqueci-o completamente, o meu problema são pedras nos rins, foram demasiados anos a beber água de charcos, riachos, ribeiros, rios, lagoas e até de poças, pelo que nem o Alberto me poderia valer nem que se prontificasse a fazer-me dois rins em marfim ou em pau-preto.

Não fora ele com a sua cara de pau encostado ao balcão beberricando uma bica e jamais o teria lembrado ou reconhecido. Voltara, o negócio correra-lhe bem mas a princesa rebentara com ele e, vendo a minha cara de espanto,

Outro capitão pensei eu, recordando um oficial da cavalaria do exército britânico James Hewitt* o militar que dera aulas de equitação à princesa, querem ver que este Alberto também andou enrolado com a princesa…

Coisa que ele, prontamente adivinhando os meus pensamentos me esclareceu,


- Nada disso, ela não foi lá desminar coisa nenhuma, foi incentivar e convidar a que outros desminassem… Levou com ela agentes da poderosa indústria inglesa, farmacêutica, protésica, em especial a de material ortótico, representantes da banca, uns promovendo os produtos, de pacemakers nucleares a muletas de um alumínio brilhante que a pretalhada adorou, outros abrindo linhas de crédito, oferecendo dinheiro para lhes comprarem tudo o que vendem, achas que eu tinha hipóteses Baião ?  Ainda falei com o gerente do Totta Aliança, quem financiara o primeiro carro que tive e que me respondeu já estar reformado e o banco ser agora do Santander e espanhol, o Banco do Alentejo foi-se, o Banco Português do Atlântico foi-se, o de Fomento foi-se, o Totta Aliança foi-se, o Fonsecas & Burnay, o Crédito Predial Português, o Pinto & Sotto Mayor, o Lisboa e Açores idem, isto está tudo mudado e já nada é nosso amigo Baião, nem Angola é nossa nem Portugal é nosso, olha, pretos nunca mais os quero ver na frente e brancos ainda menos.


Baião, como deves calcular voltei há pouco tempo mas já deu para notar, isto por cá está bom é para quem não faça nada e é a isso que me vou dedicar, vou auto reformar-me, já não tenho cabeça nem paciência para estas merdas, nem p’ra estes merdas. Vou meter baixa, preencher uns papéis, dizer que sou sírio, croata ou líbio, tunisino, libanês, tudo menos português… 



https://www.sabado.pt/social/internacional/detalhe/ha-20-anos-diana-foi-pedir-o-fim-das-minas-em-angola